A convite do Sindipetro Unificado SP, a professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Luciana Salazar Salgado, analisa falas do presidente sobre a estatal
[Por Guilherme Weimann, da imprensa do Sindipetro SP]
Desde o primeiro dia de janeiro de 2019, quando tomou posse como presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (PL) tem se notabilizado por ‘discursos peculiares’, com elementos inéditos se considerado o lugar que ocupa. Afirmações convictas e agressivas são, posteriormente, retratadas pela metade – metaforicamente, ele avança dois passos e retrocede apenas um.
Além disso, Bolsonaro – desde antes de se eleger chefe do Executivo Federal – tem transferido responsabilidades, tanto a aliados (Paulo Guedes e outros ministros) como a rivais (apoiadores do isolamento social, por exemplo). E, com isso, tem demonstrado desconhecimento sobre a maioria dos assuntos, o que, ao invés de causar repulsa, aproxima apoiadores que o vê à sua imagem e semelhança.
Mas realmente existem uma estratégia e um padrão discursivos de Bolsonaro? Para responder a esse questionamento, a reportagem convidou a professora do Departamento de Letras da Universidade de São Carlos (UFSCar), Luciana Salazar, para se debruçar sobre uma linha do tempo narrativa, a partir de excertos retirados de reportagens jornalísticas, do presidente em relação à Petrobrás – a maior empresa de economia mista do país.
Partindo do instrumental dos estudos da linguagem, a primeira constatação é a oscilação constante do lugar enunciativo de Bolsonaro. Muitas vezes, engloba no ‘nós’ a Petrobrás, o governo e ele próprio. Outras vezes, incorpora no ‘nós’ apenas ele e o povo, em contraposição à estatal, que se torna inimiga.
“Essa posição opaca, instável, pode ser geradora, no interlocutor, de que ele é um beócio, um inepto, mas pode gerar uma simpatia: ‘Eu também estou me sentindo assim, eu não consigo entender tudo que está em jogo. Nossa, eu entendo esse cara, olha tudo o que ele está passando…’. Esse me parece ser o grande elemento da força retórica dele”, aponta Salazar.
A pesquisadora ainda completa: “Seus seguidores se apoiam na simpatia – que é uma empatia simpática tendendo à adesão – a esse cara que está falando ‘olha como está complexo, olha o que a Petrobrás faz, olha o que o PT fez, como é que eu faço para agir diante de uma coisa tão complexa como essa?’. Ele fala direto às emoções das pessoas, ele não chama ninguém à razão. Esse é o modo como convoca uma pessoa à adesão, ou seja, mostra que está no mundo tentando lidar com a loucura que está acontecendo. E aí é que muita gente se identifica com ele e, inclusive, enxerga nele honestidade”.
AQUILO QUE A GENTE ACABA ACHANDO QUE É TÍPICO DELE É UMA FALA QUE CIRCULARIA SEM ELE, É QUASE COMO SE NÃO HOUVESSE BOLSONARO, MAS, SIM, BOLSONARISMO. AS COISAS QUE ELE DIZ, QUALQUER BOLSONARISTA DIRIA. É COMO SE ELE NÃO TIVESSE CRIADO O BOLSONARISMO, MAS OCUPADO UM LUGAR ICÔNICO PARA O QUAL CONVERGEM ESSAS FORMAS DE ESTAR NO MUNDO, OPACAS, OSCILANTES E SUSCETÍVEIS DE MUITAS INFERÊNCIAS.
Esse efeito é potencializado pelas justaposições que marcam seu modo discursivo. “As construções dele são fundamentalmente por justaposição, ele enuncia sentenças sem muitas articulações explicitadas, sem conjunção. Ele não conecta uma afirmação com outra, ele justapõe. Vai falando em bloquinhos, em soquinhos. Vai justapondo bloquinhos de ideias, muitas vezes trechinhos curtos, e aí a articulação efetiva fica para o interlocutor fazer. Eu fico pensando como isso funciona bem neste tempo em que vivemos, em que existe um excesso de informações circulando, uma falta enorme de senso histórico. Isso também dificulta a ancoragem do enunciado numa realidade dizível, com todas as circunstâncias e variáveis”, explica.
Por fim, a linguista aponta que Bolsonaro possui um “vocabulário restrito, sem expressividade, sem qualquer marca própria”, o que é um bom indício de que, muito mais do que criador, o presidente é uma criação do próprio bolsonarismo: “As palavras quase nunca são típicas dele. Aquilo que a gente acaba achando que é típico dele é uma fala que circularia sem ele, é quase como se não houvesse Bolsonaro, mas, sim, bolsonarismo. As coisas que ele diz, qualquer bolsonarista diria. Porque isso que a gente está chamando de bolsonarismo é um conjunto de elementos semânticos, de modos de dizer e de se colocar no mundo que aparece nas falas dele. É como se ele não tivesse criado o bolsonarismo, mas ocupado um lugar icônico para o qual convergem essas formas de estar no mundo, opacas, oscilantes e suscetíveis de muitas inferências”.
Confira abaixo trechos dos comentários da linguista em relação às falas do presidente selecionadas pela reportagem a partir de reportagens jornalísticas:
12/04/2019 – Folha de S. Paulo
Bolsonaro: “REAJUSTE DO ÓLEO DIESEL: Ontem, às 19h40, fui informado sobre o aumento de 5,7% no óleo diesel. Liguei para o Presidente da Petrobrás preocupado com o percentual num nível sequer previsto para a taxa de inflação do corrente ano. Nossa política é de mercado aberto e de não intervenção na economia. O presidente da @petrobras, após nos ouvir, suspendeu temporariamente o reajuste. Convoquei os responsáveis pela política de preços para reunião, junto com o @MinEconomia @MInfraestrutura e @Minas_Energia.”
Salazar: É muito interessante ver que em 2019 ele está com uma posição: ‘Eu não tenho controle sobre isso, eu não sou a Petrobrás’. Mas, em outros excertos, a Petrobrás é aquilo que ele quer privatizar.
19/09/2019 – Valor Econômico
Bolsonaro: “A Petrobrás resolveu segurar o máximo possível. Segurou. Mas, infelizmente, ontem, a decisão é da Petrobrás, não tem interferência nossa, a Petrobrás que faz sua política de preço, aumentou em média 3% a gasolina e o diesel.”
Salazar: Ele vai justapondo bloquinhos de ideias, muitas vezes trechinhos curtos, e aí a articulação efetiva fica para o interlocutor fazer, e o interlocutor vai fazer isso como? Conforme o contexto em que aparecem esses excertos e conforme a conjuntura em que o interlocutor está imerso. Isso é muito interessante, porque vai dando margem para que a explicação do que ele disse seja mais ou menos organizada conforme a posição de quem vai explicá-la.
17/12/2019 – Estado de Minas
Bolsonaro: “Estamos fazendo o possível para baratear o preço do combustível. Reconhecemos que está alto no Brasil. (O preço) fica alto por causa de quê? Impostos estaduais, ICMS basicamente. E depois o monopólio ainda existe na questão de distribuição e nós estamos buscando quebrar esse monopólio para diminuir o preço. Só com a concorrência ele pode diminuir.”
Salazar: Importante observar como ele usa esse ‘nós’, quem cabe nesse ‘nós’? Nós do governo, nós do governo e da Petrobrás? É ambíguo. Aí, quando baixa o preço, ele diz ‘baixamos o preço’. Tem esse ‘nós’ de novo, sempre ambíguo
02/02/2020 – Metropóles
Bolsonaro: “Pela 3ª vez consecutiva baixamos os preços da gasolina e diesel nas refinarias, mas os preços não diminuem nos postos, por que (sic)? Porque os governadores cobram, em média, 30% de ICMS sobre o valor médio cobrado nas bombas dos postos e atualizam apenas de 15 em 15 dias, prejudicando o consumidor.”
Salazar: Aqui ele cria um outro inimigo, que são os governadores, que cobram o ICMS. É interessante ver que ora ele faz parte das forças que intervêm na Petrobrás, ora não. Atualizam o que de 15 em 15 dias? O que essa atualização que ocorre de 15 em 15 dias tem a ver com a média de 30% que é cobrada no ICMS? Eu acho muito interessante como ele fala não dos governos estaduais, dos estados, mas dos governadores. Em quase todos os enunciados tem essa estratégia de criar o rival, às vezes os governadores, às vezes a Petrobrás. O STF, mesmo quando ele parabeniza, é uma espécie de instância rival também, que merece cumprimentos só quando faz o que ele acha que deve ser feito.
06/02/2020 – Correio Braziliense
Bolsonaro: “Parece que hoje diminuiu de novo preço do combustível? Não tenho certeza ainda. Se diminuiu, com todo o respeito, não pode diminuir mais, porque não chega para o consumidor. Não chega. Se não chega ao consumidor, a gente está dando varada na água. Eu estou mostrando que a responsabilidade do preço do combustível é minha e são dos governadores também. É só isso, mais nada. Não fiquem só jogando em cima de mim.”
Salazar: É interessante ver quais são os contextos em que ele se aproxima da Petrobrás e mostra poder sobre ela, e os contextos em que ele se coloca completamente à mercê do que a Petrobrás decide. Aqui ele está falando que a responsabilidade é dele, sendo que lá atrás ele insistiu mil vezes que a Petrobrás se vira sozinha e que ele não tem como interferir.
01/10/2020 – UOL
Bolsonaro: “Parabenizo o STF, que no dia ontem, por 6 x 4, autorizou a Petrobrás liberar venda de refinarias, sem o aval do Congresso.”
Salazar: Ele parabenizar o STF é engraçado, porque ele vive querendo desconstituir o STF. Aí ele parabeniza justamente quando o STF libera a Petrobrás para realizar as vendas das refinarias, pra ir deixando de ser o que é… ir deixando de ser Petrobrás.
18/02/2021 – BBC
Bolsonaro: “Eu não posso interferir, nem iria interferir. Se bem que alguma coisa vai acontecer na Petrobrás nos próximos dias. Você tem que mudar alguma coisa, vai acontecer.”
Salazar: É interessante como ele vai ao longo do tempo assumindo que pode, sim, mandar na Petrobrás. O que significa esse ‘iria’? A hipótese é de que ele não pode interferir, mas vai. É um pressuposto, tem um elemento linguístico que nos leva à pressuposição, quer dizer, um elemento posto indica o pressuposto: não ‘iria’ interferir, então vai? E o resto da fala confirma: ‘Tem que mudar alguma coisa, vai acontecer’. E importa muito o efeito do modo como diz isso: avisa que algo vai acontecer sem dizer o quê ou da parte de quem. É nebuloso até na maneira como faz uma ameaça.
27/09/2021 – CartaCapital
Bolsonaro: “Não posso fazer milagre. Quem arrebentou com a Petrobrás foi o PT. Mais de 200 bilhões de reais gastos com refinarias que não aconteceram. É a conta para quem bota combustível no carro pagar.”
Salazar: É muito interessante observar que as construções dele são fundamentalmente por justaposição, ele enuncia sentenças sem muitas articulações explicitadas, sem conjunção. Ele não conecta uma afirmação com outra, estabelecendo uma lógica entre elas, ele justapõe. Vai falando em bloquinhos, em soquinhos. E assim deixa no ar tudo o que afirma. O que significa refinarias que não aconteceram? Elas não foram feitas, elas foram feitas e não entraram em funcionamento? Falta, nesse tipo de afirmação que ele faz muitas vezes, justamente o elemento da conjuntura, a circunstância constituída que permitiria interpretar o enunciado.
14/10/2021 – Folha de S. Paulo
Bolsonaro: “Já tenho vontade de privatizar a Petrobrás, tenho vontade. Vou ver com a equipe da economia o que a gente pode fazer.”
Salazar: Essa oscilação é um elemento interessante. Acho que vale a pena dizer que essa oscilação se apoia em algumas marcas de seu modo de falar sobre qualquer tema. Primeira coisa, ele tem um repertório lexical restrito, o vocabulário dele é muito restrito, sem expressividade, sem qualquer marca própria. Nas falas dele você vê expressões de mercado, repetidas ipsis litteris, às vezes expressões mais populares, mas sem qualquer marca autoral, sem qualquer perspectiva de uma opinião própria. E, junto com isso, ele está sempre comentando o que outro fez, e mesmo quando é um elogio, como quando parabeniza o STF, é por um caminho que ele não assume como sendo o que ele vai levar a cabo. Mesmo depois, quando avisa que não vai interferir mas vai interferir, chega a esta afirmação: ‘eu já tenho vontade de privatizar a Petrobrás’ – ter vontade é expressão de um desejo não exatamente uma posição ou uma ação assumida, né?
16/02/2022 – G1
Bolsonaro: “Muita gente me critica, como se eu tivesse poderes sobre a Petrobrás, não tenho poderes sobre a Petrobrás. Para mim, é uma empresa que poderia ser privatizada hoje, ficaria livre deste problema. E a Petrobrás se transformou na Petrobrás Futebol Clube, onde o clubinho lá de dentro só pensa neles, jamais pensam no Brasil.”
Salazar: Chama atenção – e muitos analistas têm falado nisso há tempos – que ele nunca fala como um estadista, fala sempre como uma pessoa que está ali, tentando jogar o jogo. E isso eu acho muito interessante, uma ‘pessoa comum’, ‘mais um filho de Deus nessa canoa furada…’. E de novo a oscilação, às vezes ele está com a Petrobrás, às vezes a Petrobrás está contra ele…O próprio termo ‘Petrobrás’ fica sem sentido claro.
13/06/2022 – Estado de Minas
Bolsonaro: “A Petrobrás não tem um viés social, previsto na própria Constituição. Está tendo lucros abusivos. Quanto maior a crise, maior o lucro que a Petrobrás tem. […] O povo está vendo que a Petrobrás só visa lucro, nada mais além disso.”
Salazar: Ele fala sempre direto às emoções das pessoas, ele não chama ninguém à razão, não pede pra entenderem nada, não é de entendimento que se trata. O modo como ele fala convoca uma adesão a uma pessoa que está no mundo tentando lidar com a loucura à volta. E aí é que muita gente se identifica com ele e, inclusive, vê nele honestidade.