Rede Brasil Atual (RBA)
Uma empresa privada junta-se a uma estatal para realizar uma compra conjunta, mas inclui no contrato uma cláusula de rescisão que obriga o governo a pagar um valor acima do mercado pela sua metade do negócio caso haja discordância entre as partes. Após alguns anos de gestão conjunta, as discordâncias surgem naturalmente ou de forma artificial, e a empresa privada aciona o mecanismo que a faz faturar duas ou três vezes aquilo que investiu inicialmente. Esse é o resumo da polêmica em torno da compra da Refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, pela Petrobras e pela belga Astra Energy, mas se encaixa em diversos outros casos de corrupção envolvendo o principal acionista da empresa estrangeira, o barão belga Albert Frère, homem mais rico daquele país e que é acusado de aplicar o mesmo tipo de golpe em diversos contratos com o governo da França e de outros países desde 1981.
Um dos maiores denunciantes dos esquemas de Frère é o empresário de tecnologia Jean Marie Kuhn, que afirma ter sido vítima de uma tentativa de extorsão nos mesmos moldes em 2009, e que, desde então, trabalha junto à ONG francesa Anticor para impedir o avanço das práticas do barão. Em entrevista à RBA por e-mail, Kuhn afirma que vê no Brasil indícios de casos de corrupção que se tornaram famosos na Europa por envolver os governos dos ex-presidentes franceses Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. "Ele aplica esse procedimento em todos os casos, sem distinção de país. A abordagem é primeiramente política para ganhar a confiança dos dirigentes. Depois a corrupção se instala e os negócios podem começar", conta o empresário.
Como exemplos, Kuhn cita a compra da rede de restaurantes Quick pela estatal francesa CDC em 2007, por um valor que pode ter sido superfaturado em até 500 milhões de euros. O dinheiro desviado é introjetado em outras empresas do belga, como a GDF-Suez, também acusada de ter vendido ao governo francês 25% de uma empresa de distribuição de gás natural, a GRTgaz, por 20 vezes mais que o valor de mercado em 2011. O objetivo, além de aumentar o lucro por meio das fraudes, seria garantir que suas demais empresas estejam sempre "no azul", com prestígio no mercado de capitais.
Confira, abaixo, fluxograma das empresas das quais Frère era acionista ou controlador até maio de 2009, feito com base em publicações das próprias empresas e compilado por internautas. As porcentagens indicam a quantidade de ações controladas por cada empresa até aquela data, e, dentro dos quadros, o valor de mercado das empresas em Euros:
Kuhn aponta ainda que Frère tem o costume de financiar campanhas políticas de partidos de todas as posições nos países onde atua, de forma a ter sempre um ponto de contato com as lideranças que estiverem no poder – no Brasil, nas eleições de 2010, doou para as campanhas do PT e do PSDB para presidente por meio da Tractebel Energia, empresa brasileira controlada pela GDF-Suez. As doações foram de R$ 1 milhão e R$ 500 mil, respectivamente.
Se comprovadas práticas escusas no negócio com a Petrobras, Frère e suas empresas podem ser processadas pela nova Lei Anticorrupção, em vigência desde janeiro deste ano, que prevê punição para agentes corruptores em operação no país ou mesmo que tenham realizado crimes fora do solo nacional, mas com envolvimento de agentes públicos brasileiros. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista de Jean Marie Kuhn à RBA.
O senhor iniciou uma campanha para expor as práticas de Albert Frère após ter sido prejudicado por ele em uma transação. Como esse caso se desenrolou? Qual foi o desfecho?
Uma investigação judicial foi aberta após uma queixa que fiz no dia 24 de julho de 2009 em Charleroi (Bélgica) por falsificação de documentos, fraude e abuso de confiança. A investigação revelou também supostas fraudes fiscais de mais de 100 milhões de euros. Em janeiro de 2014, a Inspeção Especial dos Impostos (ISI), a maior autoridade belga, também começou uma investigação e em março de 2014 o procurador de Bruxelas deu início a uma apuração penal das supostas fraudes. Atualmente, existem só na Bélgica três processos abertos contra Frère.
Àquela época, Albert Frère já praticava golpes em contratos com empresas estatais? Quando essas operações começaram?
Frère tem o hábito de negociar com Estados desde 1981.
Frère, hoje, tem como alvo apenas empresas estatais ou segue aplicando golpes também em empresas privadas?
Ele faz os dois, mas a corrupção é possível apenas com os políticos porque no setor privado ninguém quer ser roubado.
O que é o que o senhor chama de um "pacto de corrupção" entre Frère e os ex-presidentes franceses Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac?
A esposa de Jacques Chirac é a madrinha da filha de Frère. As famílias Chirac e Frère são muito próximas, o que o permitiu realizar inúmeras operações com o Estado francês, primeiro graças ao Chirac e depois ao Nicolas Sarkozy. O modo de operação é sempre o mesmo, ele faz um investimento através de uma empresa em parceria com o Estado e o Estado se compromete a comprar a parte dele a preço de ouro, tanto quando Frère o deseja, como quando os objetivos dele não são atingidos em termos de rentabilidade ou litígio. Nesse último caso, em acordo com os que ele corrompeu, ele inventa uma disputa, prevista no contrato, e o Estado se vê obrigado a comprar a parte de Frère a um preço exorbitante.
A GDF-Suez envolve-se diretamente nos contratos fraudulentos ou é apenas a receptadora do dinheiro acumulado em transações possivelmente ilícitas?
A GDF-Suez recebeu de Frère dinheiro ilícito oriundo da venda da Quick. Mas a GDF-Suez também está envolvida em casos de corrupção, em particular com os contratos assinados com os políticos para obter leis mais favoráveis, especialmente com Gérard Longuet ou ainda com Jean-François Copé, ex-ministros e atualmente parlamentares. Frère conseguiu que o Estado comprasse 25% da GRTgaz a um valor 20 vezes mais caro do que a GDF tinha pago alguns anos antes. São alguns exemplos, mas existem vários outros. Falei desses porque trabalhei bastante em cima desses casos.
Há um padrão nos golpes aplicados por Frère em contratos com empresas estatais pelo mundo? De que forma ele age? Em quais países ele já teria atuado?
Ele aplica esse procedimento em todos os casos, sem distinção de país. A abordagem é primeiramente política para ganhar a confiança dos dirigentes. Depois a corrupção se instala e os negócios podem começar.
O senhor tem conhecimento do caso envolvendo a Astra Energy e a Petrobras? Vê indícios de que ele possa ter aplicado o mesmo tipo de golpe da venda da Quick?
Sim, eu segui um pouco esse caso nas contas da Compagnie Nationale à Portefeuille (CNP, holding que também pertencente a Frère e ao banco francês BNP Paribas) onde eu tinha constatado que a indenização da Petrobras evitou, durante vários anos, que a CNP fosse deficitária. Acredito que trata-se do mesmo modo de operação habitual de Frère.
O senhor afirma que Frère não costuma enganar agentes públicos e políticos, mas, sim, corrompê-los. Isso costuma ocorrer em que escalão do poder público? Há histórico de criação de quadrilhas com a colaboração de servidores públicos em posições intermediárias, mas capazes de direcionar negociações?
Frère negocia em associação com o grupo Power do Canadá, que pertence à família Desmarais. Paul Desmarais e Albert Frère se conheceram em 1981 quando François Mitterrand tornou-se presidente, e quando, juntos, eles instalaram na Suíça a filial mais rica do banco Paribas. A amizade e a cumplicidade deles vem dessa época. Os Desmarais apresentaram Frère aos dirigentes políticos e o introduziram aos meios econômicos e financeiros. Juntos, eles realizam operações nas quais ambos colocam a mesma quantidade de dinheiro. Cada um tem um modo de se financiar, mas Frère cria sua riqueza graças à corrupção. O caderno de contatos faz o resto. Chirac apresentou Frère a Bernard Arnault (LVMH), que também se associou a Frère, etc.
O senhor tem conhecimento de investigações internacionais em andamento sobre Frère? Em que pé estão?
Elas não avançam muito porque geralmente os fatos são antigos, as instituições judiciárias têm poucos meios e são freadas pelos poderes políticos. O efeito midiático é mais eficaz. No meu caso, consegui impedir vários negócios que representam por volta de 8 bilhões de euros. O que fiz foi intervir de maneira eficaz junto aos associados de Frère e aos políticos. Todos ficaram com medo e não ousaram mais se aproximar dele. Ele tornou-se uma persona non grata nos negócios porque revelei as praticas e os métodos dele. A máscara caiu e agora muitos sabem que ele não é apenas mais um no meio do rebanho, mas sim um lobo pronto para comer o rebanho inteiro – no caso, o povo, com cumplicidade do Estado.
No Brasil, as empresas de Frère fazem doações eleitorais para partidos de esquerda e de direita, aos governistas e à oposição. Ele age dessa forma nos outros países onde faz negócios?
Sim, com certeza, assim ele está sempre do lado do vencedor.