Série Memórias

Memórias: “Ajudei os cristãos a entrarem no Partido Comunista Cubano”, recorda Davina

Davina
Com seu inseparável violão, Davina teve uma atuação marcante nas Comunidades Eclesiais de Base

O dia 30 de novembro de 1985 foi agitado em Cuba. Muitas pessoas faltaram ao trabalho para se dirigir a alguma das longas filas que se formaram nos arredores das livrarias de Havana. Quando a espera deu lugar à frustração, muitas vitrines foram quebradas e a polícia precisou intervir. O motivo para tal comoção social foi o lançamento do livro Fidel e a Religião, fruto de uma extensa entrevista entre o líder revolucionário cubano e o jornalista e frade dominicano brasileiro, Frei Betto. Foram 300 mil exemplares esgotados em poucas horas na capital de um país que acabara de atingir 10 milhões de pessoas.

No dia anterior, Frei Betto havia discursado no II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América: “Na apresentação deste livro [Fidel e a Religião], o companheiro e ministro da Cultura, Armando Hart, cita uma afirmação de Fidel nos primeiros anos da Revolução: ‘Nos casaram com a mentira e nos obrigaram a viver com ela, e por isso parece que o mundo se acaba quando ouvimos a verdade’. Eu diria que, neste século, uma das mentiras foi a de que não havia possibilidade de encontro e de unidade entre revolucionários cristãos e marxistas”.

Para um público seleto, formado por personalidades como Mario Benedetti, Chico Buarque, Gabriel Garcia Márquez e o próprio Fidel, Betto complementara: “Creio que há nisso uma vitória da burguesia, que conseguiu dividir-nos, criando uma caricatura do marxismo e fazendo uma manipulação do cristianismo. A burguesia fez da religião uma ideologia legitimadora de sua opressão, negando o que a religião tem de mais essencial, que é a sua transcendência, a revelação de Jesus como Filho de Deus e a possibilidade humana de comunhão com a própria experiência de Deus; e fazendo do marxismo uma religião, negando sua essência dialética, crítica”.

Pouco tempo depois do sucesso estrondoso do livro, que vendeu 1,3 milhão de exemplares em Cuba até 2015, Betto se encontrou com uma personagem, em fevereiro de 1988, que marcaria de certa forma a história da Revolução Cubana. Um breve resumo da sua trajetória é narrado na obra Paraíso Perdido: Viagens ao Mundo Socialista: “Pela manhã, visitei minha amiga, a brasileira Davina Valentim da Silva, no hospital Frank País, onde, há quatro meses, convalescia de uma operação na coluna. Trabalhamos juntos em Vitória, na década de 1970. Funcionária da Petrobrás, Davina nunca se casou, consagrando-se à pastoral popular, na qual transitava exalando alegria. Na década de 1980, mudou-se, com seu inseparável violão, para São Bernardo do Campo, dedicando-se ao trabalho em favelas. Porém, a coluna a traiu, reduzindo sua mobilidade. Esgotados os recursos em São Paulo, e após uma cirurgia que a deixou pior, conseguimos enviá-la a Cuba, onde todo o tratamento foi gratuito”.

Pouco tempo depois, no dia 3 de abril, um domingo de Páscoa, Davina conheceria Fidel pessoalmente. Davina havia ido ao encontro de Frei Betto em La Violetera, uma casa de hóspedes do Conselho de Estado em que o religioso estava se hospedando. De forma inesperada, a comitiva presidencial apareceu na porta: “Seu Mercedes estacionou bem à porta. Cumprimentou Silvia, a faxineira, Ayala, o copeiro, e meus amigos; perguntou pelo tratamento de Davina, que, perplexa com a surpresa, mal conseguia falar, pois chorava, emocionada”, narra Frei Betto em seu livro.

Memórias
Primeiro encontro de Davina com Fidel

Hoje, com 80 anos, Davina recorda a emoção desse momento: “Ele tinha uma magia, né? Alguma coisa muito grande que o envolvia. Inclusive, já escreveram que Fidel transbordava a ilha. É essa a impressão que a gente tem quando vê aquele homem enorme, cheio de ideal, segurando aquela revolução com um bloqueio tão severo. Quando ele saiu, Ave Maria, chorei à beça, porque quando ele sai, deixa um buraco”.

Mas não foi desse primeiro encontro que se deu a contribuição de Davina aos católicos cubanos. Alguns anos depois, a entusiasta das pastorais de base conseguiria controlar a admiração e ‘enquadrar’ o líder revolucionário. Cena para os ‘próximos capítulos’.

Trajetória

Davina nasceu em Picos, no Piauí, no dia 9 de outubro de 1942: “Minha mãe morreu quando eu tinha um ano e aí meu pai pegou a mim e a meu irmão e trouxe para o ‘Sul’, como nordestino costuma se referir aqui ao Sudeste. E aí eu fui criada com as freiras, as irmãs de caridade do São Vicente de Paulo, onde fiquei até velhinha. Era minha casa. Mas eu também tive contatos com uma tia, uma prima, mas eu não conheço muitos parentes”.

O Ginásio São Vicente de Paulo foi fundado em 1913 no Centro de Vitória, tornando-se a primeira escola particular da capital capixaba: “Eu tinha tudo que precisava no colégio. Era cento e tantas garotas, só meninas. Não sei se é algum problema, mas eu não tenho muitas memórias de como eu cresci. Não sei se a gente apaga, né? Se faz um corte… Eu gostei das irmãs, me educaram, estudei. Mas eu lembro uma vez que me mandaram fazer uma frase com a palavra ‘problema’ e eu falei ‘pobrema’. Aí me mandaram escrever mil vezes ‘problema’. Nunca mais me esqueci. Quando alguém fala “pobrema”, eu penso: ‘Então são dois, não é um problema só’. Mas enfim…”.

De Vitória, mudou-se para uma casa de formação de freiras no Morro do São Carlos, no Rio de Janeiro, em meados da década de 1970. Já alguns anos vivendo na capital fluminense, decidiu prestar o concurso na Petrobrás: “Entrei no dia 8 de março de 1976. Eu me lembro, mas bem atordoada, porque entrei naquele prédio enorme [Edifício Sede da Petrobrás, localizado no Centro do Rio de Janeiro] e de repente você se vê ali entregando papel, entregando documento e te perguntam: ‘Quer AMS, Petros?’. ‘Ah, eu quero. Não sei o que é, mas se você me explicar, vai dar tudo certo’. E aí fui para uma sala com 24 rapazes, todos mocinhos, todos garotos. Na época, era a única mulher da sala. Era uma bagunça, alguns trechos eu não posso contar… Eu ia na onda deles, mas assim, eu fazia o que eu queria, claro. Mas era o maior barato. Era muito engraçado porque tinha sempre uma piada”.

Religião
Davina no escritório da Petrobrás em que trabalhava, no Rio de Janeiro

Concomitantemente ao trabalho de secretária no setor de Pesquisa Operacional, que atualmente é correspondente à área de Tecnologia da Informação, Davina ingressou em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC).

Poucos anos depois, já formada, foi transferida para a Divisão de Processamento de Dados da Petrobrás, que ficava em São Paulo: “Quando eu cheguei em São Paulo foi muito difícil. Vim em uma época bem fria. ‘O que vim fazer aqui?’, eu pensava. Acordava cedo, pegava um ônibus, um metrô e outro ônibus. Meu trabalho ficava ali onde hoje é a Globo. Saía de casa cedinho e chegava oito horas em ponto. Aí saía do trabalho 5 horas da tarde e chegava em casa quase 8 horas da noite. Era punk”.

Em São Bernardo do Campo, onde se radicou, continuou sua atuação na igreja, que estava vivendo uma grande efervescência com o surgimento das ideias da Teologia da Libertação. Foi aí que conheceu Frei Betto, quando já convivia com um problema crônico na coluna: “O Betto falou para mim: ‘Davina, por que você não vai para Cuba operar da coluna?’. Eu perguntei: ‘Como?’. E ele disse: ‘Eu vou arranjar para você!’. Depois de um ano ele conseguiu. Quando o [advogado e militante do Partido dos Trabalhadores] Luiz Eduardo Greenhalgh entregou meu passaporte com visto, eu perguntei: ‘Quando volto?’. E ele me disse: ‘A volta a gente não sabe’. Acabei ficando em uma cama seis meses”.

Fidel
Davina se recuperando da cirurgia na coluna, em Cuba

No processo de recuperação, dividiu o espaço de fisioterapia com outro paciente… o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez.

Poucos anos antes, em 1983, Davina havia visitado a Nicarágua, no aniversário de quatro anos da Revolução Sandinista: “Na Nicarágua, eles diziam que entre cristianismo e revolução não havia contradição. Levei isso comigo”.

Em Cuba, entretanto, a convivência entre revolucionários e cristãos não era harmoniosa. Os motivos, de acordo com os relatos do comandante cubano no livro Fidel e a Religião, vinham de muito antes da revolução: “Neste país, onde 70% da população era camponesa, não havia uma só igreja no campo. Esse é um dado importante: nenhum padre onde vivia 70% da população! Em todos os lugares era como o lugar em que nasci, como lhe contei. Não havia nenhum trabalho evangélico, apostólico, digamos – não sei como vocês chamam –, de educação religiosa da população”.

A atuação católica, feita principalmente por jesuítas espanhóis, concentravam-se em escolas confessionais particulares, das quais tinham acesso apenas a alta burguesia cubana: “Aqui nunca houve sacerdotes trabalhando com favelados, operários ou no campo, como já ocorria em certos países e depois tornou-se frequente na América Latina. […] A religião em Cuba era propagada principalmente pelas escolas particulares dirigidas por religiosos, frequentadas pelos filhos das famílias mais ricas do país, pela nata da aristocracia ou que se julgava aristocrata, pelas classes médias altas ou por uma parte da classe média em geral”, relatou Fidel.

Com isso, essas escolas se tornaram centros de atividades voltadas a boicotar a revolução, iniciada em 1959: “Os conflitos daquele período, quando ainda não havia as novas escolas, suscitaram a necessidade de estatização das escolas particulares, sobretudo católicas, frequentadas pelos filhos das famílias que se opunham à Revolução e transformavam aquelas instituições em centros de atividades contrarrevolucionárias. Isso impôs a necessidade de estatização de todas as escolas particulares, católicas, protestantes ou leigas, sem distinção. Todas foram estatizadas”.

Devido aos conflitos com as altas cúpulas religiosas, a participação no Partido Comunista Cubano, e consequentemente na vida política do país, foi limitada ao ateísmo. A medida, entretanto, não acabou com a fé de milhões de cubanos – no máximo, a ocultou publicamente por algumas décadas.

Davina em reencontro com Fidel

Mas foi, publicamente, que Fidel escutou um questionamento sobre o tema quando visitava o Brasil, em 1990, após um hiato de afastamento devido à ditadura militar. No auditório do Anhembi lotado, em São Paulo, com aproximadamente 1.300 lideranças das Comunidades Eclesiais de Base, Davina perguntou: “Companheiro Fidel, os nicaraguenses dizem que entre cristianismo e Revolução não há contradição. Por que não há cristãos no Partido Comunista Cubano?”.

Fidel, então, iniciou sua resposta: “Por que os cristão não estão no Partido Comunista de Cuba? Direi com toda franqueza, creio que, se lá tivéssemos pessoas como vocês, elas já estariam em nosso Partido. Não quero dizer que não haja cristãos e bons cristãos. Ali os problemas são de outra natureza. Não tivemos uma Igreja dos pobres na Igreja majoritária, que era a católica. Isso nos fez muita falta, pois teríamos conseguido multiplicar a influência de nossa Revolução se houvesse sido assim”.

Logo depois, continuou: “A religião era explicada principalmente através das escolas de classes privilegiadas. Quando triunfa a Revolução e surgem as leis que afetam consideravelmente esses setores da sociedade – latifundiários, burgueses, ricos, banqueiros –, eles entraram em conflito com o governo revolucionário e trataram de usar a Igreja contra a Revolução. Isso produziu fricções, antagonismos, distanciamento, que foi o que determinou, no momento em que se funda o nosso Partido, o estabelecimento daquela norma relacionada ao ingresso no Partido, que não é um princípio nem tem que ser um princípio, nem é irrevogável, mas se estabeleceu nesses longos anos”.

“Passaram-se os anos, fizeram uma levíssima autocrítica e nada mais. Esta é a nossa situação. É triste, pois a hierarquia de nossa Igreja se sentia mais a Igreja dos que viviam em Miami, dos que abandonaram a pátria, dos que se colocaram ao lado dos Estados Unidos, do que a Igreja dos católicos cubanos. A hierarquia da nossa Igreja se considerava a Igreja dos latifundiários e dos ricos que preferiram migrar para os Estados Unidos”, reafirmou Fidel que, no fim, sentenciou: “Tenho esperança de que tudo isso passe. Mas não vejo essa mudança próxima, porque devido aos problemas surgidos no Leste Europeu e às dificuldades por que passa a União Soviética desenvolveu-se em alguns oportunistas a crença de que a Revolução poderá ter sérios problemas e não durará muito tempo”.

A resposta do líder revolucionário, transmitida dias depois aos cubanos, gerou um impacto negativo entre os líderes religiosos, o que fez com que Fidel tivesse que se retratar no seu retorno à ilha. No ano seguinte, em 1991, no seu IV Congresso, o Partido Comunista Cubano se declarou laico, o que permitiu o ingresso de militantes das mais diversas convicções religiosas.

Petroleira
Davina em ato na Avenida Paulista, durante a greve dos petroleiros de 2020 (Foto: Guilherme Weimann)

“Acabei criando uma fama com os cristãos lá em Cuba, depois daquela pergunta”, admite Davina, que completa: “Eu penso que a gente é chamado para se sensibilizar com a vida do povo, com os que sofrem, com os que morrem por uma revolução, com os pobres que estão aí na rua”.

Atualmente, Davina continua seguindo os ensinamentos de Frei Betto e tantos outros que dedicaram a vida e a religião para diminuir as desigualdades sociais. E também continua ensinando e transmitindo esses ensinamentos: no Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP), nas ruas e em todos os lugares onde a igreja se faz povo.

Porque, como escreveu Dom Pedro Casaldáliga, “No ventre de Maria/ Deus se fez homem/ Na oficina de José, Deus se fez classe”.

[Por Guilherme Weimann | Sindipetro SP]