Estragos causados pela operação exigem posicionamento dos candidatos sobre papel do Estado, limites do Poder Judiciário e gestão da Petrobrás
Prisão de Lula (PT), vitória de Jair Bolsonaro (PL) e posse de Sergio Moro como ministro da Justiça: há quase quatro anos, a Lava Jato atingia seu ápice. O governo eleito prometia combater a corrupção, retomar o crescimento econômico e enterrar o legado dos governos do Partido dos Trabalhadores.
A 330 dias do fim do mandato, nenhuma dessas intenções se realizou. Moro rompeu com Bolsonaro em 2020, alegando interferências na Polícia Federal. Um ano depois, o capitão reformado celebrou a extinção da Lava Jato. Para completar, a Suprema Corte reconheceu a parcialidade do ex-juiz: Lula foi solto e lidera as pesquisas de intenção de voto – enquanto o país afunda em uma crise política, econômica, sanitária e ambiental.
O Brasil não é o mesmo de 2018, mas a Lava Jato será novamente assunto dos debates eleitorais. Prova disso é a presença cada vez mais frequente de Moro, pré-candidato pelo Podemos, nas manchetes da mídia corporativa.
“O ideal é que o foco de uma eleição seja a melhoria das condições de vida da população. Mas, este ano, lamentavelmente, a Lava Jato será uma pauta necessária”, analisa Marcelo Uchôa, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza e crítico das violações cometidas pela operação.
“A eleição de 2022 abre a possibilidade de reconduzir o Brasil a um eixo do qual não deveria ter saído. Então, discutir a Lava Jato é inevitável, porque foi ela que empurrou o país da normalidade política para o caos completo”, completa o integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Em 3º lugar nas pesquisas, Moro insiste nas acusações contra Lula e tenta seduzir eleitores de Bolsonaro – particularmente, aqueles insatisfeitos com a política econômica e com o negacionismo diante da pandemia.
Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Uallace Moreira lembra que o aumento do desemprego e da inflação são anteriores à covid-19 e têm relação com a própria Lava Jato.
Impactos econômicos
“Antes da operação, havia na Petrobrás uma política de grande investimento público, com fortalecimento do setor de refino [do petróleo]. Isso reduzia a dependência da importação, reforçava nossa soberania e permitia à empresa administrar uma política de preços diferente da atual”, ressalta o economista.
Desde 2016, com Michel Temer (MDB), a Petrobrás adota o Preço de Paridade de Importação (PPI), que atrela os combustíveis à flutuação do dólar e às variações do preço do barril de petróleo no mercado internacional. Só em 2021, houve aumento de 46% na gasolina e de 35% no gás de cozinha.
Moreira enfatiza que o PPI não foi a única mudança ocorrida na Petrobrás a partir da Lava Jato – que alimentou o sentimento de antipolítica e criou terreno para o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Baseada no discurso de que gestão estatal é sinônimo de corrupção, a empresa passou a privatizar refinarias e distribuir mais lucro a acionistas privados, às custas dos consumidores.
“A redução do investimento começou já no governo Dilma, motivada pelo desaquecimento da economia mundial e pela queda no preço do barril de petróleo. Porém, a Lava Jato provocou uma mudança abrupta na gestão, prejudicando a Petrobrás e todas as cadeias associadas ao investimento público, por exemplo, a construção civil”, analisa o economista.
Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a Lava Jato custou ao Brasil 4,4 milhões de empregos. O fechamento de empresas e a suspensão de contratos impediram o país de arrecadar R$ 47,4 bilhões em impostos e R$ 20,3 bilhões em contribuições sobre a folha de pagamento.
Com gigantes nacionais inviabilizadas, empresas estrangeiras passaram a assumir obras de infraestrutura e comprar ativos estratégicos no setor de energia.
Apesar das promessas, as reformas trabalhista e da Previdência não reverteram a onda de desemprego. Quem pagou a conta, outra vez, foram os trabalhadores, enquanto presidentes e diretores de grandes empresas, que confessaram desvios milionários, reduziram sua pena ou puderam cumpri-la em casa.
“Não se deve combater a corrupção punindo as empresas, mas sim, as pessoas físicas. Funciona assim nos países desenvolvidos. E a corrupção não está só no setor público, mas no setor privado também. Se aprendemos algo com a Lava Jato, foi isso”, completa Uallace Moreira.
Dois dos principais candidatos em 2022 são críticos à operação e propõem retomar o investimento público.
“Ciro [PDT] e Lula apostam no fortalecimento da Petrobrás e na revisão do PPI – embora não esteja claro o tamanho do estrago e o que será possível reverter, por meio de reestatizações. A imprensa e o mercado vão pressioná-los a assumir o compromisso de não mexer nisso, mas caberá a eles defender a relevância da Petrobrás, sem medo de discutir corrupção”, ressalta o especialista, que é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“Por outro lado, João Doria [PSDB], Moro e Bolsonaro defendem a continuidade da política de preços e das privatizações, dialogando com interesses estrangeiros”, compara. Nenhum dos três reconhece publicamente os impactos econômicos da Lava Jato.
Democratização do Judiciário
Parte do arcabouço jurídico e legislativo que permitiu o avanço da Lava Jato foi criado durante os mandatos do PT. Em 2013, por exemplo, Dilma institucionalizou a colaboração premiada como meio de obtenção de prova em qualquer etapa das investigações.
No livro “Lava Jato: Aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça”, de 2020, a juíza Fabiana Alves Rodrigues aponta que algumas dessas mudanças foram orientadas por organismos internacionais, sob pretexto de fortalecer as instituições no Brasil.
Nas entrevistas concedidas após a anulação de suas condenações, Lula critica Moro e a Lava Jato, mas não especifica quais reformas considera necessárias no Poder Judiciário. Dilma, por sua vez, já sinalizou arrependimento em relação à lei das delações.
“Os governos PT confundiram o fortalecimento das instituições com ‘passar pano’ para corporativismos. Lula reconduziu Roberto Gurgel e Dilma reconduziu Rodrigo Janot [à Procuradoria-Geral da República], que perseguiam o PT desde a época do Mensalão. Então, faltou cuidado nas nomeações e, na hora H, o PT não contou com o respeito institucional que esperava”, lamenta Marcelo Uchôa, da ABJD.
“Em 2005, para viabilizar a criação do CNJ [Conselho Nacional de Justiça], foram feitas várias concessões. Ao final, em vez de haver um controle externo, reforçou-se o controle interno, e o conselho perdeu sua relevância. O mesmo ocorreu no CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público]”, exemplifica o jurista.
Uchôa avalia que a crise econômica é tão grave que debates relevantes como esse correm o risco de ficar em segundo plano, dentro e fora do PT.
“O trabalhador tem preocupações mais urgentes, como a volta da fome. Porém, quem se identifica com a dor de Lula compreende a necessidade de uma mudança estrutural no Judiciário” MARCELO UCHÔA
“Não acredito que outro candidato, mesmo o Ciro, tenha condições de conduzir esse debate, porque ele frequentemente cai em incoerência ao falar da Lava Jato. Ciro vê Lula como adversário e tem receio de, ao criticar a operação, reforçar a inocência do ex-presidente”, avalia o jurista.
Direita dividida
Ao apostarem na reedição do discurso lavajatista, Moro e os demais pré-candidatos que defendem uma “3ª via” ignoram as mudanças no cenário político desde 2018. Essa é a avaliação de Rosemary Segurado, coordenadora do Curso Mídia, Política e Sociedade da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
“A candidatura de Moro tem uma pauta única e está com quatro anos de atraso. O cenário de antipolítica e antipetismo arrefeceu muito” ROSEMARY SEGURADO
“Hoje está confirmado o viés ideológico que orientou a Lava Jato. As condições de vida estão cada vez piores, e muitos veem Moro como parte desse processo. Mesmo a parcela de eleitores que não faz essa análise o associa à figura Bolsonaro e lembra que há pouco tempo eles estavam lado a lado, o que reforça a imagem de traidor”, observa.
Embora não reconheça os vazamentos publicados desde 2019 pelo portal The Intercept, que demonstraram sua parcialidade, Moro assume a carapuça de “juiz-herói” ao dizer, em várias entrevistas, que comandou a Lava Jato – uma violação explícita à função de magistrado.
“A consultoria que Moro prestou à Alvarez & Marsal [empresa dos EUA que atua na recuperação judicial de empresas envolvidas na Lava Jato] é outro assunto complexo, que reforça a ideia de conflito de interesses”, completa Segurado, doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
As contradições que envolvem o ex-juiz respingam em Bolsonaro. O discurso anticorrupção foi uma das bandeiras do capitão reformado em 2018.
“Bolsonaro perdeu o discurso de nunca ter sido envolvido em escândalos de corrupção. Além das ‘rachadinhas’, o governo hoje interfere nas instituições e pratica o aparelhamento que, antes, acusava o PT de fazer. Isso também é percebido como corrupção”, afirma a professora da FESPSP.
Com a direita dividida, Rosemary Segurado acredita que a memória das políticas públicas de Lula deve prevalecer. Isso não significa que as lições aprendidas durante a Lava Jato estarão refletidas em um novo governo.
“O perfil conciliador não pode impedir novamente que Lula avance na democratização da mídia e do Judiciário. O prestígio que ele vem recuperando lhe dá condições de articular essas demandas. Cabe aos setores populares pressioná-lo, porque do lado do mercado financeiro, da direita, Lula certamente será muito pressionado a manter privilégios e proteger interesses de classe”, finaliza.