A história que não se apaga

Golpe civil militar completa 58 anos e ainda temos que reafirmar a importância da democracia

Não podemos tolerar jamais o tom de normalização que Bolsonaro e os militares que aparelharam o Estado brasileiro tentam dar ao que aconteceu em 1964, tentando eximir as Forças Armadas das responsabilidades pelos crimes cometidos durante as duas décadas em que o Brasil foi submetido a uma das mais violentas e longas ditaduras da América Latina 

[Por Alessandra Murteira, da imprensa da FUP]

Passados 58 anos do golpe civil militar, que em primeiro de abril de 1964 mergulhou o Brasil em uma violenta e sanguinária ditadura, o povo brasileiro ainda segue lutando para defender a democracia. O governo militarista de Bolsonaro, que flerta o tempo todo com o fascismo, pelo quarto ano consecutivo tenta legitimar o golpe, com comemorações esdrúxulas, evocando seus apoiadores a celebrar um dos mais tristes e cruéis períodos da nossa história.

Não podemos tolerar jamais o tom de normalização que Bolsonaro e os militares que aparelharam o Estado brasileiro tentam dar ao que aconteceu em 1964. Foram duas longas décadas de violações de direitos, de supressão da liberdade, de mortes, de torturas, de perseguições, de corrupção. Bolsonaro com suas mentiras, tenta sustentar a narrativa que o elegeu, invertendo a lógica das atrocidades do regime militar, transformando torturadores em heróis e corruptos em salvadores da pátria.

Por isso, é necessário que a cada ano, nós lembremos dos assassinatos, das torturas, dos desaparecimentos, da censura, do Estado de Exceção que o golpe de 1964 impôs à nação brasileira por duas longas décadas. Há exatos 58 anos, a população acordava com tanques e tropas armadas nas ruas, no dia primeiro de abril, conhecido popularmente como o dia da mentira – por conta disso, os militares oficialmente comemoram o golpe no dia 31 de março.

Assim como hoje, os sindicatos, os estudantes, os professores, os jornalistas, os intelectuais, os artistas e a classe trabalhadora organizada foram os principais alvos da ditadura. Na Petrobrás e em outras estatais, trabalhadores foram ameaçados, perseguidos e denunciados por serviços internos de inteligência, que agiam articuladamente com os órgãos de repressão. Os sindicatos sofreram intervenções e os dirigentes foram perseguidos e reprimidos.

Está comprovado e documentado que o golpe de 1964 foi gestado em conjunto com os Estados Unidos, sob o pretexto de salvar o Brasil do comunismo. O mesmo roteiro que elegeu Bolsonaro. Os núcleos da sociedade civil que apoiaram e deram sustentação à ditadura militar nos anos 60 e 70 (mídia corporativa, banqueiros, empresários, igrejas, maçonaria, etc) foram os mesmos que insuflaram o ódio contra o PT e a esquerda, apoiaram o golpe parlamentar de 2016 e encamparam a candidatura do atual presidente.

Em 1964, o presidente da República, João Goulart, foi acusado por esses mesmos setores de querer implantar no país uma “república sindical”, ao defender direitos trabalhistas, reformas sociais e o fortalecimento da Petrobrás. Foi derrubado com o apoio dos empresários, do sistema financeiro e da grande imprensa, que, cinco décadas depois, golpearam a presidenta Dilma Rousseff e elegeram Jair Bolsonaro. Os capítulos seguintes nós conhecemos de cor. A conta dos destroços quem paga é o povo brasileiro. Não há nada a ser comemorado. Ditadura nunca mais.

Centenas de mortos e desaparecidos

Em 2012, o governo Dilma Rousseff instalou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que durante dois anos e meio recolheu depoimentos e levantou uma série de dados sobre os crimes da ditadura. As investigações resultaram em um relatório com mais de quatro mil páginas, onde foram listados 434 mortos e desaparecidos, bem como as circunstâncias e autoria dos crimes. A Comissão responsabilizou 377 pessoas pelas mortes, torturas e demais violações aos direitos humanos, entre eles agentes das Forças Armadas, empresários e ex-ditadores.

Golpe foi contra a classe trabalhadora

Além de assassinatos e torturas, a ditadura militar violou direitos dos trabalhadores, arrochou os salários, acabou com a estabilidade no emprego e impôs uma lei antigreve. “Os trabalhadores foram o objeto principal do golpe, que foi um golpe de classe. Um golpe contra uma ‘República Sindical´. Não era a questão comunista a principal, mas dar um golpe contra a causa dos trabalhadores. Isso tinha muito a ver com o Estado que eles queriam construir naquele momento. A repressão se abateu, principalmente, sobre a classe trabalhadora”, afirmou em 2013, a jurista Rosa Cardoso, que coordenou a Comissão da Verdade.

Caixa dois dos empresários financiou o regime e a repressão

A Comissão da Verdade comprovou a participação de diversos empresários no golpe de 1964 e na sustentação da ditadura militar. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) foram os instrumentos de financiamento utilizados por eles.

Em depoimento à Comissão, Paulo Egydio Martins, governador “biônico” de São Paulo entre 1975 e 1979, afirmou que os empresários usavam dinheiro de caixa dois nas doações que faziam a estes institutos. Alguns deles participavam diretamente do esquema, subsidiando a estrutura de repressão da ditadura.

Um dos mais atuantes foi Henning Boilesen, do grupo Ultra, que controlava a Ultragaz, ajudou pessoalmente os militares a importar instrumentos de tortura. Um dos aparatos chegou a ser batizado com o nome do empresário, que também assistiu sessões de tortura no DOI-CODI de São Paulo.

SNI tinha uma divisão dentro da Petrobrás

Durante a ditadura, as estatais foram comandadas por militares de alta patente, que implantaram nas empresas uma extensão do Serviço Nacional de Informações (SNI) para investigar os trabalhadores. Na Petrobrás, o trabalho ficou a cargo da Divisão de Informações (DIVIN), responsável por identificar a “orientação política e social” dos petroleiros.

Em maio de 2013, no governo Dilma, a diretoria da empresa transferiu para o Arquivo Nacional uma série de documentos produzidos pelo DIVIN. O acervo reúne 426 rolos de microfilmes, com 131.277 fichas de controle dos trabalhadores que foram investigados pela ditadura.

Sindicatos à frente da redemocratização

Em maio de 1978, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, a greve dos metalúrgicos da Scania, em São Bernardo do Campo, desafiou a ditadura militar, iniciando uma série de revoltas operárias no ABC paulista. O estádio de Vila Euclides foi palco e símbolo desse movimento, fundamental para a redemocratização do país. Foi lá que Lula conduziu, em 13 de março de 1979, uma assembleia histórica, com 80 mil metalúrgicos.

Paralisações pipocaram por todo o país, desafiando a lei antigreve. Em 1981, apesar da proibição dos generais, mais de cinco mil trabalhadores se reuniram em Praia Grande, no litoral paulista, para a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), que aprovou a construção da CUT.

Petroleiros foram ponta de lança na luta por redemocratização

Em 05 de julho de 1983, os petroleiros da Refinaria de Paulínia (Replan/SP) iniciaram uma das mais importantes greves da categoria, que logo em seguida teve a adesão dos trabalhadores da Refinaria Landulpho Alves (Rlam/BA). Foram sete dias de enfretamento, em um movimento essencialmente político contra a ditadura, cujo estopim foi um decreto do então presidente do país, general João Batista Figueiredo, para cortar direitos dos trabalhadores de estatais e reduzir efetivos.

Os militares ocuparam as refinarias, fizeram intervenções nos sindicatos, cassaram seus dirigentes e demitiram 358 petroleiros. Dez dias depois, em 21 de julho de 1983, cerca de três milhões de trabalhadores das mais diversas categorias cruzaram os braços na primeira greve geral da ditadura militar.

Em agosto do mesmo ano, a CUT foi fundada, com o compromisso de unificar os trabahadores nas lutas por democratização do Estado, por direitos políticos e sociais e pela garantia incondicional de liberdade e autonomia sindical.