O coronavírus mata, mas a desigualdade social acelera o óbito

 

Como bem colocou o repórter Michel Silva, do portal Favela em pauta, as favelas apresentam alta densidade populacional, casas muito próximas e limitações estruturais para garantir o isolamento adequado em caso de contaminação pelo novo coronavírus.

Desde o começo da semana, múltiplos grupos de comunicadores e ativistas periféricos das cinco regiões do Brasil trabalham de forma desenfreada entre videochamadas e centenas e centenas de mensagens em grupos de WhatsApp no esforço de trocar informações e levar para a parcela mais vulnerabilizada da população ações práticas sobre como lidar com a Covid-19.

As autoridades precisam ter especial atenção com as condições sanitárias destes lugares, por conta das nossas limitações estruturais, fruto de várias formas de exclusão social —a necropolítica racista.

Após a infecção, os riscos de adoecimento e morte, segundo a Organização Mundial da Saúde, são maiores para pessoas com hipertensão, diabetes, doenças do coração, doença respiratória crônica e câncer. Algumas destas doenças crônicas são mais frequentes na população negra em comparação com a predominância na população branca, e com o cenário agravado pelas diferenças de classe.

Nós devemos ser os mais atingidos pela explosão que, segundo o Ministério da Saúde, ocorrerá nas próximas duas semanas. Além do saneamento básico precário e da população com pouco acesso à saúde de qualidade, algumas favelas do Rio de Janeiro também estão sem água.

As soluções para a atual pandemia precisam visar o bem-estar de quem não tem todo o suporte necessário para lidar com uma situação como essa, diferentemente da proposta do governador fluminense, Wilson Witzel, que propôs colocar moradores de favelas em navios.

Diariamente os veículos de comunicação tradicionais repercutem as coletivas de imprensa dos governantes —principalmente as televisões, que por vezes dedicam parte considerável da programação às declarações dos políticos.

A idosa isolada em casa em São Miguel Paulista vê mais o João Doria do que os netos, a faxineira de um importante prédio comercial na Faria Lima assiste diariamente Donald Trump anunciar medidas sobre os Estados Unidos e o presidente da OMS (Organização Mundial da Saúde) explicar como a Europa se tornou o epicentro do vírus, mas nenhuma delas sabe qual é a situação dos bairros em que moram.

É nessa lacuna de informação que os veículos independentes e os coletivos que cobrem as periferias deste país têm desempenhado um papel de excelência ao fornecer informação precisa, sem alarmismo e conteúdo de qualidade próximo da realidade das pessoas.

Afinal não é disso que se trata o jornalismo? Interesse público. É de interesse público saber as medidas adotadas pelos governos, mas também é de interesse de boa parte da população compreender quais são as medidas de precaução para quem não pode comprar álcool em gel e não tem água encanada para lavar as mãos constantemente.

Agência Mural ocupa a grade de um importante jornal matutino de uma das principais emissoras do país, com o quadro Giro da Quebrada, onde informa diariamente a situação das UBS, das escolas, das farmácias, do transporte público, justamente nessa tentativa de aproximação. A Ponte Jornalismo não para de denunciar os desmandos do governo paulista, que continua ordenando reintegrações de posse em comunidades periféricas, onde a doença —que chegou ao Brasil pela elite paulistana— pode ter disseminação muito mais intensa.

Estes são alguns dos muitos exemplos de cobertura jornalística responsável que não relega às periferias o esquecimento diante de um fato tão importante da vida pública do país. A pandemia atingiu o Brasil sem prenúncio, testou a capacidade de reação das autoridades e de cobertura responsável dos jornalistas.

O assunto domina o Twitter como principal tema de conversas nas redes —não só conversas como também informação. Os principais órgãos de saúde atualizam informações sobre a pandemia por meio da rede social. O movimento está tão grande que trocas reflexivas têm promovido alertas importantes.

É o que ocorre com a hashtag #COVID19NASFAVELAS, que traz uma realidade desconhecida por quem não vive nas favelas, além de mostrar como as recomendações de saúde não costumam atender a essa população. E como isso tem ajudado a desconstruir recomendações? Comunicadores e ativistas digitais das favelas, com acesso à internet, informação e redes sociais, compartilham suas visões muito bem embasadas em conteúdos de órgãos oficiais a fim de alertar quem não tem o mesmo entendimento ou acesso.

Logo, o que vemos aqui? Um instrumento de conscientização política e reutilização de redes sociais em tempos de crise —não só informar e movimentar mas também desconstruir e unir. A tecnologia é ferramenta para gerar mudança, mas a mudança é humana.

Como o Raull Santiago escreveu, as dicas de prevenção e tentativas de evitar a proliferação da Covid-19 são muito importantes, mas falhas, quando não contemplam a realidade de uma grande parte da população do país. Nesta mesma Folha a galera da Agência Mural frisou como evitar propagar o pânico, enfatizar as verdades sobre a doença e trazer contexto sobre as periferias é fundamental para cumprir nosso papel neste momento.

Na nossa realidade, a quarentena também é um direito negado para moradores de periferia e a parte da população negra. Nosso povo, principalmente os mais velhos, requer cuidados: cancela churrasco, beijo, bodega. Sem perder o afeto, mas se prevenindo. Precisamos nos aquilombar e, ao mesmo tempo, politizar a distribuição desigual de recursos de saúde e saneamento básico.

As políticas públicas, metas e planos que os governos traçam para alcançar o bem-estar da sociedade deveriam ser pensados respeitando o princípio da igualdade. Segundo este princípio as pessoas colocadas em situações diferentes deveriam ser tratadas de forma desigual. Sendo assim, como diria Nery Junior, dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades.

Isso significa que o poder público, com a realidade de recursos limitados ou escassos, devem, ao formular políticas públicas, focar nos grupos mais vulneráveis. Em tempos de crise, essas demandas ficam ainda mais latentes e trazem ao centro do debate o papel do Estado enquanto única esfera capaz de reduzir as desigualdades existentes na sociedade e manter a coesão social.

A omissão do Estado perpetua as estruturas da invisibilidade, e consequentemente, o direito à vida digna, capaz de assegurar a saúde e habitação, garantias essas previstas na Declaração de Direitos e Humanos e Constituição Federal de 1988, entretanto distribuídos de forma excludente nas diversas hierarquias das classes sociais. Territórios invisibilizados apresentam-se como locais de maior vulnerabilidade, sendo alvo de rupturas nos espaços e dinâmicas sociais; entre elas o acesso ao SUS. É dever do Estado estruturar políticas públicas que contemplem as especificidades da população subalternizada, pois o coronavírus mata, mas a desigualdade social acelera o óbito.

O direito a quarentena é excludente, estando os favelados e suburbanos na base da marginalização econômica, sendo o corpo negro coisificado e reconhecido como uma unidade de trabalho lucrativa e suas subjetividades não reconhecidas nos planos de contingências.

Mulheres negras na ocupação de domésticas cuidando de suas empregadoras infectadas, que na correria pela sobrevivência não podem negar o trabalho, são expostas ao vírus —e ao mesmo tempo seu acesso negligenciado à saúde. É necessário medidas emergenciais que efetivamente resguardem essa população, pois a crueldade da escolha entre morrer de vírus ou de fome não deve ser normatizadas.

O mito da democracia racial é escancarado diante de uma pandemia, perpetuando a exclusão de caráter estrutural e estruturante do racismo brasileiro, tendo impacto crucial nas construções de políticas públicas de saúde não equitativas nos planos de contingência.

O vírus chega ao nosso país a partir das altas classes sociais, mas, ao se disseminar pelo território nacional, não prevê as diferentes realidades —especialmente a da população negra. O Estado perpetua sua omissão e se posiciona estrategicamente na negação das mazelas da escravidão e no não combate efetivo aos efeitos das desigualdades que nesse contexto são ainda mais fatais.

Nesse momento, é necessário que as autoridades do país entendam que não basta apenas dar dicas excludentes ou “vouchers” simbólicos. Enquanto o Estado pratica medidas ineficazes, patrões seguem retornando de suas viagens no exterior, mantendo seus empregadxs domésticxs no serviço, ignorando todas as medidas apontadas pelos órgãos de saúde e perpetuando a exploração e desumanização de trabalhadores e famílias em situação de vulnerabilidade social.

Todas as alternativas que tornam viável a promoção da saúde e a contenção do avanço da nova doença passam pela justiça social. Se o tema permanecer distante do radar dos líderes na política nacional, seguiremos os piores exemplos do mundo no combate ao novo coronavírus.


*Colaboraram Jefferson Barbosa, Renato Silva, Nina da Hora, Weslley Galzo, Raull Santiago, Salvino Oliveira, Rene Silva e Joyce Trindade