Nos últimos anos dos governos petistas, parte da imprensa começou a indicar o represamento de preços dos combustíveis como o vilão pelo alto endividamento; especialistas rebatem esse argumento
[Por Sarah Fernandes, especial para o Sindipetro-SP | Edição: Guilherme Weimann]
De um lado, a empresa mais valiosa da América Latina, que descobriu a maior reserva de petróleo deste século. De outro, o centro de denúncias de corrupção, um dos focos preferidos de fake news e o principal alvo do pacote de privatizações do governo de Jair Bolsonaro (PL). Essa é a Petrobrás, responsável por uma grande parcela do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e constante centro de manobras políticas e especulações.
A principal delas começou a ser divulgada em 28 de abril de 2016, quando os maiores jornais do país publicaram com destaque uma coluna do jornalista Carlos Alberto Sardenberg sentenciando: “quebraram a estatal”, em alusão às gestões dos governos petistas à frente da empresa. Sem números que justificassem a afirmação, ele continuou: “a Petrobrás só não está em pedido de recuperação judicial porque é estatal.”
A partir daí, quem usa as redes sociais, mesmo que eventualmente, começou a se deparar com uma enxurrada de postagens reiterando a quebra da petrolífera. A responsabilidade era atribuída ao endividamento e a política de preços implantada nos governos da petista Dilma Rousseff, entre 2011 e 2016.
Mas o que de concreto existe nessas acusações? Os governos do PT realmente quebraram a Petrobrás?
“Essa é uma fake news reproduzida de maneira sistemática na sociedade, provocada pela Operação Lava Jato e pelas forças conservadoras, com o objetivo de destituir Dilma [Rousseff], prender [Luiz Inácio] Lula [da Silva], abrir caminho para entregar o pré-sal para grandes petrolíferas estrangeiras e submeter a política de óleo e gás aos interesses internacionais”, defende o coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), William Nozaki.
O argumento é baseado em fatos: em 2015, tido como um dos piores anos para a Petrobrás, a empresa emitiu US$ 2,5 bilhões em títulos no mercado internacional, com prazo de 100 anos e taxa de retorno aos investidores de 8,45% ao ano. Poucas horas depois, a operação havia atraído mais de US$ 10 bilhões junto aos aplicadores. Ela foi coordenada por dois dos principais bancos do mundo, o Deutsche Bank e o JP Morgan.
Além disso, entre 2007 e 2015, as principais agências de classificação de risco do mundo avaliaram a empresa sempre com notas elevadas, indicando confiabilidade para o mercado. Essas classificações são um indicativo da capacidade futura e a responsabilidade jurídica de uma empresa efetuar os pagamentos previstos dentro do prazo.
“Isso aconteceria se a Petrobrás não tivesse uma saúde financeira sólida?”, questiona o diretor da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), Cláudio Oliveira. “Não foi necessário um acordo judicial nem aportes do Tesouro Nacional para manter a Petrobrás, como a imprensa propagava na época. Pelo contrário, ela terminou o ano de 2015 recebendo ativos e adiantando pagamentos.”
Naquele ano, a proporção entre o ativo corrente e o passivo corrente da empresa era de 1,52, o que significa que para cada R$ 1 que a empresa deveria pagar aos credores nos próximos 12 meses, ela tinha em caixa mais R$ 0,52, segundo o balanço comercial da própria companhia, de 2015.
Dívidas no centro da pauta
Quem apenas compara a evolução da dívida da empresa com a sua capacidade de gerar receita pode cair na armadilha de achar que o endividamento simplesmente aumentou entre 2014 e 2016.
Em 2006, a Petrobrás precisava gerar 0,43 vezes mais recursos para pagar sua dívida. A partir daí, o débito foi aumentando, assim como a geração de recursos. Em 2014 e 2015, essa relação atingiu o pico: a geração de recursos tinha que ser 4,53 vezes maior para pagar a dívida, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
“Isso não foi um problema porque a Petrobrás tinha capacidade de geração de riqueza para honrar com a dívida”, pontua o economista Cloviomar Cararine, do Dieese. “É preciso olhar dados sobre o endividamento da estatal a partir de vários fatores, incluindo aumento nos preços dos combustíveis, variação cambial e necessidade de ampliar investimentos”.
Para os especialistas, este é um ponto central: o aumento da dívida tinha um objetivo claro e estratégico de possibilitar a exploração do pré-sal, descoberto em 2007 e considerado uma das maiores reservas de petróleo do mundo. A construção de plataformas, poços e outras estruturas exigiram investimentos pesados, porém com retorno garantido, que começaria a aparecer após 10 anos do início da exploração, como é comum no setor petrolífero.
“A possibilidade de exploração dessa riqueza impôs a necessidade de ampliar investimentos, devido a capitalização do mercado internacional. Isso aumentou o endividamento no curto prazo, mas a dívida seria gerida nos anos subsequentes”, completa Nozaki, do Ineep.
Mesmo com a necessidade de investimentos, as dívidas da Petrobrás foram superiores à receita apenas nos anos de 2015 e 2016, segundo um estudo da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet). No primeiro ano foi devido à grande elevação do dólar e no segundo à queda na receita. Os débitos da empresa foram acirrados entre 2014 e 2015, quando o dólar variou de R$ 2,66 (em dezembro de 2014) para R$ 3,95 (em dezembro de 2015) e, consequentemente, a dívida em reais subiu de R$ 351 bilhões para R$ 492 bilhões.
Desde 2016, o endividamento da companhia vem sendo reduzido consideravelmente porque a empresa começou a quitar seus débitos e os ganhos com a produção do pré-sal começaram a aparecer. Entre 2018 e 2021, a dívida bruta da empresa foi reduzida de US$ 111 bilhões para US$ 59, segundo o Fact Sheet da Petrobrás.
Política de preços
A política de preços adotada pela empresa também é constante foco de críticas e é apontada como um dos fatores responsáveis pelo déficit no caixa da empresa, especialmente no governo Dilma. Nas gestões petistas, a política de preços da Petrobrás levava em conta, além do preço internacional do barril, os custos de produção da commodity no Brasil. Assim, a empresa conseguia amenizar os impactos das variações do mercado internacional para o consumidor interno.
“Vender petróleo mais barato fez com que a Petrobrás dominasse 100% do mercado de combustíveis, fortalecendo a empresa. Nesse período, ela teve a maior geração operacional de caixa, que é justamente o que paga a dívida”, pontua o diretor administrativo da Aepet, Fernando Siqueira.
No entanto, essa política fazia com que a Petrobrás lucrasse menos, o que desagradava os acionistas minoritários (privados).
“Vale dizer que a política de preços adotada por Dilma Rousseff não significou um prejuízo, mas sim que a empresa deixou de ganhar, porque os custos de produção e o volume de vendas faziam uma compensação”, diz Cararine. “Dilma não fazia os reajustes que o mercado queria porque sabia que aumentar [os preços dos combustíveis] teria um efeito ruim para a população, forçando o aumento da inflação e penalizando os mais pobres.”
Mudança para pior
Após assumir em 2016, o ex-presidente Michel Temer (MDB) promoveu uma drástica mudança na política de preços da Petrobrás, com o objetivo de aumentar a lucratividade, gerar mais dividendos para os acionistas e criar condições para o funcionamento de um mercado privado de refino, importação e distribuição de combustíveis.
Desde então, a Petrobrás passou a definir o valor ofertado aos distribuidores a partir do Preço de Paridade de Importação (PPI). O modelo leva em conta o valor dos combustíveis no mercado internacional, os custos para trazê-los ao Brasil e considera ainda uma margem para remunerar os riscos da operação. Como o preço internacional é em dólar, a cotação da moeda influencia diretamente no cálculo e, consequentemente, no preço dos combustíveis.
Futuro indefinido
No dia 24 de março deste ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atual candidato do PT ao Planalto, criticou a política de preços e se comprometeu a “abrasileirar” o valor dos combustíveis.
“Seu salário sobe quando o dólar sobe? Então por que a Petrobrás está reajustando o preço dos combustíveis em dólar?”, questionou. “O Brasil é autossuficiente em petróleo. E o custo do nosso petróleo é em real. Nos governos do PT, a gasolina, o gás e o diesel eram em real. Lutar para abrasileirar o preço dos combustíveis é um compromisso do PT”, disse.
Apesar do aumento do preço nas bombas de combustíveis, a nova política de preços de fato levou ao aumento da lucratividade: em 2021, a Petrobrás obteve o maior lucro da história, de R$ 106 bilhões. Entretanto, a maior parte desse valor, R$ 101 bilhões, foi distribuída em forma de dividendos aos seus acionistas (64% deles para acionistas privados). Trata-se da segunda maior distribuição de dividendos do mundo entre petrolíferas, atrás somente da gigante estadunidense ExxonMobil.
No olho do furacão
Apesar do lucro recorde e da redução da dívida, a estatal segue como centro de polêmicas. Só neste ano, a presidência da empresa mudou duas vezes: em junho, José Mauro Coelho deixou o cargo em meio à pressão do presidente Jair Bolsonaro e do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), contra a política de preços dos combustíveis. Antes disso, em março, o general Joaquim Silva e Luna havia deixado o cargo, após suceder Roberto Castello Branco, que foi demitido por Bolsonaro em 2021.
Em 27 de junho, o Conselho de Administração da Petrobrás elegeu o então secretário de desburocratização do governo federal, Caio Mário Paes de Andrade, para assumir a presidência da empresa, entre protestos dos acionistas minoritários.
O troca-troca ocorreu no contexto de drásticos reajustes nos preços dos combustíveis: em 17 de junho a Petrobrás anunciou um aumento de 14,26% no valor do diesel e de 5,18% no da gasolina. Em março, a empresa já havia reajustado o valor do diesel em 24,9% e da gasolina em 18,8%. Nos postos de combustíveis, os preços ultrapassaram os R$ 7.
“Hoje o povo brasileiro paga um preço absurdo pelo combustível e os dirigentes da Petrobrás estão pagando dividendos milionários [aos acionistas]. O lucro da empresa não é usado em benefício do país, mas dos acionistas”, pontua Siqueira, da Aepet. “Nesse cenário, as políticas do PT conseguiram, na época, restaurar a soberania do petróleo para a população brasileira”, recorda.