Em alta, recém chegado do Vaticano, onde participou de encontro de 100 movimentos populares do mundo com o papa Francisco, líder do MST não teme “viúvas da ditadura, que fizeram até o PSDB passar vergonha”; João Pedro Stédile afirma que qualquer tentativa de quebra da ordem institucional traria o elemento da violência; “Seria destampada a caixa de pandora da revolta popular”, avaliou; na condição de ser um dos poucos brasileiros que, com uma palavra, pode ‘colocar o povo na rua’, ele lembrou em entrevista publicada originalmente no Brasil 247: “Brincar com a democracia é muito perigoso”
O quadro referencial do MST João Pedro Stédile acaba de chegar do Vaticano. Pela primeira vez na história da Igreja, oficialmente um papa avaliza uma grande reunião de movimentos populares. No caso, o encontro de uma centena de entidades, pensada e organizada pelos brasileiros do MST com seus colegas de luta pelo mundo. “O papa Francisco demonstra ter consciência das mudanças que precisam ser feitas”, afirmou Stédile.
Mas, de volta ao Brasil, o que esperava o líder dos sem terra era um país em que setores de elite já discutiam as chances de uma quebra da ordem. Mais radicalmente, em cartazetes levados à avenida Paulista, em duas passeatas com menos de 5 mil pessoas no total, alguns pediram a tal “volta dos militares”. De modo mais sofisticado, articulações em Brasília, a partir do escândalo de corrupção na Petrobras, vislumbram a chance de envolver a presidente Dilma Rousseff entre o cientes e tomar-lhe, pelo impechment, o poder. Adeptos do caminho mais curto para este fim apostam num golpe de caneta do ministro Gilmar Mendes, do STF, que poderá censurar as contas da campanha do PT e atalhar uma crise institucional.
Stédile, um dos poucos brasileiros que tem condições, como se diz, de ‘colocar o povo nas ruas’, desdenha das três alternativas.
– Não vejo um movimento golpista. A conjuntura não permite, não haveria a menor chance de sucesso, diz ele.
– Numa hipótese mais radical, a burguesia sabe que estaria aberta a caixa de pandora da revolta popular. E isso é muito perigoso, completou.
Por e-mail, o líder popular que batalha há mais de 30 anos no mesmo campo social, sem ter caído em tentação de
– O sr. pressente algum tipo de movimento golpista contra a democracia e o resultado das eleições presidenciais? Onde ele se dá? Nas ruas, na mídia, na classe política?
João Pedro Stédile – Não vejo um movimento golpista. E não teria nenhuma chance de sucesso na atual conjuntura. Os tucanos chamaram mobilizações de protestos dia 15 de novembro, que são normais na democracia. E lá se infiltraram algumas viúvas da ditadura militar, que não merecem crédito, que não têm base na sociedade. Até os tucanos ficaram com vergonha. Os partidos da direita sabem que a tentativa de um golpe seria destampar a caixa de pandora da revolta popular. E isso é muito perigoso. A mídia no Brasil é o principal partido ideológico da direita. Mas sua função é manter o governo acuado, com medo de fazer mudanças. Além disso, fazer uma campanha permanente na sociedade mantendo a hegemonia da visão de mundo burguesa, defendendo sempre os interesses dos privilegiados e os falsos valores do individualismo, egoismo e consumismo, como se isso fossem valores da liberdade e da democracia.
– A tese de impeachment da presidente Dilma Rousseff pode prosperar? O sr. vê motivos para isso?
Não há nenhum motivo real. A presidenta não está envolvida em nenhum crime. Esse movimento é absolutamente antidemocrático, de quem não se conforma com a vontade da maioria do povo. Alegar conhecimento de fatos de corrupção em empresas estatais é simplesmente fantasioso. Os fatos que vieram à tona na Petrobras estão sendo perpetuados há 15 anos, segundo a Procuradoria-Geral da República, portanto, iniciaram no governo FHC. Os diretores envolvidos foram indicados por partidos conservadores. Não me consta que algum deles tenha ficha no PT. Por outro lado, há denúncias de corrupção no governo FHC e em muitos governos estaduais e municipais, e não tenho notícias de algum pedido de impeachment.
– Como o MST se posicionará diante desse quadro?
Defendemos que todos os casos de corrupção sejam investigados à exaustão e denunciados, sobretudo os corruptores, que na maioria das vezes saem impunes. Todos os que cometeram algum delito devem pagar por eles. É preciso que a sociedade se dê conta que a corrupção é um modo de agir permanente no capitalismo, em que as empresas e seus políticos procuram se apropriar de recursos públicos. Por isso, sempre existiu corrupção neste país. E a única forma de combatê-los, não é apenas usar a Polícia Federal, porque é impossível controlar. A forma de combatê-la é aprofundar mecanismos de participação popular na gestão pública, em que povo tenha mais informações e instrumentos para acompanhar. Enquanto a administração pública for apenas um privilégio de algumas pessoas, partidos e empresas, sempre haverá corrupção em todos os partidos que chegarem ao governo, seja federal, estadual e municipal.
– O fato de a presidente não ter criado nenhum fato político importante desde a eleição pode estar contribuindo para a desestabilização do governo?
Não acredito em desestabilização do governo. Estamos vivendo um período de transição do primeiro para o segundo mandato, que sempre é muito lento e tensionado, pelos grupos que querem influenciar o próximo governo. Embora para a pequena politica o fato da presidenta ter tirado uma semana de férias e depois uma longa viagem ao exterior estimulem especulações de todo tipo.
– Como os movimentos sociais e, em particular, o MST devem se comportar nesse quadro político agitado?
Esse período de transição até janeiro é sempre de debates e de expectativas. Acho que os movimentos sociais deverão se preparar e ampliar a pressão social nas ruas, fazendo luta social para que os problemas do povo sejam resolvidos de uma forma mais rápida. E nenhum governo do mundo, federal, estadual ou municipal funciona sem a pressão do povo. Os problemas de moradia, transporte público, especulação imobiliária, juros estratosféricos, falta de terra e vagas restritas na universidade estão ai, pedindo soluções urgentes.
– O que o sr. espera do futuro governo Dilma?
Espero que o governo saiba entender o recado das urnas e a vontade da imensa maioria de nosso povo. Nosso povo quer mudanças, mudanças no governo, mudanças na forma de fazer politica e mudanças que possam acelerar a solução de seus problemas. E o governo precisa sinalizar que quer fazer mudanças para resolver os problemas do povo. Esses sinais podem ser simbólicos na composição do novo ministério, como devem ser reais, na apresentação de propostas concretas.
Todos os movimentos sociais temos propostas concretas de soluções praticas. Basta o governo ser mais humilde, convocar cada setor e terá as propostas necessárias para as mudanças. Se o governo não fizer isso, corre o risco de cair num descredito popular e navegará na mesmice, do mais do mesmo, que não resolve nenhum problema e só aumentará a tensão social, que voltará nas ruas, com mais força. E ai contra o governo também.
– Qual sua expectativa sobre o tipo de oposição parlamentar que será feita?
O Congresso brasileiro infelizmente tem se revelado um balcão de negócios. O financiamento privado das campanhas deformou sua representação em relação à sociedade. Apenas dez empresas elegeram 70% dos parlamentares nestas eleições. O Congresso e a democracia brasileira foram sequestrados pelas empresas. Por isso, o povão não acredita mais nos políticos, porque não se sente representado. Os executivos das grandes empresas que se sentem representados por esse sistema político, por ter seus financiados nas campanhas no Congresso. Por isso, só há uma solução, realizarmos uma reforma politica, através da convocação de uma assembleia constituinte exclusiva do sistema político.
– O MST participa da campanha pela Constituinte do Sistema Político, que reúne 400 organizações. O que o movimento quer com essa campanha?
Nós temos uma plenária nacional com mais de 400 movimentos, entidades e organizações, organizamos mais de 2 mil comitês populares em todo o país. Recolhemos quase 8 milhões de votos de eleitores, exigindo a convocação de uma assembleia constituinte. Espero que os poderes da República entendam esse recado. A presidenta Dilma parece que entendeu.
O que queremos é que, seguindo o rito da lei, o atual Congresso aprove um projeto de decreto legislativo, que foi apresentado agora em outubro, com 188 assinaturas de deputados, para a convocação de uma plebiscito legal, em que a população seja consultada se quer ou não uma Assembleia Constituinte para fazer a reforma política. Aprovado o plebiscito, deveríamos realizá-lo ainda em 2015. Aprovada a convocação da Assembleia, que se formasse uma comissão de juristas indicados pelo Congresso para formatar uma proposta de eleição soberana, sem influência do poder econômico, garantindo representatividade popular, de etnias, gênero, para elegermos uma Assembleia exclusiva, para em curto prazo preparar um novo modelo de sistema político para o país. Uma reforma política que não se restrinja a regras de financiamento e listas de candidatos, mas que debata com a sociedade o modelo mais democrático para garantir que a vontade do povo seja cumprida. Para isso, é necessário fazer mudanças no Poder Judiciário e no atual monopólio da mídia, afinal, que fazem parte do nosso sistema politico.
– Como o sr. sente o clima político entre militantes de base e povo em geral? Há base social para uma ruptura institucional?
O povão quer mudanças, quer sinais concretos para acelerar a solução de seus problemas. Os militantes sociais estão organizando comitês e participando ativamente dos debates, para que possamos convocar uma assembleia constituinte. Percebo que há uma reanimação da juventude, em participar da politica. No meu entender, foi essa militância que no segundo turno garantiu a vitória da Dilma, com sua mobilização na campanha. Não há risco de ruptura institucional. O que viveremos no próximo período é um quadro de muitos conflitos, debates e confusão ideológica.
Cabe aos movimentos seguir organizando o povão para fazer luta social. E cabe ao governo dar sinais que quer mudanças.
– Qual sua avaliação sobre a Operação Lava Jato e a situação interna de corrupção na Petrobras?
Sabe-se pela imprensa que esse esquema está montando na Petrobras desde os tempos do governo FHC. É uma vergonha que muitos diretores se locupletaram e se desviaram milhões. Uma vergonha que as empresas pagassem esse pedágio e certamente incluíam depois no custo das obras. Esperamos que a Polícia Federal e a Justiça Federal sejam transparentes, para que toda a sociedade possa acompanhar a realidade dos fatos. Os responsáveis devem ser punidos pelos desvios. O que não podemos aceitar é uma partidarização, que a mídia burguesa está tentando fazer, como se fosse um esquema do PT. Os corruptos e corruptores não tem partidos, têm apenas interesses pessoais. O salutar seria que todas as empresas estatais, do governo federal e de alguns grandes estados como Minas, São Paulo e Rio, também passassem por esse pente fino. A corrupção é um modo particular do capitalismo funcionar na gestão dos recursos públicos.
– O País está avançando institucionalmente, em razão das prisões, finalmente, de corruptores e corruptos, ou esse é apenas um dado normal de um país democrático?
A democracia não pode ser medida pelo número de prisões. A democracia deve ser medida pelo grau de participação popular efetiva nos destinos da Nação. A democracia deve ser medida pelo grau de igualdade que todos os cidadãos devem ter em relação a oportunidades de ter trabalho, terra, moradia, educação e cultura. Infelizmente, o Brasil está muito longe de ser uma sociedade democrática. Ao contrário, estamos entre as sociedades de maior desigualdade social do mundo, apesar de termos a oitava maior riqueza. Portanto, somos uma sociedade altamente antidemocrática.
– O MST pretende se pronunciar formalmente sobre o momento político?
Já estamos nos posicionando nas plenárias de nosso movimento, fazendo debates com nossa militância, participando das plenárias com outros movimentos sociais, nos reunindo com parlamentares e políticos amigos. Nossa pauta é seguir organizando o povo, para lutar por terra, lutar por uma reforma agraria popular, e lutar por uma sociedade mais justa e democrática.
– Quais os reflexos para a luta no campo das confabulações políticas em Brasília?
Brasília é uma ilha da fantasia. O mundo real dos problemas do povo, da cidade ou do campo, ficam muito longe das preocupações de Brasília. Os governos em geral sempre são muito burocráticos e desvinculados da vida real. Como dizia um mestre: ” os governos em geral são surdos e cegos” para as demandas populares. Daí a necessidade do povão se organizar e lutar por seus direitos.
Nós, do MST, esperamos que o Governo Dilma faça muitas mudanças em Brasília no próximo período. Mude a orientação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra. Mude o jeito de administrar a Conab- Companhia Nacional de Abastecimento, transformando-a numa grande empresa que compre todos os alimentos produzidos pela agricultura familiar e garanta o abastecimento a baixos preços aos trabalhadores. Mude a forma de administrar a educação, enfrentando os problemas do analfabetismo, que ainda atinge a 14 milhões de trabalhadores adultos. E a universalização do acesso dos jovens à universidade, hoje restrito a apenas a 15%.
Esperamos que a Dilma chame o MST, os movimentos da Via Campesina e chame todos os movimentos populares para ouvir nossas propostas de soluções de problemas, assim como fez nas eleições. Espertamos que o governo compreenda que só a convocação de uma Assembleia Constituinte pode de fato construir uma reforma politica, que devolva a democracia ao povo.
– O governo da presidente Dilma tem condições de retomar a iniciativa política? Quais medidas deve tomar?
As urnas deram esse poder da iniciativa politica à presidenta. O governo deve atuar de forma simbólica, sinalizando para o povo e para as organizações populares que quer mudanças, ao reorganizar o ministério. E preparar medidas de impacto popular já no primeiro trimestre. O povo está de olho esperando esses sinais.
– O sr. concorda com a tese de que o novo governo ficou velho antes mesmo de ser anunciado?
Não concordo. O governo não tem idade. Ele precisa é demostrar claramente de que lado está. Se está do lado dos bancos, dos especuladores, do capital estrangeiro, das empresas transnacionais, do latifúndio, ou do lado do povo.
– Em particular, qual sua avaliação sobre a postura política de líderes do PSDB, como o ex-presidente Fernando Henrique, o senador Aécio Neves e outros?
Os tucanos têm o direito legítimo de se manifestar e fazer oposição democrática ao governo. Mas seu programa é do passado, e claramente vinculado apenas aos interesses dos bancos e das grandes empresas, o chamado programa neoliberal, que aplicaram durante oito anos no Brasil, e em São Paulo e Minas Gerais por mais de 15 anos. Foram derrotados, porque seu programa não resolve os problemas do povo, só aumentam. Por outro lado, sua postura politica é tipicamente de lideres partidários medíocres, expressão apenas das elites. Por isso, não têm lideres populares em quem o povo confia ou que possam mobilizar e sensibilizar as multidões.
– Como foi a experiência de ter participado do encontro de movimentos sociais no Vaticano? Como foi a experiência de encontrar o Papa Francisco? O que pode falar sobre ele?
A Igreja Católica passou os últimos trinta anos imersa numa visão conservadora do mundo. Isso levou o Vaticano a uma grave crise econômica, política e moral. Por isso, Ratzinger teve coragem de renunciar para encontrar uma saída para a crise. E a saída foi escolher um cardeal progressista, e pela primeira vez em dois mil anos, o primeiro Papa representante da América Latina e do Hemisfério Sul. O papa Francisco demonstra ter consciência das mudanças que precisam ser feitas.
Teve a generosidade e a sabedoria de convocar um encontro mundial, com cem líderes populares de todo o mundo, representantes dos mais diversos segmentos dos trabalhadores, dos mais pobres, sem perguntar qual era a crença, líder, ideologia e programa de cada um. Lá nos reunimos durante três dias para analisar a situação atual dos problemas do mundo. Avaliamos as razões e levantamos possíveis saídas. O papa Francisco esteve conosco e manifestou sua opinião num contundente discurso. Saímos de lá, todos, revigorados, percebendo que independente de etnia, crença ou idade, todos enfrentamos os mesmos problemas e que as soluções dependem de uma grande mobilização mundial. Quanto ao personagem Francisco, me surpreendeu pela simplicidade, coragem e sabedoria. Temos um papa gaúcho, mas acima de tudo universal.