De Três Lagoas a Moscou

O quebra-cabeça da relação entre Bolsonaro e Putin

Foto: divulgação Kremlin.

[Por Daniel Giovanaz, especial para o Sindipetro-SP | Edição: Guilherme Weimann]

Há oito anos, o município de Três Lagoas, terceiro mais populoso do Mato Grosso do Sul, se preparava para receber a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados III (UFN3), na época pertencente à Petrobrás. Por meio de um consórcio com a Galvão Engenharia e com a chinesa Sinopec, seriam contratados até 20 mil trabalhadores, aquecendo a economia da região e reduzindo a dependência de importação de insumos para o agronegócio.

“Havia muita expectativa na cidade”, relembra Yaeko Aoki, gerente de projeto e suprimentos entre 2014 e 2016. “A população investiu em alojamentos, comércio. Quando cheguei, éramos 8 mil trabalhadores contratados, a maioria de fora. A localização dessa unidade foi escolhida a dedo, porque era estratégica para a distribuição dos produtos.”

A Petrobrás investiu cerca de R$ 3 bilhões na fábrica, que teria capacidade para produzir 3,6 mil toneladas de ureia e 2,2 mil de amônia por dia.

“A ureia não é simplesmente um fertilizante: também é utilizada na agropecuária, evitando a perda de peso dos animais em períodos de seca”, ressalta Albérico Santos Queiroz Filho, que trabalhou como técnico de operações na UFN3. “Além de mudar completamente o cenário de dependência do Brasil, essa unidade [UFN3] ajudaria a reduzir o impacto ambiental, porque teria alta eficiência energética”, acrescenta.

As expectativas foram frustradas a partir de 2015. O pretexto inicial para paralisação das obras foram indícios de desvio e fraude levantados no âmbito da Operação Lava Jato. No ano seguinte, logo após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), a Petrobrás decidiu abandonar o setor de fertilizantes em todo o país.

Em Três Lagoas, o consórcio deixou dívidas milionárias, e o número de trabalhadores caiu para 20 – apenas para limpeza e manutenção.

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Yaeko foi investigada ao longo de um ano por suposta participação em esquemas de corrupção, mas conseguiu demonstrar sua inocência. “Hoje, o que existe lá é sucata. Os prédios estão deteriorados, e os equipamentos não têm perspectiva de recuperação”, lamenta a trabalhadora aposentada.

Além da UFN3, que estava 82% concluída, a Petrobrás mantinha Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados (Fafen) na Bahia, em Sergipe e no Paraná – também paralisadas no contexto do golpe. A empresa privada Unigel, que em 2020 assumiu as unidades no Nordeste por 10 anos, pagou à Petrobrás R$ 177 milhões, menos de 1% de sua expectativa de faturamento no período.

Guerra evidencia dependência

O abandono das obras em Três Lagoas é um emblema do desmonte da Petrobrás e de seus impactos à soberania nacional, denunciados pela Federação Única dos Petroleiros (FUP) desde 2014.

O agronegócio brasileiro importa 85% dos fertilizantes que consome, e 23% vem da Rússia – somada à vizinha Bielorrússia, fornece quase metade do potássio usado em solo brasileiro. Nas últimas semanas, a guerra na Ucrânia e as sanções impostas a Moscou colocaram o setor em alerta.

Em 4 de fevereiro, a Petrobrás vendeu a UFN3 ao grupo russo Acron, que promete investir US$ 200 milhões para finalizar as obras e iniciar a produção de fertilizantes na unidade. A negociação foi comemorada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que, 10 dias depois, visitou a capital russa para um encontro com o presidente Vladimir Putin.

Os ataques à Ucrânia só começariam na semana seguinte, mas o capitão reformado já citava o mercado de fertilizantes ao falar sobre a importância daquela aproximação.

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Para Cloviomar Caranine, economista da subseção do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) da FUP, a sequência de eventos não é mera coincidência.

“O Brasil é um grande fornecedor de alimentos para o mundo, enquanto a Rússia é a grande produtora de fertilizantes. No ano anterior à visita de Bolsonaro, já tinha ido à Rússia o ministro de Minas e Energia [Bento Albuquerque, em outubro de 2021]. Ele fez uma série de reuniões e estabeleceu acordos, que foram ratificados este ano por Bolsonaro”, lembra.

“Os russos têm, de forma estratégica, buscado ampliar sua capacidade de produção e energia no mundo todo. O Brasil, na contramão, abre caminho para outros países entrarem e assumirem setores estratégicos”, completa Caranine.

Na gestão do petróleo, a tendência se repete. Enquanto Bolsonaro opta por vender refinarias e se desfazer de subsidiárias da Petrobrás, a Rússia amplia investimentos pelo mundo – incluindo ativos no Brasil. É o caso da empresa Rosneft, com sede em Moscou, que explora três blocos de petróleo na Bacia do Solimões, no Amazonas. O governo russo é o maior acionista da companhia, com 75% das ações.

Cautela foge à regra do bolsonarismo

Projeções otimistas apontam que a Acron só terá condições de produzir fertilizantes na UFN3 a partir de 2024.

“O investimento russo já garantiu a Bolsonaro um capital político importante na região, porque trouxe consigo a promessa de geração de empregos e desenvolvimento, em um ano eleitoral”, relata Albérico Santos Queiroz Filho, que hoje é dirigente do Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP) em Três Lagoas.

“A produção da fábrica vai demorar a ser retomada, mas esse capital político produz efeito imediato e tem a ver com o medo do Bolsonaro ao se posicionar sobre a guerra na Ucrânia”, opina.

O presidente vem sendo cobrado pela mídia comercial para assumir uma posição contundente contra a Rússia e a favor da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Na visita a Moscou, Bolsonaro se referiu a Putin como “uma pessoa que busca a paz.” Em meio aos ataques à capital ucraniana, o governo brasileiro disse respeitar a soberania dos países.

“Bolsonaro precisa ser criticado por seus erros, não por seus acertos”, analisa Giorgio Romano, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.

“A primeira declaração do Itamaraty [sobre a guerra na Ucrânia] estava claríssima. Lamenta, mas não usa a palavra condenação, diz que respeita a soberania e que o caminho é a paz, e não a guerra. A meu ver, se é para cobrarmos algo, é o fato de o Brasil ter assinado a Resolução da ONU, articulada pelos EUA, contra a Rússia. Poderia ter ficado neutro, como fizeram Índia e China.”

A postura aparentemente cautelosa do governo brasileiro sobre a guerra na Ucrânia foge à regra do bolsonarismo. Para o professor da UFABC, essa escolha tem relação com o resultado das eleições dos EUA em 2020: o alinhamento automático de Bolsonaro “sempre foi com o trumpismo, e não com os Estados Unidos.”

Perspectivas

Giorgio Romano considera que não há elementos para afirmar o nexo causal entre a venda da UFN3 e a visita de Bolsonaro a Moscou e a posição brasileira sobre a guerra na Ucrânia.

“Minha tendência é considerar que aquele foi simplesmente um acordo comercial, e não que Putin teria pedido para a empresa investir, para ajudar o Brasil ou Bolsonaro. Como não tenho elementos, deixo essa possibilidade em aberto”, explica.

De fato, nem todas as peças desse quebra-cabeça estão na mesa. A reunião entre os dois presidentes em Moscou foi a portas fechadas, com breves trechos televisionados.

O certo é que, com Rússia e a aliada Bielorrússia sob sanções, o agronegócio precisará buscar fornecedores alternativos de fertilizantes.

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Tereza Cristina, ministra da Agricultura, garante que há insumo suficiente até outubro e já articula a possibilidade de aquisição junto ao Canadá – a preços mais elevados. No último dia 2 de março, ela afirmou em entrevista coletiva que o Brasil errou ao fechar suas fábricas de fertilizantes.

O esfriamento temporário das relações comerciais entre Brasil e Rússia, forçado pelas sanções, não significa um afastamento diplomático.

“Putin quer que o Ocidente ‘baixe a bola’ e que a hegemonia dos EUA desapareça, e trabalha para isso desde 2007. Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia e, em seguida, foi a propulsora dos BRICS”, lembra Romano.

O agrupamento, que inicialmente reunia Brasil, Rússia, Índia e China, passou a incluir a África do Sul – letra S da sigla [South Africa, em inglês] – em 2011.

Ao citar a formação dos BRICS, Romano enfatiza que é justamente nos momentos de elevação dos conflitos com a Otan e os EUA que a Rússia busca fortalecer suas relações com países emergentes.

“Qualquer força política que ajude a criar confusão no Ocidente e diminuir a hegemonia dos EUA interessa a Putin. Por isso, ele apoia a extrema-direita na França e na Hungria, por exemplo, assim como apoia o chavismo na Venezuela. Se Putin avaliar que o bolsonarismo pode causar mais confusão do que o Lula em relação ao Biden, é perfeitamente possível que apoie Bolsonaro”, finaliza o professor da UFABC.