Por Thaís Mota, jornalista do Sindipetro-MG
Maior mineradora do Brasil e maior produtora de minério de ferro do mundo, a Vale acumula em seu histórico inúmeros crimes ambientais e tragédias humanas. No caso mais recente, em Brumadinho (MG), a busca incessante por maior lucratividade e a omissão da empresa em relação aos riscos inerentes às atividades que desempenha custou a vida de mais de 300 pessoas, sendo a grande maioria das vítimas trabalhadores da própria companhia, e a morte do rio Paraopeba, afluente do rio São Francisco.
Esse é o segundo crime dessa proporção cometido pela Vale no estado de Minas Gerais. Há três anos, uma barragem de mineração da Samarco (controlada pela Vale e BHP Billiton) se rompeu matando 19 pessoas, destruindo completamente um distrito do município de Mariana e matando o Rio Doce. Além das vítimas diretas, a tragédia atingiu milhares de pessoas que tiveram o abastecimento de água suspenso, o próprio sustento suprimido (famílias inteiras que viviam da pesca no Rio Doce) ou que perderam seus empregos em razão do impacto para as cidades atingidas. Até hoje, nenhuma multa ou indenização foi cobrada da Vale, bem como nenhuma das casas destruídas no crime foi reerguida.
Agora, ao vermos a tragédia se repetindo, veio à tona um debate acerca do papel da privatização da Vale em 1997 e o modelo de exploração de minério que atualmente é adotado no País e que, no caso da mineradora, já acumula inúmeras perdas humanas e ambientais. Mas, esse é um debate que geralmente provoca divergências pois carrega consigo diferentes concepções de mundo, de modelo de País, e de diretrizes econômicas.
A Vale saltou de um lucro anual de R$ 756 milhões em 1997 para R$ 17,6 bilhões em 2017, o que segundo um estudo “A Vale no Novo Contexto da Internacionalização das Empresas Brasileiras”, do economista Armando Dalla Costa, deve-se à valorização do preço do minério de ferro no mercado internacional na década de 2000 e à incorporação pela Vale de outras empresas. Isso, segundo o estudioso, inviabiliza a comparação entre a Vale antes e depois da privatização, uma vez que a empresa passou por uma ampla transformação.
No entanto, alguns dados e relatos demonstram o processo de sucateamento da empresa nas vésperas e também logo após passar às mãos da iniciativa privada. Além disso, nenhum acidente tão grave havia sido registrado antes da privatização e do processo de ampliação da internacionalização da Vale associado ao “boom” da mineração. “Na análise dos últimos 45 anos, observa-se forte correlação entre o ciclo de pós-boom (fase de desvalorização dos preços dos minérios após ciclo de valorização) e o aumento do número de rompimento de barragem”, destaca o livro “A questão mineral no Brasil: Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/ Vale / BHP Billiton”, organizado por Marcio Zonta e Charles Trocate.
Um petroleiro e ex-trabalhador da Vale, que não vamos identificar para evitar represálias, acompanhou o período de privatização da companhia. Ele entrou na empresa como estagiário na década de 1990 e, em seguida, foi contratado como técnico de manutenção na área de instrumentação. Trabalhou na Mina Carajás (PA) e deixou a empresa em razão do processo de sucateamento provocado pela privatização.
“Uma das primeiras mudanças foi a terceirização em massa. No meu setor, por exemplo, havia 30 funcionários antes da privatização. Desses, apenas quatro permaneceram e todos os outros foram substituídos por terceirizados que ganhavam um terço do que os funcionários da Vale recebiam. Até que, em dezembro de 1997, eu não suportei a pressão e pedi demissão pois era uma responsabilidade muito grande. Eu era líder de uma equipe composta por outros quatro trabalhadores, sendo dois mecânicos, um eletricista e um instrumentista. Eu conhecia o serviço do eletricista e do instrumentista, mas não tinha qualquer conhecimento sobre mecânica e, ainda assim, era responsável pelo serviço realizado por dois mecânicos. Foi aí que saí”.
Também nesse período foram contabilizadas centenas de demissões. Visando maximizar os lucros e encher os bolsos de seus acionistas, a Vale lançou um Programa de Demissões Incentivadas (PDI) que, até novembro de 1997, foi responsável pelo desligamento de 3.300 funcionários. Isso representou a uma redução de 21,8% do quadro de pessoal da empresa na época, fazendo com que os empregados ficassem sobrecarregados e, consequentemente, os processos mais desprotegidos e sujeitos a erros.
Ainda conforme o petroleiro ouvido pelo Sindipetro/MG, o processo de mudança nas diretrizes da empresa teve início pouco antes da venda da estatal, que ocorreu em 6 de maio de 1997. “Até 1996, qualquer equipamento que quebrava, fazia-se uma solicitação de peça nova e era feita a substituição. Já no início do ano seguinte, começou-se a se fazer remendos e não mais trocar equipamentos. Outra mudança foi em relação à parada de manutenção. Uma vez por mês era realizada uma parada de 24 horas na usina para manutenções não emergenciais. Após a venda da Vale, só se fazia manutenção naquilo que era urgente e passamos a operar com tomadas de emergência amarradas com arame, o que começou a elevar o número de acidentes de trabalho na companhia”.
Ele faz ainda um paralelo do que aconteceu com a Vale com o que ocorre hoje na Petrobrás, ameaçada de privatização pelo atual governo. “É parecido com o que estamos vivendo hoje: está ocorrendo um sucateamento nas unidades da Petrobrás, há uma deficiência nas manutenções e, com isso, um aumento dos acidentes com trabalhadores. Além disso, a omissão da empresa, que não se pronuncia oficialmente sobre a possibilidade da privatização, também cria um fator emocional que afeta os petroleiros. Esse foi exatamente o processo que experimentei na Vale”.
De acordo com o diretor do Sindipetro/MG, Osvalmir Maciel de Almeida, o sucateamento da Vale antes da privatização também foi vivenciado pelos petroleiros na década de 90, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso também tentou privatizar a Petrobrás. E, naquela época, como agora, o índice de acidentes cresceu e culminou em um vazamento de nafta na Refinaria Gabriel Passos (Regap), em Betim, onde cinco trabalhadores morreram e vários outros ficaram feridos, e na explosão da plataforma P-36, que matou 11 trabalhadores. “Na busca por melhores lucros, as empresas privadas trabalham no limite da segurança. Porém, na margem de erro, é a vida do trabalhador que está em risco. E assim aconteceu em Brumadinho, em que o escritório da empresa ficava imediatamente abaixo de uma barragem com alto potencial de dano”.
CPI das Mineradoras
No último dia 4, a deputada estadual Beatriz Cerqueira protocolou pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais para investigar o crime da Vale em Brumadinho, as barragens e as mineradoras em operação no Estado.
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[Via Sindipetro-MG]