Plebiscito da Vale reafirma divórcio entre a grande mídia e o país


Os movimentos sociais e entidades organizadoras do plebiscito popular da campanha "A Vale é Nossa" divulgaram nessa segunda (08/10) os resultados do pleito, que mobilizou mais de 100 mil voluntários em quase 3.200 municípios do país. Foram 3.729.538 votantes, sendo que 94,5% deles disseram não à permanência da Companhia Vale do Rio Doce nas mãos do capital privado.

Embora a imensa maioria dos votantes – trocando em "miúdos", mais de 3,5 milhões de brasileiros – tenha expressado sua contrariedade à privatização da empresa, o cidadão que tenha acompanhado a cobertura do tema pela mídia corporativa durante os dias do plebiscito, no início de setembro, teria a impressão de que o questionamento à venda da empresa era uma exceção. Esta é a conclusão do levantamento exclusivo realizado pelo Observatório do Direito à Comunicação sobre a cobertura da mídia comercial na semana de realização do plebiscito popular.

Como visto nas eleições presidenciais de 2006, em que o histórico do PSDB de privatizações das empresas pertencentes ao povo brasileiro teve peso decisivo na vitória de Lula, mais uma vez a população demonstrou no plebiscito um saudável espírito de nação e de defesa de um Estado presente e atuante. A grande imprensa, por sua vez, reafirmou em sua cobertura a contrariedade em relação a um Estado que planeje e colabore com o desenvolvimento e o crescimento do Brasil e que atue em diversas áreas da economia e da sociedade de modo a promover a superação de desigualdades históricas.

Ainda que a cartilha do governo Lula em relação às privatizações tenha mudado substancialmente do discurso das eleições de 2006 para as ações do segundo mandato, iremos aqui nos ater a outro divórcio: o verificado entre o que a população expressou como opinião e vontade de mudança e o que a grande imprensa buscou reportar em relação ao plebiscito. E veremos que, apesar de a mídia corporativa não ter a capacidade de inventar de fato um outro povo e um outro país, a cobertura da mobilização sobre a Vale foi mais uma tentativa de criar uma versão dos fatos e da história em evidente desacordo com a realidade.

A situação verificada em relação ao plebiscito da campanha "A Vale é Nossa" reafirma, assim, a necessidade de uma profunda democratização das comunicações e da criação de um efetivo sistema público de comunicação no país. Ambas são iniciativas que fortalecerão outras vozes, leituras e atores de nossa sociedade. E que certamente contribuirão para que a população não seja mais refém das construções da realidade produzidas por uma mídia divorciada de seu país.

A cobertura

Não é possível afirmar que o Plebiscito Popular sobre a Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce esteve fora do noticiário, pelo menos nos veículos impressos. Na TV, sim, a cobertura foi escassa. Porém, também é fato que esta cobertura de forma alguma teve a intenção de instaurar o debate público sobre o mérito da consulta, ou seja, a reestatização da mineradora e de suas jazidas.

Quando não se limitou a usar o plebiscito como mote para criar uma confusão de identidade entre os movimentos populares e o governo, buscou oferecer claramente argumentos que apontam que a privatização foi responsável pela modernização da empresa.

O noticiário diário nos principais jornais apostou de forma constante na primeira estratégia, ora colocando movimentos e governo como próximos (afirmando que as idiossincrasias dos primeiros atrapalham o segundo), ora criando um abismo entre os dois (mostrando que o segundo não iria sequer considerar a questão).

Já as revistas fizeram largo uso de suas páginas para defender as benesses da privatização. Na TV, o plebiscito apenas existiu durante a realização do Grito dos Excluídos.

De maneira geral, a imagem construída pela mídia sobre o plebiscito foi a de que se tratava de iniciativa anacrônica e restrita a uma pequena e pouco representativa parcela da sociedade, que seriam os movimentos sociais ou os setores de uma esquerda mais radical.

Jornais diários

Durante a semana de realização do Plebiscito Popular sobre a Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce, a iniciativa foi citada todos os dias pelos principais jornais diários, ainda que diversas vezes de forma muito discreta – em colunas de cartas do leitor ou em frases perdidas no meio de textos de colunistas.

A cobertura, porém, centrou-se, basicamente, em fatos relacionados ao plebiscito, não ao processo de consulta em si. É sintomático que o plebiscito só tenha entrado, de fato, na pauta dos jornais a partir da aprovação à realização da consulta pelo Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT). De modo geral, o noticiário e as colunas de opinião viram no plebiscito um tipo de evento exemplar da esquerda folclórica, cuja "importância" só se deveu ao fato de que a questão posta pela consulta poderia criar certo desconforto à parte da esquerda que assumiu o pragmatismo do governo.

Assim, o plebiscito em si e, especialmente, o tema posto em questão pela iniciativa ficaram em último plano. Por exemplo, boa parte das matérias sequer citava que o plebiscito já estava em andamento.

Apenas no dia 5, passada já a metade dos dias para coleta de votos, a Folha de S. Paulo registra, em um pequeno box, informações sobre quem organizava o plebiscito, onde poderiam ser encontradas outras informações e como votar. Nos demais jornais analisados – O Estado de S. Paulo e O Globo – não há qualquer indicação neste sentido. Os textos chegam a dar a impressão de que a consulta ocorreria apenas meses depois.

A repercussão da decisão do Congresso do PT durou pelo menos quatro dias e, embora não tenha havido uma declaração oficial do governo federal, os jornais apressaram-se em repercutir a decisão do partido junto a fontes do governo ou membros do PT próximos a Lula.

Registraram, assim, que a parte governista do PT estava insatisfeita e deram títulos que ressaltavam que, para o presidente Lula, o apoio ao plebiscito era uma forma de "fazer média" com uma parte dos movimentos sociais.

A única notícia de fato sobre o plebiscito em si foi a discussão entre deputados por conta da instalação de uma urna da consulta dentro do Congresso Nacional.

As discussões de mérito a respeito da reestatização da Vale só foram registradas de forma aberta em artigos de opinião assinados por apoiadores do plebiscito: na Folha de S. Paulo, artigo de Fábio Konder Comparato apontou as questões judiciais a respeito do leilão; em O Globo, João Pedro Stédile e D. Demétrio Valentini fizeram um apanhado das razões que levaram à organização do plebiscito. A Folha, cinco dias depois de publicado o artigo de Comparato, publicou artigo de Adilson Dallari respondendo às questões jurídicas e defendendo a validade do leilão.

Em alguns outros artigos de opinião publicados naquela semana, o tema da reestatização é tratado como um "passo atrás", como andar na "contra-mão", como "anacronismo". Interessante notar que nenhum destes artigos tratava diretamente do tema do plebiscito ou da anulação do leilão: as críticas apareceram a esmo, como para compor um quadro do quê "atrapalha o Brasil", do qual faz parte tanto o governo Lula com seus erros, quanto as esquerdas que não deixam de cercar Lula (e aí é importante ressaltar como é propositadamente criada uma confusão sobre a proximidade e os distanciamentos entre o governo e os movimentos sociais).

No dia 4, por exemplo, o economista Ilan Goldajn, escrevendo sobre a crise dos mercados internacionais, registra: "No Brasil, na contramão, o governo baseia seu orçamento em receitas cada vez maiores, para financiar gastos crescentes. E o 3º Congresso do PT, partido do governo, em vez de delinear as reformas que considera necessárias para sustentar um crescimento sustentado, prioriza a revisão do que deu certo no passado: a privatização da Companhia Vale do Rio Doce."

Por outro lado, os colunistas fixos dos jornais optaram basicamente por reforçar a estratégia do noticiário, comentando o apoio do PT ao plebiscito. Nos comentários, de forma muito taxativa, a idéia da anulação do leilão da Vale ganha qualificações como "absurdo", "retrocesso".

Poucos citaram abertamente o mérito da reestatização, ou os desdobramentos do plebiscito em si. A rara exceção foi Ancelmo Góis, que no dia 4 registra nota sobre a reação da Vale do Rio Doce e comenta a realização da consulta: "A Vale acompanha discretamente a campanha para anular a sua privatização. Por enquanto, há mais espuma do que chope. Mas nunca se sabe. A maior preocupação é com as 67 ações populares que pipocam por todo o país contra o leilão. A defesa está com o escritório Siqueira Castro." No dia 9, Góis ainda falou do plebiscito, mas já em outro tom: desqualifica os argumentos pró-anulação dizendo que os funcionários que investem nos fundos de pensão que hoje controlam a empresa (inclusive os que já eram empregados da Vale estatal) seriam prejudicados pela reestatização.

No 7 de setembro, apenas Folha e Estadão registraram a realização do Grito dos Excluídos. Sintomaticamente, o registro da manifestação é feito pelo Estadão em um último parágrafo de uma matéria sobre ocupações realizadas pelo MST no dia anterior. Como chapéu (pré-título), o jornal escolheu a expressão "Terra sem lei".

Na edição do dia 8, há registro razoável do Grito tanto na Folha, como no Estadão. Enquanto a primeira destaca a realização do plebiscito na Sé e a não-realização na Basílica de Aparecida, o segundo fala apenas de passagem na consulta e dá mais importância em descrever – com certo ar carnavalesco – as bandeiras diversas que tiveram vez na manifestação. Já O Globo escreve apenas 3 parágrafos, registrando o número de pessoas presentes no Rio, SP e Recife.

No dia 9, foram registradas as últimas referências ao plebiscito, apenas nas colunas de opinião. Na mais curiosa de todas, Elio Gaspari (publicado em O Globo e no Estadão) ataca ambos os lados: denuncia o arremate da Vale "com dinheiro da Viúva", para depois dizer que a reestatização poderia servir para os petistas conseguirem uma "boquinha".

TVs privadas

O plebiscito e o Grito dos Excluídos só existiram no próprio dia 7 para as principais redes de televisão do país. Segundo levantamento das edições dos maiores telejornais da Globo, SBT, Record e BAND, o tema só foi pautado no feriado de 7 de setembro. Entre 30 de agosto, data da coletiva de imprensa dos movimentos sociais sobre as mobilizações, e 9 de setembro, último dia do plebiscito, a única exceção a essa regra foi o "SBT Brasil", que trouxe comentário de Carlos Chagas, no dia 4 de setembro, referente ao Congresso do PT e ao plebiscito da Vale, apoiado pelo encontro do partido.

Após a chamada da apresentadora Cynthia Benini ("Deputados e senadores estranharam as propostas feitas pelo PT no Congresso Nacional do partido"), o comentarista Carlos Chagas afirma que "os companheiros aprovaram propostas que seriam cômicas, se não fossem trágicas". Para Chagas "essa privatização pode até ter sido um crime de lesa-pátria, mas foi um ato ato jurídico perfeito". Ignorando a análise de importantes juristas e a existência de mais de 100 ações questionando o processo na Justiça, que aguardam pela decisão do STJ, o comentarista cria uma versão simplesmente irreal para o fato: "para revogá-lo, apenas com uma ditadura, com um Ato Insitucional".

Se as tevês só pautaram o tema do plebiscito e do Grito no dia 7, há detalhes importantes a se apontar em relação a essa opção. O primeiro deles é que a data apresenta uma forte carga de possíveis notícias e imagens, entre as mais relacionadas à própria proclamação da Independência do Brasil, às comemorações e desfiles militares referentes ao tema e, ainda, à presença das autoridades do país – com as possíveis vaias ou apoios – nos respectivos eventos. Ou seja, se as discussões propostas pelos movimentos só são pautadas no dia 7, elas enfrentarão a forte concorrência de temas relevantes, e no mais das vezes serão colocadas de forma secundária pelos telejornais.

Nesse sentido, o "Jornal da Band" foi o que "melhor" representou tal tendência, ao noticiar o dia 7 em duas matérias ("Renan Calheiros não foi ao desfile de 7 de setembro" e "Confusão no desfile da independência em Maceió"), que sequer citaram as palavras "plebiscito" ou "excluídos".

O segundo detalhe fundamental diz respeito ao aprofundamento do tema: se os debates, construídos ao longo de meses pelos movimentos, só se tornam pauta dos telejornais no dia 7, outra conseqüência óbvia é que pouco ou nenhum tempo haverá para os temas serem discutidos com a mínima profundidade nos telejornais – e ainda menos com possibilidade de incentivar a população a refletir e a participar das duas mobilizações.

Juntando-se o primeiro fator ao segundo, tem-se que as notícias sobre o Grito e o plebiscito na televisão comercial brasileira acabam praticamente não dando voz às pessoas que os construíram, tampouco às idéias que elas gostariam de apresentar. Tudo isso só chega aos demais cidadãos brasileiros de forma intensamente mediada pelos repórteres, apresentadores e analistas dos telejornais, que pouca ou nenhuma ligação possuem com a questão. Os jornalistas, afastados dos temas, afastam por sua vez os telespectadores.

No "Jornal Nacional", da Globo, a notícia "’Grito dos Excluídos’ questiona reforma da previdência e privatização da Vale" trouxe o apresentador William Bonner resumindo os protestos: "representantes de movimentos sociais e da Igreja Católica realizaram hoje, em várias cidades, a 13ª edição do Grito dos Excluídos", no que foi seguido por repórter da emissora anunciando que "em todo o país, o Grito dos Excluídos colheu votos em uma consulta popular sobre a reforma da Previdência e a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, entre outros assuntos". Foi o máximo de profundidade que a maior emissora do país dedicou ao tema. Esta foi a forma como a rede mais poderosa de comunicação do Brasil explicou e desenvolveu sobre o que seriam os questionamentos à privatização da Vale.

O "Jornal da Record", padecendo do mesmo mal de um único dia para o tema, dedicou maior espaço aos debates em si, aprofundando-os minimamente. Na matéria "’Grito dos Excluídos’ pede mais justiça social", a apresentadora Adriana Araújo resumiu: "Mais justiça social e revisão de uma privatização de dez anos atrás. Foi o que pediram as manifestações do ‘Grito dos Excluídos’". Relatando uma das cenas do Grito, o repórter da emissora inicia sua participação: "nas mãos de crianças, jovens e adultos faixas e cartazes pedindo um país mais justo", que é seguida por frases dos manifestantes reivindicando direitos fundamentais, como um entrevistado que afirmou "precisamos de moradia que nós não temos. É difícil com o salário que ganha". Logo depois, rapidamente, o repórter aproveita para explicar que "o ‘Grito dos Excluídos’ deste ano questionou a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Os líderes do protesto fizeram um abaixo-assinado pedindo a anulação do leilão".

Vale registrar, por fim, que para a imensa maioria da população brasileira, que se informa essencialmente por meio da TV, as ações na Justiça, cuja análise por parte do STJ pode até mesmo declarar a nulidade do leilão de privatização, simplesmente não existem.

Revistas semanais

Aprofundando a linha apontada indiretamente pela cobertura dos jornais, as revistas semanais que incluíram o tema do plebiscito em suas pautas o fizeram para apontar o suposto "anacronismo" da idéia e ressaltar as benesses da privatização.

Na IstoÉ Dinheiro que chegou às bancas no dia 1 de setembro, artigo assinado por Octávio Costa atira em duas direções: desqualificar o mérito do plebiscito e também o processo da consulta em si. A sanha pela desqualificação do plebiscito já no primeiro dia da coleta de votos fica evidente pela própria escolha do opinador de puxar o assunto pelo apoio ao plebiscito aprovado pelo Congresso do PT. Quando escreve seu artigo, o Congresso não havia começado.

Para atacar o mérito do plebiscito – a anulação da privatização –, faz uma apologia aos resultados da Vale privatizada e diz que só o "ranço ideológico" explicaria o fato dos "militantes do PT" ainda "perderem as estribeiras diante da simples menção da palavra privatização".

Ao citar apenas "os militantes do PT", o opinador da IstoÉ Dinheiro reforça a escolha pela desqualificação das entidades que organizaram o plebiscito apontada no primeiro parágrafo do texto: as entidades às quais o PT ("partido esquizofrênico") se somou são tomadas como nanicas, inexpressivas ou desconhecidas.

A Época publica no final de semana seguinte (8 de setembro), quando já se encerrava a coleta de votos, o que chega a parecer um release da Vale do Rio Doce.

A mobilização é apresentada como "uma espécie de plebiscito" organizado por um "grupo de entidades de esquerda", que "ganhou importância" pelo "apoio" recebido do Congresso do PT.

Apesar de a consulta ser o gancho da matéria (a informação que introduz o tema), os argumentos pró-anulação cabem em uma frase. O restantes das 3 páginas da revista são dedicados a descrever como a Vale cresceu e se tornou a 3ª maior mineradora do mundo.

Diz a matéria em seu segundo parágrafo: "Os defensores da reestatização consideram que a volta do controle do governo traria mais benefícios para o país." A frase seguinte introduz com clareza a intenção do restante da matéria: "A história da Vale, no entanto, não endossa essa opinião".

Considerando que a Vale do Rio Doce não emitiu uma única nota oficial sobre o plebiscito ou apresentando argumentos contrários à anulação, pode-se considerar que esta matéria foi, na prática, esta resposta devida pela empresa.

Já a Veja publica matéria que poderia ser tomada como artigo de opinião. No entanto, o foco da matéria não está sobre o plebiscito ou a privatização da Vale, mas trata dos resultados do Congresso do PT. A aprovação do apoio ao plebiscito pelo partido é incluída no rol das esquizofrenias do PT, que segundo a revista viveria em uma espécie de "realidade virtual". O contraponto a esta virtualidade em que navega o partido viria do "mundo real" do governo Lula. O presidente é citado na matéria, que lembra que Lula disse que o apoio ao plebiscito era "jogar para a platéia". E Veja registra ainda que o presidente "garantiu que não quer a reestatização nem pretende discutir a idéia".