Luta por respeito e diversidade

Petroleira trans conta como não é fácil abrir mão de privilégios para viver a sua verdade

Foto: Luciana Fonseca/Sindipetro NF

Amanda Rodrigues integrará a delegação do Sindipetro NF que participará do 19º CONFUP, em agosto. Nessa entrevista, ela explica que se aproximou dos debates sindicais pela pauta da diversidade, revela como foi o seu processo de transição e fala sobre a relação com ambientes de trabalho, a família e a igreja

[Entrevista a Vitor Menezes, da imprensa do Sindipetro NF]

Entre os muitos olhos atentos que participaram dos debates do 19º Congrenf (Congresso dos Petroleiros e Petroleiras do Norte Fluminense), na semana passada, em Macaé, estavam os profundos e negros como o petróleo de Amanda Rodrigues, 35 anos, petroleira trans que foi uma das delegadas da base do Parque de Tubos. Ela se aproximou dos debates sindicais pela pauta da diversidade e conta, nesta entrevista, como foi o seu processo de transição e a relação com ambientes como trabalho, família e igreja. Confira:

Como você se aproximou do movimento sindical?

Comecei pela frente de Diversidade, montada pelo Tiago [Franco], da FUP. E aí a Janci [Jancileide Morgado, diretora do NF] descobriu que eu era trans e trabalhava na Petrobrás e me convidou para participar dos encontros do Sindipetro. Eu já sou sindicalizada, mas atualmente estou morando em São Paulo e sou filiada por aqui [pelo Sindipetro-NF]. Ela me contou que ia ter o Congrenf, ela, Bárbara e o Tezeu também [diretora e diretor do NF], e me convidaram para participar como delegada, para colocar algumas pautas, agora que a gente tem um governo. Eles acharam interessante que a gente pudesse fortalecer as nossas lutas, junto com as meninas petroleiras.

É a primeira vez que você participa de um congresso petroleiro?

É a primeira vez que eu participo. Aí eu vim para conhecer, lógico, pra lutar, mas pra conhecer também, porque até então eu não tinha participado de nenhum.

Você é da base do Parque de Tubos, correto?

Na verdade, hoje estou lotada em Santos, pela questão da transição mesmo, mas a minha gerência é daqui do Parque de Tubos. É como se fosse um posto avançado em Santos.

E quais são as pautas que você está trazendo para o Congresso?

A gente está trazendo as pautas da diversidade mais ligadas à saúde e também de respeito. A gente entende que a Presidência está mais aberta a tudo isso, a gente passou pelo mês do orgulho agora, que foi totalmente diferente, a empresa está mais aberta para esse tipo de demanda, e questões de abono de horas, que a gente não tem opção de trabalhar ou não, e essas pautas para que a gente consiga discutir, agora que o RH está mais interessados nos assuntos. Então acho que esse é o momento de a gente brigar e retomar alguns direitos que a gente perdeu, talvez.

Qual a sua função na Petrobrás, teu trabalho, tua formação?

Eu sou técnica de logística e hoje eu faço contratação para perfuração de poços, dentro de uma gerência para contração para perfuração de poços.

Há quanto tempo você está na empresa?

Entrei em 2011. Fiz 12 anos no último dia 5.

Você acha que, neste período, essa discussão que envolve diversidade no ambiente de trabalho, sobretudo depois de um momento de muito ódio e intolerância, o que está mudando?

Eu acho que a gente está em um momento bom, tanto da empresa quanto do país. A gente passou, óbvio, por esse período aí de desgoverno, que foi um período em que a gente de fato sofreu mais opressão, sofri coisas que eu nunca tinha sofrido na vida, mas acho que agora as pessoas têm refletido mais sobre determinados assuntos, mesmo que seja novo para muita gente, as pessoas estão mais abertas, mais receptivas, querendo dialogar mais, então eu acho que a gente está em um momento bom. E também, em 2018, a OMS [Organização Mundial da Saúde] retirou a transgeneridade da pauta de doença mental, isso vem trazendo também uma visão diferente para todo mundo. Então eu acho que a gente está em um momento bom e está todo mundo mais receptivo, a gente consegue discutir com mais conhecimento, de forma mais inteligente, e as pessoas começam a entender que a diversidade é normal. Todo mundo existe e o mundo é diverso, e ninguém precisa ficar se enquadrando a padrões para ser igual a todo mundo.

Você tem algum episódio de preconceito, de opressão no ambiente de trabalho, que você destacaria?

No ambiente de trabalho, felizmente, eu nunca passei nada. Posso ter sofrido algum preconceito velado que não chegou a mim de forma clara. Eu fiz essa mudança para São Paulo por imaginar que eu passaria por alguns problemas. Comecei a transição dentro da pandemia e então eu fiquei nesse período em casa, então muita gente não via, e quando eu voltei pra base eu logo pedi transferência. Quando precisou voltar para o ambiente de trabalho eu já estava em um momento de transição, o meu chefe é uma pessoa ímpar, ele me disse que não sabia se conseguiria fazer a transferência [de gerência], mas que se eu quisesse passar por esse processo dentro da gerência ele me apoiaria em tudo. Então, assim, eu tive a sorte de estar com pessoas diferenciadas mesmo. Entendo que eu sou privilegiada neste aspecto e que muitas outras meninas não têm a mesma sorte que eu tive. Por isso eu optei por fazer a transferência dentro da gerência, que eu já conhecia, que todo mundo já tinha uma receptividade melhor, do que trocar por uma gerência que, de repente, houvesse algum preconceito quanto a isso. Dentro da empresa eu não tenho do que reclamar. Eu trabalho na gerência de poços, acredito que já é uma gerência que é mais plural, mais… Óbvio, é um ambiente de escritório, acho que o ambiente de escritório também facilita isso, do que o ambiente embarcado, que é um ambiente mais hostil. Mas eu sou apaixonada pela gerência de poços porque as pessoas têm mais conhecimento, tem menos preconceito talvez, ou se têm guardam para si. Felizmente eu não passei por nada dentro da empresa.

Então a sua transição foi bem recente. Como foi todo esse processo de decisão?

É um processo muito difícil. Não é fácil tomar essa decisão de ir contra todos os privilégios que estão postos aí de uma sociedade patriarcal, falocêntrica. Hoje eu tenho 35 anos. Resolvi fazer recentemente porque foi o momento em que talvez eu estivesse mais forte, e até por conhecimento. Eu venho de uma cultura, essa cultura que a gente tem, patriarcal, eu cresci dentro da Igreja Católica…

Você é de qual cidade?

Sou natural de Friburgo, morava em Rio das Ostras e trabalhava no PT [Parque de Tubos]. E o ambiente da igreja também é muito hostil, e a Petrobrás por ser em sua maioria masculina traz todo um receio se você vai ser aceita e tal. Sempre há esse questionamento se você está fazendo a coisa certa, porque você está indo contra todos os privilégios, pro estar ligada ao feminino e à minoria mesmo. Na verdade, eu criei forças porque, dentro da pandemia, comecei a ter uns pensamentos, que eu imaginei que eu nunca teria, porque eu sou uma pessoa que gosto muito de viver e sou uma pessoa feliz, mas dentro da pandemia eu comecei a ter uns pensamentos de ter coragem de tirar a minha vida, aí eu imaginei que isso não estava certo e resolvi buscar ajuda profissional. Na verdade, eu já vinha buscando conhecimento sobre o assunto, essa coisa de ser de Friburgo, uma cidade com menos acesso à informação, uma cidade mais de interior, esses preconceitos ficam mais evidentes. Tanto que a expectativa de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos, e no interior é ainda menor. Eu tinha comigo esses preconceitos dessa cultura, dessa vivência desse crescimento dentro desse ambiente desta sociedade que a gente tem. Eu tinha também esse preconceito quando falava de pessoas travestis, embora eu sempre me sentia como menina eu encontrei dentro da sociedade um lugar em que eu conseguia viver os privilégios de ser uma pessoa branca, de nascer num corpo tido como masculino, embora estivesse escrito que eu não me encaixava naquele sistema binário de gênero. Aí, quando eu comecei a ter, não sei classificar se de fato foi uma depressão, mas eu acredito que sim, eu comecei a buscar ajuda e, entre ser uma pessoa infeliz e tentar tirar minha vida eu preferi enfrentar todos esses preconceitos e ser de fato quem eu era. E felizmente eu tive muito apoio, na minha família, na igreja, esse ambiente que eu imaginei que eu não fosse ter, que eu seria hostilizada, e felizmente foi muito bom. Mas é muito tenso. A sociedade, por mais que tenha essa vivência de estar em todos os lugares e ser muito bem recebida, existe uma opressão, existe um medo de estar e ser hostilizada no ambiente. Porque a sociedade é opressora, é difícil viver isso. Mas hoje eu sinto que eu fiz a escolha certa, de viver a minha verdade. Hoje eu sou uma pessoa bem feliz, bem segura de mim.

Existe algo que eu não tenha perguntado, mas você gostaria de dizer?

Acho que não. Falei tudo o que tinha que falar. Espero que a sociedade consiga entender que a gente é diverso e que mão precisa tentar ser igual a ninguém. A diversidade nos torna maiores. É isso.