Pré-sal e o embate geopolítico estratégico: a maior privatização da história política do Brasil

“Nenhum país do mundo faz o que o Brasil está fazendo: leiloar aos poucos o acesso da produção de petróleo de campos cujo total é desconhecido”, adverte Ildo Sauer, em entrevista concedida à IHU On-Line, ao comentar o leilão do Campo de Libra, anunciado para 21 de outubro deste ano. Na avaliação dele, a iniciativa da Presidência da República é equivocada, porque “não faz sentido” colocar em leilão o Campo de Libra, que, “segundo a Agência Nacional do Petróleo – ANP, pode ter entre 8 e 12 bilhões de barris, apesar de haver estimativas de que possa chegar a 15 bilhões de barris. Se os dados forem esses, trata-se da maior descoberta do país”. De acordo com ele, o “Brasil não sabe se tem 50 bilhões, 100 bilhões ou 300 bilhões de barris. Se o país tiver 100 bilhões, estará no grupo de países de grandes reservas, se tiver 300 bilhões, será o dono da maior reserva do mundo, porque 264 bilhões é o volume de barris da Arábia Saudita”.

Na entrevista, Sauer explica como ocorreu o processo de investigação da camada pré-sal e as razões que levam o Estado brasileiro a optar pelo leilão, ao invés de contratar a Petrobras para explorar as novas reservas petrolíferas. “A minha perplexidade e apreensão é de que o Conselho Nacional de Política Energética, comandado pela Presidência da República, deliberou colocar esse campo em leilão. Parece-me que essa decisão é baseada em problemas da macroeconomia, das contas externas e do déficit público, que tem sofrido uma deterioração considerável nas contas”, menciona. E dispara: “Até agora, a estratégia brasileira está completamente equivocada, e Libra é apenas a cabeça de ponte, é o início de um processo de deterioração e de um papel subalterno que o Brasil está cumprindo nesse embate global entre os países que detêm reservas e recursos e aqueles que querem se apropriar deles pagando o mínimo possível. Petróleo não é pizza, não é boi, não é um negócio qualquer”.

Ex-diretor executivo da Petrobras, responsável pela Área de Negócios de Gás e Energia, entre 2003 e 2007, Sauer assegura que, caso a Petrobras fosse contratada para explorar o Campo de Libra, seria possível pagar o investimento da exploração em no máximo três anos, garantindo uma produção de petróleo por 30 anos, com uma “produção um pouco superior a 1 milhão, 1,5 milhão de barris por dia, que daria um excedente proporcionalmente menor, mas mesmo assim chegaria a algo entre 35, 40 bilhões”.

Ildo Sauer alerta que, quando se trata de petróleo, “um lucro enorme está em disputa”, e o “governo americano quer dobrar a espinha dorsal da OPEP, fazer com que haja novamente uma superprodução de petróleo, que o preço caia e que os benefícios do uso do petróleo voltem a ser apropriados pelos países consumidores, ou seja, os países desenvolvidos”. E acentua: “A ação brasileira parece que é absolutamente ingênua ou destituída de conhecimento do embate geopolítico estratégico em que está se dando esse teatro de operações em torno do petróleo”.

Ildo Sauer é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo – USP.

 

 Como ocorreu o processo de descoberta da camada pré-sal, e como ficou definida que ocorreria a exploração do petróleo no país?

 Há tempo a Petrobras vinha investigando a possibilidade de haver petróleo na camada pré-sal e, para tal, ela buscou parcerias nacionais e internacionais, centros de pesquisa, empresas, para trabalhar na área de elaboração e interpretação das imagens captadas da camada pré-sal.

A ideia se consolidou em 2005, quando se descobriu que abaixo do Campo de Parati, que tem uma camada de 300 metros de sal, havia petróleo leve, ou seja, um pequeno “bolsão” do pré-sal.

Foi isso que deu confiança à diretoria da Petrobras para, em 2006, autorizar a reentrada de investigação para averiguar se havia ou não mais poços de petróleo.

Na primeira tentativa de investigação, chegou-se ao sal sem encontrar petróleo. Por conta disso, houve uma longa discussão e avaliação técnica, e a diretoria da Petrobras autorizou a reentrada da plataforma da TransOcean no Campo — a um custo de 264 bilhões de dólares —, que perfurou os 3 km de sal e encontrou petróleo leve. Estava, então, nesse momento, confirmado o modelo geológico do pré-sal, assim como uma nova realidade muito alvissareira e auspiciosa para o país.

A notícia foi repassada ao presidente da República em 2006, mas mesmo assim o governo federal manteve o leilão de petróleo, o qual posteriormente foi anulado na Justiça.

Aí há um paradoxo que é importante sacar: de um lado a Petrobras avançou em suas pesquisas e comunicou ao presidente da República, à época Luiz Inácio Lula da Silva, e à presidente do Conselho Nacional de Políticas Energéticas, que naquele tempo era a Senhora Rousseff, que estávamos tendo um contexto petrolífero no país, mas o governo decidiu leiloar o petróleo.

 

Primeiros poços de petróleo

Em 2006, descobriu-se o primeiro poço de petróleo, em seguida, o segundo, que confirmou e permitiu delimitar a extensão do Campo de Tupi, algo em torno de cinco a oito bilhões de barris.

Trata-se de uma descoberta gigantesca para o tipo de campo que se vinha descobrindo no Brasil, na camada pós-sal. A partir daí começamos a entender que o pós-sal possivelmente também seria petróleo formado no pré-sal e que, ao se romper a camada de sal por causa dos movimentos próximos da costa, o petróleo migrasse para cima e sofresse transformações, se tornando mais pesado por conta desse processo, retendo-se em camadas impermeáveis superiores acima do sal, formando aqueles bolsões de petróleo de menor dimensão, que são do pós-sal, os quais tinham garantido a efêmera autossuficiência do Brasil em 2006. Entretanto, tal descoberta foi tão festejada quanto abandonada por causa da Política Energética Brasileira em relação ao etanol e às políticas da expansão da frota de veículos. Hoje o Brasil importa petróleo e derivados, ou seja, há um prejuízo para a Petrobras. De qualquer maneira, o pós-sal e o pré-sal têm essa relação.

Em 2007, foi construído o segundo poço, o qual permitiu dimensionar o Campo de Tupi. Em novembro de 2007, foi feita a retirada de 42 blocos do entorno de Tupi, mas mantido o leilão, apesar de ter sido desaconselhado pelo Clube de Engenharia, pelos dirigentes da Petrobras e pelos movimentos sociais. Todos diziam que o governo deveria esperar para dimensionar as reservas do pré-sal, concluir o processo exploratório e avaliar o que fazer com tais reservas.

 

Estratégia

Em qualquer lugar do mundo, quando se descobre uma nova província petrolífera ou mineral, se faz um esforço para dimensioná-la. Mas isso até hoje não foi feito no Brasil, e é um dos primeiros problemas que temos em relação ao Campo de Libra. Deveria ter sido feita a conclusão do processo exploratório, que significava simplesmente concluir as sísmicas. A Petrobras poderia ser contratada para fazer isso. Nenhum país do mundo faz o que o Brasil está fazendo: leiloar aos poucos o acesso da produção de petróleo de campos cujo nem o total do pré-sal é conhecido, nem dos campos individuais. O Campo de Libra está indo a leilão com apenas um poço, o que não permite delimitar com precisão qual é o volume de petróleo existente. Ninguém vende uma fazenda cheia de bois sem contar o número de bois. Quer dizer, não faz sentido colocarmos em leilão o Campo de Libra, que, segundo a Agência Nacional do Petróleo – ANP, pode ter entre 8 e 12 bilhões de barris, apesar de haver estimativas de que possa chegar a 15 bilhões de barris. Se os dados forem esses, trata-se da maior descoberta do país.

 

Por que a decisão de leiloar esses campos?

A decisão é da Senhora Rousseff, que preside o Conselho Nacional de Políticas Energéticas. Deu na veneta dela reunir o Conselho, composto pelos ministros a ela subordinados, e presidentes de órgãos pela presidência nomeados, que estão lá para referendar as vontades do príncipe, ou nesse caso, da princesa. Então, é um absurdo que um país, sem saber quanto tem de petróleo, coloque em leilão um campo com essa gigantesca dimensão de petróleo. O governo nem sequer se deu ao trabalho de concluir a exploração de Libra, quando deveria ter concluído os dados do pré-sal como um todo para sabermos se temos os 50 bilhões de barris mais ou menos já confirmados com a sucessão de descobertas dos vários campos, desde Parati, Tupi, Libra, Franco e todos os outros que vieram depois e já foram anunciados.

Ao longo de 60 anos de pós-sal, que se completam no dia 3 de outubro, a Petrobras descobriu cerca de 20 bilhões de barris de petróleo, produziu cinco bilhões, está produzindo cerca de 700 milhões de barris por ano nos últimos tempos – a produção está estagnada nesse patamar de dois milhões de barris por dia. Hoje a estatal também tem reservas convencionais de pós-sal da ordem de 15 milhões.

Obviamente, quando num leilão não há precisão nem certificação do volume de petróleo, isso é precificado contra quem leiloa. Ninguém vai oferecer algo ao governo se não tiver certeza do produto que pretende comprar. Então, nesse sentido, há uma série de movimentos sociais apoiados por pesquisadores e professores, que estão buscando o caminho das manifestações políticas e da Justiça para impedir esse leilão, o qual não convém ao interesse público e nacional.

A minha perplexidade e apreensão é de que o Conselho Nacional de Política Energética, comandado pela Presidência da República, deliberou colocar esse campo em leilão. Parece-me que essa decisão é baseada em problemas da macroeconomia, das contas externas e do déficit público, que tem sofrido uma deterioração considerável nas contas. De modo que essa proposta de pedir 15 milhões de reais de pagamento de bônus para assinatura é uma coisa que não tem sentido, pois só piora o resultado final do leilão, na medida em que alguém precisa, de antemão, pagar um valor tão grande.

 

Como avalia a modalidade de contrato de partilha de produção?

A lei da partilha de produção foi sancionada pelo presidente Lula nos últimos dias de seu governo, se não no último. Ele, ao longo de oito anos, alegremente exercitou o modelo da concessão, o qual dizia, enquanto candidato à presidência, combater e alterar, apesar de o manter intacto e inalterado durante seu governo. De todo modo, acabou criando o modelo de contrato de partilha. Este modelo tem uma única válvula de escape que é interessante para a nação, ou seja, uma cláusula que permite a contratação direta da Petrobras sem licitação. Por que o governo não está exercitando essa opção? É preciso perguntar. Por que o governo também não cumpre aquelas cláusulas que são princípios básicos da administração pública, que exigem impessoalidade, publicidade, eficiência e moralidade?

O modelo de contrato de partilha de produção adotado no Brasil prevê o seguinte: o governo pode contratar diretamente a Petrobras e, de forma transparente, negociar com ela, ou seja, negociar como se daria a produção, em que ritmo, quais parceiros a Petrobras poderia ter em razão da dificuldade financeira pela qual está passando. Essa dificuldade financeira foi criada pelo próprio governo, ao impor à Petrobras uma espécie de assédio moral, onde a estatal não está cumprindo a lei, porque a lei manda praticar preços competitivos. Hoje parte da gasolina, do diesel, do gás natural está sendo importada a preços superiores aos de venda interna, causando prejuízo. A Petrobras está descapitalizada por esse longo processo que vem ocorrendo desde 2008 para cá, e nesse momento a empresa está comprometida com um plano de investimento estratégico de longo prazo bastante grande. É nesse contexto que o governo decide fazer o leilão de Libra.

 

Leilão do patrimônio público

O governo não está leiloando somente o Campo de Libra sem saber a sua dimensão, mas está leiloando outro patrimônio público, que é a capacitação de a própria Petrobras, que foi construída ao longo de seis décadas, operar. A empresa pode ter um eventual parceiro, que virá a ser um mero sócio financeiro, mas que poderá ter até 70% do volume de petróleo.

Qual é o procedimento que o governo está adotando? O leilão vai definir qual é a fração do óleo lucro, depois de deduzir todas as despesas de investimento. Eu estimo que esse Campo de Libra terá entre 15 e 22 plataformas, ao custo de três a quatro bilhões de dólares cada uma, e teremos algo entre 60 e 80 bilhões de dólares, mas poderá entrar no ritmo de produção algo em torno de um a dois milhões de barris por dia, se for tomada a decisão microeconômica de produzir o quanto antes mais petróleo, como querem todos aqueles que operam em razão do regime financeiro, a qual é inadequada para a exploração desse petróleo.

De qualquer maneira, exaurindo 15 bilhões de barris em 20 anos, será possível ter uma média de dois bilhões de barris por dia, que gerariam um excedente econômico típico, cujo custo está em torno de 15 dólares. Com o custo de capital, mais operação, mais os 15% de royalties, chegaremos a 30 dólares de custo. De maneira que o excedente de 70 dólares por barril, a um pouco mais de 700 milhões de barris por ano, dois milhões por dia, significa um excedente de 50 bilhões. Portanto, em um ano ou dois, é possível pagar o investimento com esse ritmo de produção.

Se o ritmo de produção for mais lento, no caso de estender a produção por 30 anos, teríamos uma produção um pouco superior a um milhão, 1,5 milhão de barris por dia, que daria um excedente proporcionalmente menor, mas mesmo assim chegaria a algo entre 35, 40 bilhões, o que novamente permitiria pagar em dois anos e meio, três anos, todo o investimento. A partir daí, sim, entra o óleo lucro.

Trata-se, portanto, da maior privatização da história política do Brasil. O governo do PT, que foi eleito se contrapondo às privatizações e à privatária anterior, está agora promovendo o maior leilão da história. Tendo um excedente econômico de 50 bilhões por ano, ao longo de 20 anos, isso dá um trilhão de dólares. Esse é um valor extraordinariamente elevado para ser tratado com a displicência com que o governo está tratando e com a desinformação junto ao Congresso Nacional, à mídia e à sociedade. Mas o mais grave é outro problema: a ausência de uma estratégia para o país se inserir no mercado internacional de petróleo.

 

Qual é a posição do Brasil no cenário geopolítico? O país está atento ao significado político e econômico da camada pré-sal?

Nossa proposta é que, primeiro, se delimite o volume de petróleo, de forma que, sabendo quanto petróleo se tem, é possível fazer uma estratégia nacional de produção. É preciso lembrar que o conceito de royalties original é “uma retribuição ao soberano por ele abrir mão de um recurso natural que não estará mais disponível”. O soberano, de acordo com a Constituição Federal, é a nação brasileira. O artigo 20 da Constituição diz que os recursos do subsolo, incluindo aí o petróleo e outros recursos minerais, pertencem à nação. O artigo 5º da Constituição garante aos brasileiros direitos sociais, acesso a educação, saúde, moradia e outros. O governo diz que não consegue cumprir os direitos sociais porque não possui recursos, mas não considera os recursos que estão assegurados à Constituição pelo artigo 20. Então, o caminho mais razoável é delimitar as reservas de petróleo, fazer um plano nacional de desenvolvimento econômico e social, saber quanto o governo precisa investir todos os anos em educação pública, saúde pública, reforma urbana, mobilidade, informatização, proteção ambiental, ciência e tecnologia, infraestrutura produtiva e, acima de tudo, em um programa que assegure ao Brasil, à medida que o petróleo for se exaurindo, capacidade suprir as necessidades energéticas.

Tendo um plano nacional nessa dimensão, seria possível estimar qual a produção do petróleo necessário para financiar esse plano. Mas isso é o contrário do que o governo está fazendo. As denúncias de espionagem dos Estados Unidos junto à Petrobras e ao governo federal se vincula diretamente a esse problema geopolítico e estratégico. O governo parece que não se deu conta da dimensão que isso tem. Fazer o controle do ritmo de produção é fundamental para manter o preço do produto. E quem tem de reter essa capacidade de definir o ritmo de produção é o governo federal. Na medida em que se outorga o contrato de concessão ou de partilha, que tem cláusulas predefinidas sobre o ritmo de produção, o consórcio opera segundo a lógica microeconômica e busca retirar, o quanto antes, o maior volume de recursos financeiros possível daquele contrato de concessão ou de partilha, que neste caso pode se transformar num verdadeiro problema internacional.

 

Petróleo no cenário mundial

Volto ao ponto fundamental. Até 1960, grande parte dos recursos de petróleo do mundo estava na mão das companhias de petróleo multinacionais, comandadas pelas conhecidas sete irmãs: 84% do petróleo estavam na mão delas; 14%, da União Soviética; e 2%, das empresas nacionais. Em 1960 foi criada a Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, que fez duas tentativas e transferiu o excedente econômico que ia para as empresas em direção aos países que detinham as reservas. Hoje, no mundo, mais de 90% das reservas de petróleo conhecidas estão em mãos de Estados nacionais, que têm ou empresas 100% estatais, ou empresas híbridas, como é o caso da Petrobras.

O Brasil não sabe se tem 50 bilhões, 100 bilhões ou 300 bilhões de barris. Se o país tiver 100 bilhões, estará no grupo de países de grandes reservas, se tiver 300 bilhões, será o dono da maior reserva do mundo, porque 264 bilhões é o volume de barris da Arábia Saudita. A Venezuela passa disso, se formos considerar o petróleo ultrapesado. De petróleo convencional normal, a Venezuela se encontra no patamar de 80 a 120 bilhões de barris, onde se encontra a Líbia, o Iraque, o Irã, os Emirados Árabes, que são os países do segundo bloco.

 

Experiência russa

A Rússia passou por um processo semelhante ao que o Brasil está passando agora. O governo Boris Iéltsin fez um modelo de entrega do petróleo aos grandes grupos econômicos, como Lula e Dilma tentaram com Eike Batista, mas não deu muito certo, porque ele encontrou petróleo, mas não soube produzir. De toda forma, o controle das reservas mundiais e do ritmo de produção é feito em coordenação da OPEP com a Rússia. A OPEP produz cerca de 25 milhões de barris e coloca isso no mercado, junto com a Rússia. Ambas produzem o volume de petróleo necessário para suprir grande parte da demanda, além da produção autônoma interna de vários países.

Então, a OPEP conseguiu, no choque de 1963-1969, aumentar o preço do petróleo, mas fracassou, porque a União Soviética vendia petróleo fora do controle para obter moeda forte e conseguir superar o bloqueio da Guerra Fria. Além disso, o México também vendia para outros países, e algumas nações não cumpriam as cotas determinadas pela OPEP.

Apesar disso, de 2005 para cá, a OPEP, junto com a Rússia, está mantendo o nível de produção num patamar que tem permitido manter o preço do petróleo acima de 80 dólares, 100 dólares, que seria o preço pelo qual é possível obter um substituto, que seria, nesse caso, a liquefação do carvão, que custa muito e polui. Esse preço regulador é mais ou menos compreendido como um patamar sustentável desde que a OPEP mantenha a coordenação. Se o Brasil entrar rendendo dois milhões de barris por dia, mais o excedente que a própria Petrobras está prevendo no plano dela, e o que o senhor Batista, antes de fracassar, previa, o país estará cumprindo um papel de desestruturar a coordenação e a redução de preço que, em última instância, é contra o interesse dos exportadores de petróleo. Aliás, é isso que está na base do acordo feito pela senhora Rousseff com o senhor Obama, em março de 2011, e anunciado pela Casa Branca, dentro de um documento de estratégia para garantir a segurança energética do Premium Secure Energy Supply.

Entre os pontos acordados pelos presidentes, nos interessa o ponto em que eles concordaram em compartilhar o desenvolvimento dos vastos recursos do pré-sal. O mesmo documento diz que o governo americano também está negociando com o México a abertura do Golfo do México, na parte mexicana. O governo americano vai colocar em produção a sua plataforma continental, de forma que o programa de biocombustíveis, o programa de ciência energética e mudança do paradigma tecnológico da mobilidade, fazem parte de uma iniciativa do governo americano com o objetivo final de quebrar a OPEP e fazer com que a antiga ordem volte a imperar, onde o petróleo tem o preço bem mais baixo do que tem hoje.

 

Produção de petróleo

Hoje, o custo da produção do petróleo no Brasil está em torno de 15 dólares. Na Arábia Saudita, o custo é menos de um dólar. De maneira que isso está gerando um excedente econômico da ordem de quase 100 dólares o barril. O mundo que produz hoje consome cerca de 30 bilhões de barris por ano, ao ritmo de quase 85 milhões de barris por dia. Isso gera um excedente econômico entre 2 e 3 trilhões de dólares em um PIB mundial de 65 trilhões. Portanto, um lucro enorme está em disputa. Hoje esse dinheiro sai dos países que consomem e vai para os países produtores de petróleo. O governo americano quer dobrar a espinha dorsal da OPEP, fazer com que haja novamente uma superprodução de petróleo, que o preço caia e que os benefícios do uso do petróleo voltem a ser apropriados pelos países consumidores, ou seja, os países desenvolvidos.

Esse é o quadro geopolítico que nós nos encontramos, e a ação brasileira parece que é absolutamente ingênua ou destituída de conhecimento do embate geopolítico estratégico em que está se dando esse teatro de operações em torno do petróleo.

 

Brasil na geopolítica mundial

Vejo com muita preocupação a forma com que o governo vem conduzindo o problema do Campo de Libra, e a estratégia global do pré-sal brasileiro. Provavelmente, o cenário que expus sobre o petróleo, o seu papel, a sua apropriação social no processo produtivo da sociedade urbana e industrial que nós construímos no último século, prevê que o petróleo deve ter mais valor daqui para frente, dada a dificuldade de substituí-lo em comissões de produtividade adequadas por outros recursos, como o carvão e as renováveis, que têm um preço de produção bastante elevado, em torno de 80 a 100 dólares por barril. Não havendo outras possibilidades no momento, é possível que o petróleo mantenha um preço elevado no futuro, desde que se tenham duas coisas: reservas certificadas, que nós poderemos ter, e tecnologia e capacidade produtiva no entorno do complexo da Petrobras. Tendo essas duas coisas, é melhor produzir apenas para fazer os investimentos naquelas prioridades que citei antes: educação pública, saúde pública, reforma urbana, reforma agrária, ciência de tecnologia, proteção ambiental e transição energética, e fazer parceria com países que dependem de petróleo e que podem nos ajudar, como a China, a Índia e outros que poderão nos ajudar no processo de modernização da estrutura produtiva brasileira. Ou seja, é melhor deixar o petróleo nas reservas de maneira certificada.

Até agora, a estratégia brasileira está completamente equivocada, e Libra é apenas a cabeça de ponte, é o início de um processo de deterioração e de um papel subalterno que o Brasil está cumprindo nesse embate global entre os países que detêm reservas e recursos e aqueles que querem se apropriar deles pagando o mínimo possível. Petróleo não é pizza, não é boi, não é um negócio qualquer. O petróleo cumpriu o seu papel estratégico no sistema de acumulação em torno da hegemonia do sistema capitalista ao longo do último século, permitiu avanços extraordinários, um mundo de 7 bilhões de habitantes com uma estrutura extraordinária de produção e circulação.

O governo brasileiro parece não entender a dimensão do problema, ou, por ingenuidade, por incompetência, está cometendo algo que chamo de crime de responsabilidade contra o interesse nacional ao iniciar o processo de leilão; ou seja, a maior privatização da história do país, muito superior a todas as privatárias dos governos anteriores, em um lance só.

 

A presidente da Petrobras alegou que não teria condições financeiras para explorar sozinha o Campo de Libra. A empresa precisa de uma parceria?

Vamos falar a verdade. Isso é tudo jogo de cena para criar confusão! Não falta dinheiro para quem tem reserva de petróleo e tem capacidade tecnológica. Nenhuma empresa tem dinheiro diretamente. Quem tem dinheiro são os bancos, o sistema financeiro e a China, que hoje detém reservas da maior monta do mundo em função do seu processo de produção, exportação e acumulação, que financia grande parte da dívida americana, por exemplo. Então, não falta dinheiro no mundo.

O possível sócio da Petrobras é um mero sócio financeiro, que irá aportar um montante que for definido no leilão, o qual pode chegar até 70%. É possível investir em outro modelo. Por isso, propomos definir uma estratégia brasileira em primeiro lugar, e, posteriormente, quando se decidir produzir petróleo, chamar a Petrobras, contratá-la, definir seus eventuais parceiros de maneira aberta e transparente, negociar as condições, por exemplo, com um parceiro chinês. As empresas chinesas seriam o parceiro ideal para esse processo, assim como empresas indianas ou outras mais.

Como disse, Libra, na minha estimativa, vai custar entre 60 e 80 bilhões de dólares. Além disso, o governo precisa construir a cadeia produtiva brasileira. Infelizmente o governo não se planeja, não expande a formação de recursos humanos, a expansão da capacidade industrial brasileira, das áreas de serviços. Não adianta criar essa situação que temos hoje: as empresas prometem conteúdo nacional, não cumprem, a ANP as multa e acabou! Falta planejamento no país em todos os níveis: educação, saúde, infraestrutura, nas cadeias produtivas da área de energias, etc. O Brasil é um país que opera no dia a dia no improviso. E isso ficou claro com a decisão de tentar queimar o Campo de Libra para resolver um pequeno problema econômico das contas externas e das dívidas públicas. De maneira que o problema financeiro é um mito que inventaram; não falta dinheiro para quem tem reserva de petróleo certificada. O nível de endividamento da Petrobras é facilmente resolvível mediante um modelo diferente de negócio, porque a lei permite. A lei não é boa, ela poderia ser melhor, mas tem suficiente espaço para fazer uma política que garanta o interesse nacional e o interesse público