Nos últimos anos, ganhou destaque a hipótese a respeito da existência de um processo de “medianização” social, sustentado pelo surgimento de uma nova classe média. Ao ser justificado pela ascensão social dos segmentos de baixo rendimento, a crença de um movimento acelerado de camadas intermediárias da população fazia sentido, inclusive pela apresentação de indicadores que buscavam medir o grau de felicidade dos brasileiros. Assim, reduzir-se-iam as tensões entre os extremos sociais representados por ricos e pobres, consagrando a “medianização” da sociedade brasileira.
Contudo, as manifestações sociais de 2013 e os conflitos trabalhistas deste ano parecem apontar em outra direção explicativa. Dois aspectos contribuem para o entendimento da polarização social. De um lado, as tensões internas da classe média assalariada que se encontra pressionada frente ao acirramento da competição por empregos de até três salários mínimos mensais e ao desgaste do tradicional status de demandante dos serviços de baixo custo, como o trabalho doméstico, piscineiro, segurança pessoal, personal trainning, motorista, entre outros.
A escassa geração de postos de trabalho de mais alta remuneração dificulta também a reprodução da classe média. Além disso, a qualidade dos serviços justifica a relevância das reivindicações mais fortes desde o ano passado em defesa de mais e melhor educação, saúde pública, transporte coletivo e do melhor uso dos recursos orçamentários. Disso sobraram, inclusive, as reações inimagináveis até então à Copa do Mundo de futebol.
De outro lado, há o avanço do novo proletariado brasileiro. Ao se fundamentar na expansão das ocupações no setor de serviços, o perfil do trabalhador atual se apresenta distinto da velha classe laboral movida, sobretudo, por condições e relações do trabalho assentada na indústria. Na última década, por exemplo, mais de 80% do saldo de 22 milhões de empregos criados no país dependeu do setor de serviços, que paga por remunerações de até dois salários mínimos mensais e mantém alta rotatividade no trabalho, que dificulta progressão funcional e ampliação da qualificação profissional.
Essa perspectiva aberta pelo proletariado de novo tipo não tem sido muito bem compreendida pelas atuais instituições democráticas de representação de interesses, como as associações estudantis e de moradores, os sindicatos e partidos políticos. Tanto assim que acordos coletivos de trabalho firmados num determinado momento podem perder a validade diante do levante espontâneo de movimentos paredistas, especialmente nos segmentos de serviços (transporte, limpeza, educação, saúde, entre outros).
Na década de 1970, fruto da mobilidade social promovida pela forte expansão econômica, assistiu-se à explosão das greves que enunciaram o novo sindicalismo de base industrial. A renovação na forma de atuação das entidades de representação dos interesses e no quadro dirigente da época se mostrou substancial para transformar as contradições vividas pelo movimento de ascensão social em reivindicações concretas de políticas públicas, como nas lutas pela redemocratização e aprovação da nova Constituição durante os anos 1980.
Nos dias de hoje, percebe-se que o país passa pela emergência de um novo proletariado nos serviços que não identifica nas instituições atuais a capacidade desejada de transformar os seus anseios e contradições em respostas concretas de políticas públicas. Conforme pesquisas realizadas, somente dois a cada dez novos empregados afiliou-se ao sindicato. Da parcela restante dos trabalhadores, a não associação decorre tanto da crítica consciente à postura sindical como do distanciamento da presença do local de trabalho e da fragmentação. Existem pouco mais de 10 mil entidades de trabalhadores no Brasil.
Diante disso, cabe indagar se a desconexão apontada entre a emergência dos novos movimentos sociais e as instituições de representações de interesses atualmente existentes se revela como um problema de direção dessas mesmas organizações ou como certo anacronismo de suas tradicionais formas de atuação. Mais cedo ou mais tarde, a realidade vai se estabelecer, respondendo melhor a essa questão a respeito da “medianização” ou da polarização no interior da sociedade brasileira atual.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas. Escreve às sextas-feiras na RBA