Documentário tenta mostrar as dificuldades de consolidar a verdade histórica no Brasil, quando “informação e desinformação estão ao alcance de todos”
[Por Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual]
Lançado em 2006, o livro A verdade sufocada traz, por assim dizer, a “versão” de Carlos Alberto Brilhante Ustra para acontecimentos ocorridos durante a ditadura. Torturador reconhecido, mas não assumido, Ustra ocupa boa parte dos 75 minutos de Memória Sufocada, documentário que estreia nesta quinta-feira (30) nos cinemas. O longa, dirigido por Gabriel Di Giacomo, mostra que o pensamento que levou ao golpe de 1964 continua presente na sociedade. Não por acaso, levou ao poder, em 2018, um presidente e vice que veem Ustra como herói.
O coronel e chefe do DOI-Codi de São Paulo de 1970 a 1974 compareceu à Comissão da Verdade em maio de 2013. O filme traz várias passagens de seu depoimento. Em nenhum momento, Ustra assume algum crime, apesar de vários presos políticos terem reconhecido seu algoz.
Contra o “comunismo”
Quando respondeu, Ustra voltou ao “argumento”, usado até hoje, do combate ao terror e aos que queriam implementar o comunismo no Brasil. E chegou a afirmar, aos berros, que nenhum preso político foi morto no DOI-Codi. “Todos foram mortos em combate! Fora! Na rua!”, disse, exaltado. Compreensivelmente, ele diz nunca ter sido punido ou repreendido. Pelo contrário, sempre foi elogiado – e até condecorado – pelos superiores.
Essas “mortes em combate” eram os chamados “teatrinhos”, termo usado pelo ex-sargento Marival Chaves, que também depôs à Comissão da Verdade, em 2013, admitindo crimes da ditadura, como havia feito em entrevista para a revista Veja. Naquele período, era comum jornais noticiarem a morte de “terroristas” atropelados na rua, após troca de tiros ou por suicídio. Todos morriam sob tortura.
DOI-Codi, o campo macabro
Memória Sufocada tem tomadas internas e externas do DOI-Codi, que até abriga uma delegacia policial (o 36º DP). “Uma afronta”, afirma o ex-deputado Adriano Diogo, preso político e torturado naquele local, que ativistas querem transformar em centro de memória. Para lá também foi levado seu colega de classe Alexandre Vannucchi Leme, cujo assassinato acaba de completar 50 anos. Em visita ao que era o DOI-Codi, em 2013, Adriano afirma: “Este é o campo mais macabro do Brasil”.
O diretor faz uso frequente de imagens do período da ditadura (uma boa pesquisa no Arquivo Nacional) e do atual. E usa recursos tecnológicos de hoje (Google, WhatsApp) como se fizesse uma pesquisa, para no final demonstrar que os momentos históricos parecem se aproximar. Até nas propagandas nacionalistas, que se aproximam de certa retórica patriótica exibida recentemente por autoridades até então no poder.
“Cruel contra o Brasil”
E cita, como não poderia deixar de ser, o triste momento em que o então deputado Jair Bolsonaro evoca Ustra ao votar “sim” ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Tempos depois, durante entrevista, o repórter comenta que aquele voto foi cruel com ela. Dilma responde:
“O voto do deputado Bolsonaro é cruel com o Brasil. Extremamente cruel. (…) Como é possível, na casa da democracia, alguém votar pela ditadura, pela tortura, e pelo que um torturador é capaz de produzir em alguém?”, questiona Dilma, ex-presa e ex-torturada. Ela ainda se pergunta, sobre o que veio de 2016 em diante: “Por que foi possível?”.
Para o diretor, o filme busca uma “reflexão sobre a memória coletiva”. Assim, contrapõe a crise democrática de 1964 à atual. A memória “segue em disputa”, afirma o cineasta, que também assina o roteiro. Memória Sufocada estreou na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2021, e recebeu menção especial do júri no Festival de Málaga (Espanha).
Fatos construídos nas redes
“Informação e a desinformação estão ao alcance de todos. Muitos fatos são construídos nas redes sociais e a realidade é cada vez menos nítida. Este é o ponto central do filme, qual é a ‘verdade’ histórica e como os fatos podem ganhar novas narrativas com o passar dos anos”, diz Giacomo. Ele observa que o uso de informações falsas com objetivos políticos não é exatamente uma novidade.
“Na década de 1960, setores da elite brasileira, com o apoio da mídia, plantaram diversas fake news sobre a situação do país para conseguir levar os militares ao poder, era urgente evitar ‘o avanço comunista no Brasil’, ‘proteger a pátria e a família’ e ‘acabar com a bagunça’”, cita o diretor. Ele também criou um site (https://memoriasufocada.com.br) com sugestões de filmes, entrevistas e vídeos.
A democracia e suas crises
Logo no começo do filme, mostrando ainda o governo João Goulart, ele ouve o professor Jorge Ferreira, que em 2011 publicou biografia sobre o ex-presidente. O pesquisador reitera que Jango nada tinha de comunista. Estava mais para a social-democracia europeia, buscando um meio-termo entre empresários e trabalhadores. Os primeiros teriam apoio do Estado, mas os empregados também veriam melhor o seu padrão de vida.
O governo Jango defendia uma série de reformas. O filme exibe, mais uma vez, imagens do período do golpe com cenas da crise atual, com muitos pedidos de “intervenção militar”. Em vários momentos, a única diferença está na nitidez das imagens.
O desalento prossegue com depoimentos de ex-presos. E trechos do julgamento, em 2010, sobre a revisão da Lei de Anistia, que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu deixar intacta, provocando questionamentos até hoje. Para reforçar a dualidade, o filme termina com duas músicas emblemáticas da época: Eu te amo, meu Brasil, balada ufanista interpretada pelo grupo Os Incríveis, e Calabouço, que Sérgio Ricardo compôs após a morte do estudante Edson Luís, em 1968.
Assista aqui ao trailer do filme
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