Ruy Braga é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic.
Conceito ressignificado da sociologia francesa juda a compreender as relações trabalhistas no Brasil, especialmente questões como as greves de 2011 e as peculiaridades da atividade dos operadores de call center, afirma sociólogo. “No capitalismo, como o trabalhador é despojado de meios de produção, necessitando vender sua força de trabalho para poder viver, a insegurança o acompanha desde o início de sua trajetória como assalariado. Afinal, ele precisa encontrar alguém que compre sua única mercadoria em condições sociais médias”. A declaração é do sociólogo Ruy Braga na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
Exemplificando suas ideias, ele afirma que “os teleoperadores resumem todas as tendências importantes do mercado de trabalho no país na última década: formalização, baixos salários, terceirização, significativo aumento do assalariamento feminino, incorporação de jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da taxa de rotatividade do trabalho, etc. Por tudo isso, estudar a trajetória e o destino histórico dos teleoperadores no Brasil é tão importante. Eles são uma espécie de ‘retrato’ do precariado pós-fordista em condições sociais periféricas”. As demandas das pautas operárias remetem, via de regra, ao “velho regime fabril despótico, agora revigorado pelas terceirizações e pelas subcontratações”.
A entrevista a seguir foi inspirada no lançamento de sua obra A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).
O que é a política do precariado?
É a prática política do proletariado precarizado em condições capitalistas periféricas. Em primeiro lugar, é preciso compreender o que entendo por “precariado”, conceito que tomei emprestado, ressignificando-o, da sociologia francesa. Trata-se daquele amplo contingente de trabalhadores que, pelo fato de possuírem qualificações escassas, são admitidos e demitidos muito rapidamente pelas empresas, ou encontram-se no campo, na informalidade ou são ainda jovens em busca do primeiro emprego, ou estão inseridos em ocupações tão degradantes, subremuneradas e precárias que resultam em uma reprodução anômala da força de trabalho.
Em países capitalistas periféricos como o Brasil, o precariado forma um contingente enorme da classe trabalhadora, permanentemente espremido entre o aumento da exploração econômica e a ameaça da exclusão social. Em termos teóricos, retirei do precariado, tanto os trabalhadores profissionais, aqueles com qualificações ecassas, por isso, percebendo um salário melhor e mais estáveis, quanto a população pauperizada – envelhecida, acidentada, inapta para o trabalho – além daquilo que Marx chamava de “lumpemproletariado”, ou seja, o “lixo de todas as classes”, indivíduos que vivem de práticas “incofessáveis”, mendigos, etc. Em minha opinião, é a existência de um amplo precariado, e não de um enorme contingente empobrecido, que caracteriza a reprodução do capitalismo periférico.
Assim, busquei caracterizar sociologicamente a prática política desse precariado após a industrialização fordista no país por meio da análise do que eu chamei de “classismo em estado prático”, ou seja, uma relação política baseada em interesses materiais enraizados na estrutura de classes, ainda que carente de recursos organizativos, ideológicos e políticos. Tendo em vista os estreitos limites impostos pelo modelo de desenvolvimento periférico às concessões trabalhistas, assim como a existência de condições sempre precárias de reprodução da força de trabalho, esta prática vê-se obrigada a politizar rapidamente suas reivindicações, radicalizando suas iniciativas. A meu ver, o classismo prático traduz empiricamente um reformismo plebeu instintivamente anticapitalista, sindicalmente refratário à colaboração com as empresas e politicamente orientado pela crença no poder de decisão das bases.
Qual é o seu contexto de surgimento e como pode ser compreendida em nossos dias?
Analisei a formação e as transformações dessa prática política em dois momentos: durante a industrialização fordista no país, isto é, entre os anos 1950 e 1980, e, logo depois, ao longo da transição pós-fordista que deu origem ao regime de acumulação financeirizado brasileiro. Destaquei a relação da prática política do proletariado precarizado com os distintos modos de regulação dos conflitos classistas que emergiram no pós-guerra: as regulações populista, autoritária, neopopulista, neoliberal e lulista.
Atualmente, a política do precariado pode ser sintetizada da seguinte maneira: proximidade do proletariado precarizado com a regulação lulista e com as políticas públicas que estimularam a desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho associada à inquietação social com os baixos salários, com as péssimas condições de trabalho e o com o aumento do endividamento das famílias promovido pelo atual regime de acumulação financeirizado.
Por que a precariedade é inevitável no processo de mercantilização do trabalho?
Basicamente, trata-se de uma característica da própria relação salarial capitalista. No capitalismo, como o trabalhador é despojado de meios de produção, necessitando vender sua força de trabalho para poder viver, a insegurança o acompanha desde o início de sua trajetória como assalariado. Afinal, ele precisa encontrar alguém que compre sua única mercadoria em condições sociais médias. E isso não é nada simples… Historicamente, o desenvolvimento das lutas de classes criou instituições capazes de diminuir essa insegurança, como a previdência social ou o seguro desemprego.
No entanto, em momentos de crise econômica, como o que estamos vivendo hoje na Europa, essas conquistas tendem a ser enfraquecidas pela reação das classes dominantes que procuram restabelecer condições “ótimas” para o consumo da mercadoria força de trabalho, com a diminuição forçada dos “custos” de reprodução e do preço da força de trabalho. Isso significa, em termos práticos, atacar os direitos sociais que marcaram a expansão capitalista no segundo pós-guerra. Evidentemente, esses ataques aos direitos significam um aumento da insegurança social e um aprofundamento da precariedade laboral.
Quais são as peculiaridades do precariado entre os operadores de call center?
Os teleoperadores resumem todas as tendências importantes do mercado de trabalho no país na última década: formalização, baixos salários, terceirização, significativo aumento do assalariamento feminino, incorporação de jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da taxa de rotatividade do trabalho, etc. Por tudo isso, estudar a trajetória e o destino histórico dos teleoperadores no Brasil é tão importante. Eles são uma espécie de retrato do precariado pós-fordista em condições sociais periféricas.
Pensando no contexto brasileiro, como o precariado se apresenta nas greves e nos caminhos tomados pelos movimentos sociais?
Apesar do notório controle do governo federal sobre os movimentos sociais, o atual regime de acumulação pós-fordista consolidou uma face despótica que alimenta uma insatisfação difusa na base, desafiadondo a regulação lulista dos conflitos trabalhistas. Bastaria lembrarmos a onda de paralisações, greves e rebeliões operárias que se espalhou em março de 2011 pela indústria da construção civil, atingindo algumas das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC do governo federal: 22 mil trabalhadores parados na hidrelétrica de Jirau em Rondônia; 16 mil na hidrelétrica de Santo Antônio; alguns milhares na hidrelétrica de São Domingos no Mato Grosso do Sul; 80 mil trabalhadores grevistas em diferentes frentes de trabalho na Bahia e Ceará; dezenas de milhares no Complexo Petroquímico de Suape em Pernambuco, e por aí vai… Tudo somado, o Dieese calculou em 170 mil o número de trabalhadores que, somente em março de 2011, cruzaram os braços.
Nas pautas operárias, encontramos invariavelmente demandas por reajuste dos salários, adicional de periculosidade, equiparação salarial para as mesmas funções, direito de voltar para as regiões de origem a cada 90 dias, fim dos maus-tratos, melhoria de segurança, da estrutura sanitária e da alimentação nos alojamentos… Ou seja, demandas que nos remetem ao velho regime fabril despótico, agora revigorado pelas terceirizações e pelas subcontratações. Apesar disso, as políticas públicas do governo federal têm garantido certo fôlego ao atual modelo, assegurando boas doses de popularidade aos gestores lulistas.
Esse ponto é central: argumentamos no livro que a hegemonia lulista originou-se de uma “revolução passiva à brasileira” apoiada na unidade entre duas formas de consentimento popular: por um lado, o consentimento passivo das classes subalternas que, atraídas pelas políticas públicas redistributivas e pelos modestos ganhos salariais advindos do crescimento econômico, aderiram momentaneamente ao programa governista; por outro, o consentimento ativo das direções sindicais, seduzidas por posições no aparato estatal, além das incontáveis vantagens materiais proporcionadas pelo controle dos fundos de pensão.
Trata-se de uma relação hegemônica que deve continuar se reproduzindo por um bom período, apesar das flagrantes explosões de descontentamento com salários e condições de trabalho, como as que eu mencionei, e que tendem a se intensificar ainda mais no futuro, tendo em vista o cenário de desaceleração econômica.
Em que medida o lulismo se caracteriza pela superação do populismo no sentido da Aufhebung hegeliana (nega, conserva e eleva a um patamar superior)?
Ruy Braga – Ao contrário daqueles que interpretaram a relação do sindicalismo populista pré-1964 com o “novo sindicalismo” do final dos anos 1970 em termos de uma “ruptura radical com o passado”, sustentamos uma posição distinta. Do ponto de vista do relacionamento do precariado com as lideranças sindicais e do relacionamento destas com o aparelho de Estado, argumentamos no livro que a hegemonia lulista, ao mesmo tempo, nega, conserva e eleva a regulação populista. Ou seja, em vez de uma exterioridade formal, percebemos entre os distintos regimes uma relação histórica de superação dialética.
Conforme nosso argumento, o momento “negativo” deve ser buscado no amadurecimento da experiência operária ao longo do ciclo grevista de 1978-1980, o “conservador” na reconciliação da burocracia de São Bernado com a estrutura sindical oficial e a “elevação” na conquista do governo federal em 2002 que possibilitou àquela burocracia sindical converter-se em gestora da poupança dos trabalhadores. Dessa maneira, identificamos a origem – mas apenas a origem – da relação hegemônica lulista no “novo sindicalismo” e sua peculiar combinação de consentimento passivo das bases à liderança da burocracia sindical de São Bernardo com a incorporação ativa daqueles que mais se destacaram durante o longo período grevista iniciado em 1978 ao aparato sindical.