11 de setembro

50 anos do golpe no Chile: a brutalidade de Pinochet ainda é uma ferida aberta na sociedade

Arte: Comunicação da FUP

No dia 11 de setembro, um golpe militar depôs e levou à morte o presidente chileno, Salvador Allende, megulhando o país numa sangrenta ditadura. Meio século depois, o povo ainda sofre as consequências da violência daquele dia e dos anos que se seguiram

[Por Julio Adamor, do Brasil de Fato/Edição: Thales Schmidt]

Passado meio século do golpe que depôs Salvador Allende, no dia 11 de setembro de 1973, os ecos daquele ato reacionário e violento, assim como da ditadura feroz e sanguinária que se apoderou do país por 17 anos (1973-1990), sob o comando de Augusto Pinochet, ainda se fazem ouvir na sociedade chilena.

As estatísticas são de domínio público, até porque foram reconhecidas pelo Estado depois que o rumo democrático foi retomado: mais de 3 mil assassinados e desaparecidos (sendo que 1.162 seguem desaparecidos até hoje), quase 40 mil presos e torturados. Sem falar nos exilados, estimados em mais de 200 mil. Mas essa herança antidemocrática e antidireitos pode ser observada em outras consequências menos notórias, menos quantificáveis e que, portanto, acabam se desenrolando com mais discrição na história recente do país.


Vamos destacar três aspectos notáveis: a perda de direitos, a dificuldade para se reformar a Constituição chilena, escrita em 1980 por homens da elite ditatorial de Augusto Pinochet, e a insistência em negar ou relativizar as atrocidades cometidas contra os assim chamados subversivos, que não são punidas como deveriam.

Direitos

Durante o governo da coalizão partidária de esquerda Unidade Popular, de Allende (1970-1973), os trabalhadores tinham direito a greve universal, estabilidade laboral, salário mínimo e previdência mais dignos do que nos dias hoje, segundo a historiadora Joana Salem. “Eles tinham perspectiva de futuro, engajamento político de massa, consciência popular coletiva”.

Ela define o pinochetismo como um “massacre” dos direitos humanos e sociais. O salário mínimo, embora ainda exista, convive com uma estrutura trabalhista “derretida”, que foi desmontada na reforma laboral de 1979 e não tem estabilidade alguma.

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“A diferença é que hoje tem cartão de crédito, então os pobres, em vez de ficarem sem sapato, se endividam e compram um”, afirma a historiadora. “E o endividamento é bem alto. Por isso o Tomás Moulian (cientista político chileno) chama o neoliberalismo chileno dos anos 1990 de ‘cidadania credit card’ — nada é gratuito e universal, tudo é mercadoria”. Durante os protestos massivos de 2019, apelidados de “estallido social”, o Banco Central divulgou que de tudo que uma família recebe no Chile, em média, 73% é dedicado a pagar dívidas.

Não que não houvesse pobreza no tempo do Allende. Mas havia o contrapeso de uma estrutura laboral mais estável. “Em 1970, um operário mineiro de Chuquicamata (maior mina do Chile) tinha muito mais estabilidade do que um professor doutor tem hoje”, afirma Salem.

A Constituição de 1980, ela enfatiza, bloqueou os direitos sociais universais e gratuitos, fazendo com que até hoje não exista direito a greve no Chile para todas as categorias. Embora Pinochet tenha deixado a presidência dez anos depois, em 1990, essa Constituição, elaborada de acordo com as diretrizes autoritárias e ultraliberais do regime ditatorial, continua vigente. Existe um processo de reforma em curso atualmente, impulsionado pelo governo do presidente Gabriel Boric, mas a articulação dos setores conservadores está levando o processo para uma mudança mais cosmética do que estrutural.

Legado de Allende sobrevive nas bandeiras, bandanas e na maneira única como o presidente revolucionário levou a cabo um projeto que unia socialismo e democracia / MARTIN BERNETTI / AFP

Pinochetismo sem Pinochet

A Constituição é um problema para a democracia chilena, porque impõe travas, aponta o sociólogo chileno Alexis Cortés (*). Uma delas é o controle preventivo do Tribunal Constitucional (o Supremo Tribunal Federal do Chile), que contém uma série de dispositivos normativos para impedir a realização de mudanças substantivas no país, o que ajuda a explicar fracassos reformistas durante governos de centro-esquerda que vieram na esteira da ditadura. Um exemplo foi a reforma educacional impulsionada no segundo mandato de Michelle Bachelet (2006-2010), que punha fim ao lucro no ensino superior, declarada inconstitucional por 6 votos a 4.

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“O Tribunal Constitucional funciona como uma terceira câmara legislativa, ou seja, quando a centro-esquerda consegue passar uma reforma no Congresso, a direita busca declarar inconstitucional”, explica Cortés, que integra a ‘Comisión de Expertos” que elaborou as 12 cláusulas pétreas da futura Constituição.

“O processo constitucional aspira aproximar a sociedade do sistema político, mas acabou aprofundando essa distância”, analisa. “Existe um alto risco de o novo texto constitucional ser ainda mais neoliberal, autoritário e conservador que o da ditadura. Esse é um grande problema, porque aumenta o risco de que o processo não chegue a um bom termo”.

O sociólogo se refere ao processo atualmente em curso. Antes dele, houve uma proposta de Constituição que apontava para ser a mais avançada em termos de direitos populares no continente, com a expectativa de incluir uma forte agenda ecológica, a plurinacionalidade do Estado, direitos trabalhistas, das mulheres, entre outras agendas, mas que foi derrotada em plebiscito em 2022. Em artigo publicado à época, no site da Revista Rosa, Joana Salem (**) define esse revés como “um bombardeio às avessas, quase tão inimaginável quanto o do dia 11/9/1973. O Palácio de La Moneda não foi avariado física, mas politicamente. Dessa vez não de cima pela Força Aérea, mas ‘desde abajo’ pela vontade popular, em um estranho paradoxo democrático”.

Em entrevista ao Brasil de Fato para esta reportagem, ela explica que o paradoxo está inserido no contexto do legado ainda vivo de Pinochet, que se manifesta principalmente na Constituição de 1980, que o país tem dificuldade de superar, e que contém uma “armadura institucional” criada por Jaime Guzmán, o grande ideólogo do pinochetismo. Trata-se da ideia do estado subsidiário das liberdades de mercado, asseguradas muito acima das liberdades sociais, o que explica as poucas ferramentas de controle estatal sobre a iniciativa privada.

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“Existe no Chile um pinochetismo sem Pinochet, não só numa postura política de setores de extrema direita que são pinochetistas, mas também numa estrutura institucional que foi preservada pelos pactos políticos da transição”, afirma a historiadora. “A gente está falando também de setores de centro e centro-esquerda, sobretudo o Partido Socialista, que fizeram um giro pragmático no sentido de costurar negociações com o centro e com as direitas, inclusive com os militares no período da transição, e que asseguraram a estabilidade dessa Constituição do Pinochet.

Reparações e negacionismo

Medidas reparadoras tem sido tomadas pela Justiça e pelo governo, no sentido de condenar repressores, conceder diplomas póstumos a pessoas assassinadas pela ditadura, assumir responsabilidade por encontrar as vítimas ainda desaparecidas. Cortés acha esse movimento importante, mas está incomodado com o forte impulso de relativização que o acompanha.

Segundo ele, a ascensão da extrema direita, que tem representação relevante no Congresso e é maioria no conselho constitucional, faz ecoar a falsa ideia de que a violência sexual praticada por agentes da ditadura, amplamente documentada, não passaria de “mito urbano”. Sem falar em congressistas que são ofendidas por portarem retratos de seus familiares que foram vítimas do regime. E também na pauta legislativa, na qual a bancada da extrema direita busca emplacar leis que favorecem torturadores, como por meio de benefícios carcerários para os maiores de 75 anos, “dos quais a metade corresponde a violadores dos direitos humanos, algo que vai contra o standard internacional dos direitos humanos e, sem dúvida, representa uma revitimização”.

O sociólogo avalia que as medidas de reparação recentes buscam compensar o fato de o Estado do Chile ter falhado em cumprir compromissos internacionais pelo esclarecimento da verdade. “Foi muito impactante o caso de caixas no serviço médico legal com restos de desaparecidos, que não foram periciadas durante décadas, mesmo havendo conhecimento das autoridades públicas”.

Numa escala sul-americana de acerto de contas com o passado repressor, o Chile seria um caso intermediário entre a Argentina, o país que mais realizou medidas de justiça de transição, e o Brasil, o que menos realizou, na avaliação de Joana Salem.

A historiadora destaca o fato de o Chile ter criado comissões da verdade, mas lamenta a dificuldade de se desdobrarem em processos judiciais, “justamente porque o sistema judiciário ainda estava comprometido com o pinochetismo e porque o Pinochet ainda era uma pessoa com poder de fato sobre as forças armadas e os senadores, sobre os políticos de direita”.

Ela destaca uma “espécie de inflexão desse processo” em 1998, quando Pinochet passa a ser investigado. “Apesar de ter se safado da prisão, deixou de ser intocável”. E outra inflexão na virada para o século 21, quando, sob uma nova correlação de forças no Judiciário, algumas condenações começaram a ocorrer, como a de Manuel Contreras, chefe da Dina, a polícia secreta da ditadura. “É como se o (Sergio Paranhos) Fleury, o (Carlos Brilhante) Ustra, o (Paulo) Malhães, algum chefão da tortura tivesse sido condenado no Brasil. Mas é insuficiente, bem diferente da Argentina, onde a cúpula do regime é sistematicamente condenada”.

Salem destaca também a reparação a camponeses que haviam ganho terras na reforma agrária, e que foram tomadas pela ditadura sem indenização, que só viria a ser feita posteriormente, a conta-gotas. E menciona “danos irreparáveis, como a população inteira ser forçada a entrar num esquema de previdência privada, que é uma extorsão. Muita gente perdeu o que tinha acumulado até ali e não teve escolha”.

De modo geral, ela define o processo de reparação como “bastante parcial”, o que tem a ver com o fato de existirem “muitas continuidades da ditadura na democracia chilena”.

“Onde estão?” é a pergunta que se destaca neste mural em Santiago, num local que abrigava um campo de prisioneiros durante a ditadura / Javier TORRES / AFP

Legado de Allende

O governo de Salvador Allende, embora curto, foi revolucionário e ainda hoje está presente na sociedade chilena, segundo os especialistas.

“A maior parte dos chilenos sequer tinha nascido em 1973. Mas uma grande parte da população ainda reivindicou o legado do Allende para o bicentenário da República (2010), quando ele foi eleito o chileno mais importante do país. A figura dele continua atraindo a juventude e aparecendo nas grandes manifestações populares, como em 2011 e 2019. A figura do Allende é inseparável da esquerda chilena, especialmente pela forma como conseguiu conciliar socialismo com democracia. Esse elemento com certeza está no DNA da esquerda e se expressa no próprio projeto político que o Boric encabeça hoje”, afirma Alexis Cortés.


Joana Salem destaca o legado da lealdade política em relação ao povo. “A cultura política da esquerda chilena tem esse patrimônio da figura histórica do revolucionário coerente e lutador, que foi leal ao projeto popular que ele representava até o final. O último gesto político da morte dele, de se recusar a qualquer saída negociada com os golpistas no sentido de sair do palácio para supostamente preservar a própria vida, é um gesto político muito profundo”, diz.

Boric

Na hora de analisar o atual governo de Gabriel Boric, ambos coincidem que, nesse caso, o legado de Allende está distante.

“Embora Boric reivindique a trajetória política histórica do que significou a UP (Unidade Popular), seu programa é muito distante do que seria um programa de transição a um tipo de economia diferente da capitalista”, avalia Cortés.

“Allende governava com o povo, literalmente. Com organismos de poder popular e representação das massas. Boric governa com a classe política do duopólio (Concertación/Chile Vamos), a tecnocracia e seus amigos de partido”, completa Salem. “Allende foi um verdadeiro revolucionário, tinha uma agenda de transição ao socialismo por meio da criação de uma área de propriedade social que moveria as alavancas econômicas do país, formada por uma articulação inovadora entre propriedade estatal e cooperativas”.

Lembra a historiadora que o ex-presidente socialista expropriou 6 milhões de hectares de terras em menos de 3 anos, um “volume extraordinário de poder destituído das classes proprietárias”, incluindo corporações poderosas como Anaconda, Kennecott e ITT, sem indenização, algo imperdoável para o capital estadunidense. “A revolução chilena do triênio 1970-1973 tinha sua radicalidade, ainda que fosse constitucionalista, que imaginasse um caminho pacífico ao socialismo”.

Em relação a Gabriel Boric, ela considera que nem reformista ele é. “Ele se mostrou aderente ao sistema dominante, com pequenas inflexões social-liberais. Foi eleito como social-democrata, representante da insatisfação com o legado pinochetista, com um horizonte de reformas progressistas e de ampliação de direitos, para aprovar uma nova Constituição que exorcizasse Pinochet. Porém, tem fracassado em tudo isso. Aderiu a acordos de livre comércio típicos do ‘modelo chileno’, pactuou com a elite política neoliberal do duopólio para uma reforma constitucional fechada à influência popular, e não está servindo sequer como tampão do fascismo de (José Antonio) Kast (candidato derrotado na eleição presidencial) e outros da extrema direita, que tende a se fortalecer com a frustração gerada por seu governo”.

História que se repete, por outros meios

No dia 11 de setembro de 1973, dia do golpe e de sua morte, Allende acordou com um objetivo em mente: um plebiscito popular sobre a necessidade de uma nova Constituição, que substituísse a de 1925, a qual bloqueava o programa revolucionário da Unidade Popular ao assegurar privilégios e poderes da classe proprietária. Afinal, Allende era, como se sabe, um sério respeitador das leis. Foi para evitar que Allende convocasse o plebiscito que os comandantes militares anteciparam o golpe de 1973, ordenando o bombardeio ao Palácio de La Moneda dois dias antes do planejado.

O trecho acima, contido no mesmo artigo de Joana Salem já mencionado no início desta reportagem, mostra como intuitos de mudanças constitucionais orientadas por princípios humanistas, socialistas e progressistas encontram obstáculos de toda sorte ao longo da história chilena. Ora com violência brutal, como Allende e milhares de cidadãos, chilenos ou não, sofreram na pele, ora por meio de articulações dentro dos caminhos institucionais, como tem se visto desde a redemocratização, pelo que as fontes desta reportagem contaram em detalhes.

O que se pode esperar, dito tudo isso, do Chile a partir deste próximo 11 de setembro?

“Espero que esse marco de meio século do golpe permita que a sociedade se reencontre com questões básicas, como respeito pela democracia e dos direitos humanos”, conclui o sociólogo Alexis Cortés. “Ao mesmo tempo, sou cético em relação à parte da direita que, com declarações negacionistas, basicamente o que tem expressado é que faria tudo de novo se o mesmo contexto se repetisse. Isso não é ter compromisso com a defesa dos direitos humanos”.

(*) Alexis Cortés, sociólogo chileno, é professor da Universidad Alberto Hurtado (Chile) e doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Atualmente é ‘comissionado experto’ do processo constitucional no Chile.

(**) Joana Salem, historiadora brasileira, é doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre a história da reforma agrária no Chile, além de ter organizado livros e publicado artigos sobre o Chile contemporâneo.