A tentativa de criação de uma fundação com recursos de indenização pagos pela Petrobras, numa jogada envolvendo os procuradores da Lava Jato – Ministério Público Federal (MPF) do Paraná e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, tem causado “perplexidade” na comunidade jurídica e é alvo de questionamentos por parte de políticos e parlamentares.
No acordo, parte dos R$ 2,5 bilhões pagos pela Petrobras ao governo dos Estados Unidos seriam revertidos para esse fundo, destinado a financiar supostas iniciativas de combate à corrupção e outras ações.
Além dos questionamentos quanto à legalidade da uma fundação de direito privado ser criada para gerir esses recursos, o acordo suscita preocupações do ponto de vista da segurança dos interesses nacionais já que, em troca do “repatriamento” de parte da indenização, o Departamento de Justiça norte-americano teria garantido o acesso a informações sigilosas da Petrobras.
Para a advogada criminalista Priscila Beltrame, coordenadora-chefe do Departamento de Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), trata-se de uma ação “completamente ilegal” e “tendenciosa”.
Ela diz que os procuradores do MPF ligados à Lava Jato “usurpam” funções ao quererem controlar a fundação que administraria esses recursos, indicando seus membros, quando a instituição deveria cumprir a função legal de fiscalizar a entidade. Essa mistura de atribuições impede o MPF de cumprir o seu papel constitucional, que é zelar pelo interesse público.
“Como o MPF vai fazer parte de uma organização que tem como função constitucional fiscalizar? É um ‘salto triplo’ que a gente não consegue entender, um acordo tão mal desenhado de acordo com as nossas regras vigentes”, afirmou a advogada em entrevista aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria na Rádio Brasil Atual nesta segunda-feira (11). Ela destaca que o Tribunal de Contas da União (TCU) deve entrar com ação por improbidade contra esse acordo e espera que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também tome providências.
Segundo Priscila, ao controlar fundo de “valor expressivo” para fazer “proselitismo político”, o MPF se aproxima de limites muito perigosos que colocam em risco a própria institucionalidade do órgão. Os cerca de R$ 2,5 bilhões a serem administrados pela dita fundação superam, por exemplo, o orçamento anual da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, que em 2019 tem recursos previstos de R$ 2,440 bilhões. O próprio MPF, como um todo, tem orçamento de cerca de R$ 4 bilhões para este ano, compara a advogada.
A coordenadora do IBCcrim critica também a juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, que homologou o acordo. “O que é bastante triste é o Judiciário estar cooptado ao aprovar um acordo completamente estranho, desequilibrado, em que se abre mão de patrimônio público para realizar atividade que o MPF entende como prioritária, quando não é essa a realidade do nosso país. A gente tem carência em infraestrutura, em serviços públicos. A corrupção não se combate apenas por meio de ações de uma fundação privada, mas com o reforço de controles internos na gestão do patrimônio. Parece proselitismo feito com dinheiro público.”
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Para o procurador Marcelo Mascarenhas, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a criação do fundo também não tem amparo legal. “De repente, o Ministério Público Federal de Curitiba – não foi nem a instituição MPF, foi a operação Lava Jato – por decisão própria, sem legislação autorizando, sem portaria interna delegando a eles esse poder, firmou um acordo internacional constituindo um fundo totalmente fora dos instrumentos de controle democrático.” Ele afirma que procuradores que atuam na primeira instância não têm legitimidade para fechar esse tipo de acordo internacional, nem para determinar o destino das verbas recuperadas.
O advogado e ex-deputado Wadih Damous classificou o acordo como “traição ao povo brasileiro”. “Dallagnol e sua turma de Curitiba são arrogantes e prepotentes. Não percebem que a qualquer momento serão descartados quando não interessarem mais as classes dominantes. Vão pagar por isso”, declarou Damous.
A deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), presidente da legenda, também diz que o fundo da Lava Jato evidencia “propina que a turma da Lavajato recebeu dos EUA para entregar a Petrobrás”, pondo em xeque a nossa soberania. Ela também classificou o acordo como “corrupção” e “lavagem de dinheiro”. Quem autorizou Dallagnol criar um fundo em nome do Ministério Público com o dinheiro da Petrobras? A PGR? Como é a oficialização? Tem projeto de lei? Depois, quais critérios p/distribuição dos recursos? Os amigos da Lava jato?”, questiona.
Para o ex-senador Roberto Requião (MDB-PR), diz não ver diferença entre a “Fundação Lava Jato” e a prática de caixa 2. Até mesmo o ex-senador Cristovam Buarque (PPS-DF) afirmou que o acordo não só não tem respaldo na legislação, como não é “decente” que o dinheiro recuperado fique “nas mãos de pessoas que não foram eleitas”.
O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para que a iniciativa seja apurada. Ele alega desvio de finalidade. O parlamentar diz que a apropriação desses recursos públicos por membros do MPF tem o mesmo efeito danoso da corrupção.
“Ele diziam que os recursos públicos deviam ser destinados para saúde, educação, segurança pública e geração de empregos. Concordo com esse ponto de vista do MPF. Agora eles querem ficar com R$ 1,25 bilhão e colocar numa fundação para o MPF fazer política pública?”, critica o parlamentar, pelas redes sociais. Ele diz ainda que quem tem legitimidade para fazer a destinação de recursos do Orçamento é o parlamento. “Para fazer política pública, tem que ter voto.”
O STF ainda não se pronunciou formalmente sobre o episódio, mas o ministro Marco Aurélio Mello se posicionou contrariamente. “O Judiciário não pode ter fundo”, afirmou, criticando a mistura entre direito público e privado promovida pelos procuradores da Lava Jato.
Depois que a notícia foi divulgada, na semana passada, o procurador da República Deltan Dallagnol foi às redes sociais para dizer que estariam espalhando fake news sobre a criação do fundo. Segundo ele, a indenização decorre de dano moral coletivo causado à sociedade, e não ao Estado, por isso, esse não deve gerir os recursos. O outro motivo, segundo Dallagnol, é que se os recursos da Petrobras fossem destinados aos cofres públicos, seria como “tirar de um bolso e colocar no outro”, já que a União é a sócia majoritária da Petrobras. Nesse caso, ele diz, “os Estados Unidos poderiam não permitir que o dinheiro ficasse no Brasil”.
O deputado Carlos Zarattini (PT-SP) chama a proposta de “pseudo acordo”. “É uma coisa absolutamente irregular. Qualquer multa que é paga ao Estado tem que ser recolhida ao Tesouro Nacional”, explica o parlamentar. “O que eles querem fazer? Uma fundação de direito privado, que terá o controle dos procuradores da Lava Jato”, denuncia.
Ele diz que não só essa ação, mas a “muitos aspectos” da chamada Operação Lava Jato são ilegais. Zarattini também lembra decisão do então ministro Teori Zavascki, quando negou pedido dos procuradores para que uma multa aplicada a uma empresa condenada tivesse seus recursos destinados ao custeio da própria Lava Jato, e destaca a “simbiose” de interesses entre os norte-americanos e a chamada “República de Curitiba”.
O teólogo Leonardo Boff afirmou que a criação da fundação é “um tiro no pé” e revela a “arrogância” dos procuradores da Lava Jato, ao receber “propina bilionária” por entregar o pré-sal e tecnologia nacional aos americanos. “Isso é alta traição da pátria e apropriação privada daquilo que pertence a todos”, afirmou, pelo Twitter.
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[Com informações da Rede Brasil Atual]