O pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), José Sérgio Gabrielli, elaborou uma análise da Nova Lei do Gás, aprovada ontem pela Câmara dos Deputados, apontando para as incoerências das justificativas para a sua adoção e para consequências negativas para o mercado brasileiro.
“Dois fracassos mostram os limites da ilusória mudança da regulamentação do mercado de gás natural no Brasil: a licitação para os volumes de gás que a Petrobras abriu mão no contrato com a Bolívia e a licitação sobre o terminal de regaseificação na Bahia. Ambas não tiveram concorrentes”, comenta o pesquisador em Relatório Técnico produzido para o Ineep.
Acesse o Relatório Técnico: clique aqui.
O relatório destaca para o papel da Petrobras no segmento a partir do “apagão elétrico” do governo FHC, quando se iniciou audacioso programa de termoelétricas a gás natural para dar mais estabilidade a geração de eletricidade para o país, com um enorme conjunto de gasodutos, estações de compressão, city gates e termoelétricas. E faz um histórico das mudanças ocorridas de 2016 para cá com a criação de programas que reduziram o papel da Petrobras.
Ainda alerta:
A Petrobras era a principal âncora da expansão dessa indústria de rede, que exigia investimentos indutores de grande monta. A Petrobras executou a difícil tarefa de expandir o mercado de gás no país”, comenta Gabrielli. “Nessa mudança atual, do século XXI, a Petrobras está encolhendo, concentrando-se na produção de petróleo do pré-sal e querendo sair do mercado de gás natural, tanto com a venda de seus ativos, tanto de produção como de logística, atraindo outros players, como abandonando planos de expansão no setor. As mudanças regulatórias tentam acelerar a saída da Petrobras do setor.
Gabrielli comenta que as mudanças promovidas pela Nova Lei visam reduzir o papel da Petrobras, mas isso pode gerar uma forte descoordenação em vários elos da cadeia de gás natural, uma vez que a indústria brasileira tem características bastante distintas de mercados desenvolvidos, como o europeu. O pesquisador explica:
A ANP deseja seguir os passos da desregulamentação do mercado atacadista de gás natural da Europa, sem levar em conta as diferenças de infraestrutura instalada, fontes de suprimento e regulação dos mercados domésticos do Brasil e da Europa. Na Europa, os setores que “já participam da indústria” na oferta do gás natural são, na maioria das vezes, empresas estatais da Rússia e do norte da África que continuam com seus papeis. (…) Diferentemente da Europa, no caso do Brasil, a retirada da Petrobras é extremamente difícil, devido à sua presente escala em toda a cadeia de gás natural e às importações de GNL, que dependem dos preços internacionais.
Ele ainda analisa cada ponto alterado no sistema vigente para o mercado de gás natural com a aprovação da Nova Lei do Gás, chegando à seguinte conclusão:
Como a experiência de desregulamentação dos mercados de gás natural na Europa e nos próprios EUA demonstraram, a indústria de rede que é o gás natural exige uma articulação dos vários segmentos do mercado para garantir a eficiência e a entrega dos resultados.
A maturidade do desenvolvimento da infraestrutura básica de transporte e escoamento é fundamental para determinar o grau de descentralização das atividades, abertura de competição e quebra de monopólios naturais.
O Brasil está querendo acelerar seu processo de unbundling, desencapotando aceleradamente o papel de articulador central do sistema da Petrobras, sem clareza dos papeis que os agentes descentralizados terão no novo modelo. Um dos pontos utilizados pelos defensores do novo marco regulatório é que a Nova Lei do Gás promoverá um “choque de energia barato”.
Todavia, o relatório aponta as dificuldades para se alcançar esse objetivo a partir dessa Lei.
Primeiro, porque os terminais de regaseificação existentes, e principalmente os novos, vão depender cada vez mais dos preços internacionais, particularmente o JKM, que regula a precificação na Ásia-Pacífico e que acaba por definir os limites do preço da molécula para o Atlântico Sul. A descentralização e encurtamento dos contratos de transporte, com uma posição mais ativa das distribuidoras de gás natural poderá até ocorrer, mas sem o aumento da disponibilidade da molécula ou produzida ou importada, poderá levar via aumento da competição entre os demandantes, até a uma elevação, e não contração como desejado pelos formuladores do modelo, do preço do energético no Brasil.
Segundo, no caso do gás liquefeito de petróleo (GLP), a lei do gás tem praticamente nenhum impacto sobre esse tipo de derivado. O gás natural e o GLP são dois produtos distintos e sua oferta depende da capacidade de refino, das UPGNs e da composição do gás extraído em termos de moléculas mais pesadas do que o metano. Os mercados têm estruturas industriais distintas e o papel da distribuição e modais também são completamente diferentes.
Outra falácia ideológica falseadora da realidade é atribuir apenas às exigências do processo de concessão da Lei do Gás a inexistência de novos gasodutos de transporte desde 2009, quando a lei foi instituída. A não existência dos investimentos em infraestrutura de transportes, ao contrário, revela que na fase de implantação do setor, apenas grandes grupos com foco na expansão do mercado vão investir, exigindo a presença de empresas ancora para fazer deslanchar a infraestrutura necessária para o crescimento da demanda, muitas vezes ampliando a capacidade antes da existência do consumo. Assim fez a Petrobras.
Foram milhões de dólares investidos na construção da infraestrutura do gás natural e na correção dos rumos de projetos de termoelétricas, que deram grandes prejuízos à companhia do tempo do programa emergencial depois do apagão elétrico. Agora ela perde esses ativos, calada e silenciosa em direção ao matadouro.
[Do site do INEEP]