Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, André Tokarski – pesquisador do INEEP e especialista em Direito Constitucional Econômico -, explica como o grupo empresarial que comprou a Refinaria de Manaus foi favorecido por acordo entre o Cade e a Petrobrás, à despeito de todos os estudos que apontavam riscos de formação de monopólios regionais
[Por André Tokarski*]
Em 2022, a exportação de petróleo cru rendeu ao país um saldo de aproximadamente 43,1 bilhões de dólares, ficando atrás apenas da exportação de soja (47,2 bilhões de dólares). De outro lado, no mesmo ano, os derivados do petróleo lideraram a pauta brasileira de importação ao custo de 23 bilhões de dólares[1].
Entre 2000 e 2022, a produção de petróleo no Brasil cresceu 144%[2], mas a ampliação do volume de óleo processado nas refinarias foi de menos de 20%[3].
A expansão da oferta de derivados ao mercado interno, particularmente do diesel, é absolutamente essencial para a retomada do crescimento econômico do país sem ampliar pressões inflacionárias.
Entretanto, a redução drástica do investimento na área de abastecimento adotada pela Petrobras desde 2015 e o termo de compromisso firmado pela empresa junto ao Cade em 2019, de vender 50% de sua capacidade de refino, colocaram em xeque a ampliação da produção interna de derivados.
Até o momento, foram vendidas apenas três das oito refinarias listadas, e a atual gestão da Petrobras pediu a revisão do acordo para pôr fim ao compromisso de venda.
O caso da venda da REMAN (Refinaria de Manaus) salta aos olhos pela sucessão de erros do Cade e da diretoria da Petrobras à época, que resultaram na transferência do controle público da única refinaria instalada na região norte do país para o grupo privado que já controlava a maior distribuidora da região.
As refinarias da Petrobras foram construídas e localizadas estrategicamente para garantir uma complementaridade entre si, visando fornecer derivados com o menor custo em todas as regiões do país. A racionalidade adotada visava minimizar os custos ao consumidor final e garantir o abastecimento de combustíveis em todo o território nacional.
A simples transferência do controle estatal para um grupo privado não assegura uma dinâmica de competição no mercado e pode gerar monopólio regionais[4].
Riscos ao ambiente concorrencial
Estudo publicado pelo Cade em 2017[5] destacou preocupações do ponto de vista concorrencial com a venda de refinarias por parte da Petrobras. O principal fator estaria relacionado com a identificação do “agente adquirente” e foram traçados três cenários. O cenário de maior risco ao ambiente concorrencial era aquele em que:
“O ativo é alienado para o principal ou um dos principais concorrentes no mercado ou para um agente que possui significativa atuação em mercados verticalmente relacionados, seja na compra ou no fornecimento de insumos. Nesse caso a operação provavelmente será preocupante do ponto de vista concorrencial, demandando uma análise profunda dos impactos da alienação no mercado”[6].
A decisão do Cade de validar a transferência do controle da antiga REMAN para o grupo Atem não foi precedida de uma análise de impacto no mercado e favoreceu a dominação de um mercado relevante por parte do grupo privado.
O grupo Atem é acusado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional de concorrência desleal[7], pois teria se beneficiado de sucessivas liminares na justiça, entre 2015 e 2018, para ficar isenta do recolhimento de PIS e COFINS e ampliar artificialmente sua participação no mercado. Segundo dados da ANP, de 2015 a 2019 a participação da Atem Distribuidora de Petróleo no mercado do Amazonas saltou de 18,2% para 52,3%.
Importante relembrar que a denúncia que originou o Inquérito Administrativo no âmbito do Cade para investigar eventuais práticas anticoncorrenciais da Petrobras no setor de abastecimento (e que deu causa ao TCC de venda das refinarias) foi apresentada pela ABICOM (Associação Brasileira de Importadores de Combustíveis), entidade à qual o grupo Atem é filiada.
A principal argumentação da ABICOM é de que o Governo Federal utilizou, entre 2004 e 2015, os preços da gasolina e do óleo diesel como ferramenta de controle inflacionário, sendo vendidos no mercado interno com preços abaixo da cotação internacional.
A comprovação de que um preço é predatório depende de múltiplos fatores e dentre eles precisa ficar provado a relação com a redução do bem-estar do consumidor. A estratégia de preços praticados pela Petrobras no período assegurou resultado financeiro positivo para a empresa e benefícios para os consumidores.
O Cade, enquanto autarquia pública, é obrigado a agir em benefício do interesse público e suas decisões, conforme manda o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, não podem se dar com base em valores jurídicos abstratos (no caso em tela a liberdade concorrencial), sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Movido por um “populismo antitruste” e alheio aos interesses dos consumidores de combustível da região norte do país, o órgão que deveria atuar para promover e proteger a concorrência em benefício público promoveu a concentração de mercado e o monopólio de fato, deixando a população nortista refém dos preços abusivos praticados pelo grupo Atem.
Notas:
[1] Dados do The Observatory of Economic Complexity, disponível em: https://oec.world/en/profile/country/bra?subnationalTimeSelector=timeYear&yearSelector1=2022&yearlyTradeFlowSelector=flow0
[2] Dados da International Energy Agency: https://www.iea.org/countries/brazil/oil#how-is-oil-used-in-brazil
[3] Anuário Estatístico do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (2023): https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/anuario-estatistico-2023#Se%C3%A7%C3%A3o%202
[4] Ver mais em: http://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/16041
[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/contribuicoes-do-cade/ambiente-concorrencial-setor-refino-cade.pdf
[6] P.25: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/contribuicoes-do-cade/ambiente-concorrencial-setor-refino-cade.pdf
[7] https://estudio.folha.uol.com.br/plural-combustivel-legal/2019/11/1988481-empresa-de-combustiveis-do-amazonas-e-acusada-de-concorrencia-desleal.shtml
* André Tokarski é professor do curso de mestrado em Direito Constitucional Econômico (Madir) da Unialfa, coordenador do curso de Direito da Unialfa e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).