Para especialistas, privatização do saneamento afasta Brasil de tendência mundial

 

 

No mês de setembro, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgou um estudo em que sistematiza dados do saneamento básico no país. Entre as conclusões, a pesquisa “Visão geral dos serviços de água e esgotamento sanitário no Brasil” aponta para uma estratégia de inserção da iniciativa privada no setor, seja por meio da constituição de Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou mesmo de tentativas de privatização de empresas estatais.

Na apresentação do programa federal de privatizações denominado “Projeto Crescer”, no início deste mês, foi anunciada a inclusão de concessões de rodovias, ferrovias, terminais portuários, mineração, energia e também saneamento. Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a iniciativa vai na contramão de uma tendência de remunicipalização dos serviços, onde se observou experiências desagradáveis com a privatização. 

Berlin, Buenos Aires, Budapeste, La Paz, Maputo e Paris são exemplos de cidades que passaram o controle novamente à iniciativa pública, aponta o estudo, que é a primeira publicação da Rede Saneamento, constituída recentemente pelo instituto e cujo objetivo é apresentar um panorama, abrangendo diferentes dimensões, dos serviços no Brasil. 

José Silvestre, coordenador técnico do Dieese à frente da pesquisa, afirma que a política  de ajuste fiscal no âmbito federal tende a reduzir a disponibilidade de recursos para os investimentos, o que facilitaria a ampliação da participação privada como alternativa para a ampliação dos serviços.  

“O que o governo está sinalizando é que virá um processo de privatização deste setor [de saneamento]. Como se dará, isso ainda não está claro. Mas dada a conjuntura e a circunstância do ajuste fiscal, isso afetará ainda mais o processo de ampliação da cobertura de áreas que não estejam servidas seja por água potável, seja pelo serviço de esgotamento sanitário de maneira geral”, disse o técnico.

O presidente não eleito Michel Temer (PMDB) demonstrou apoio aos estados que promoverem parcerias com o setor privado. O secretário executivo do “Projeto Crescer”, Moreira Franco, afirmou que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) fará encontros com os governos estaduais para definir as alternativas para a concessão do serviço ao setor privado. Na primeira fase, os estados de Rondônia, Pará e Rio de Janeiro, que já sinalizaram interesse, devem ser contemplados.

Edson Aparecido, assessor de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), critica o novo papel da empresa pública.  “O BNDES deveria ser um banco de fomento, indutor do desenvolvimento econômico e social, mas terá agora a contribuição com a modelagem de privatizações como uma de suas atribuições”, disse.

O leilão, no entanto, não deve prever a privatização das companhias estaduais. A entrega à iniciativa privada deverá ser de parte das operações, como o serviço de abastecimento de água e coleta de esgoto.  Segundo Edson, a complexidade das atribuições no setor dificultam a inserção do saneamento nos pacotes como o Crescer, pelo fato de que a ação depende dos estados e municípios. “O governo federal não pode definir o que será privatizado nos estados, mas apoiar essas iniciativas”, disse.

“A novidade do papel do BNDES para os estados é que isso pode significar um alívio de caixa, na medida em que eles tem que honrar seus compromissos com o governo federal”, complementou ele. Segundo o assessor, a tendência agora é as políticas de saneamento descolarem do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), aprovado em 2014, e que se tenha uma queda significativa dos investimentos.

Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, pondera que os municípios não podem delegar o planejamento da política do setor ao órgão regulador ou ao prestador de serviço e devem definir um órgão regulador.

“A legislação até prevê privatizações, mas tem como centro o município como o órgão que vai dar o controle social [ao setor], que vai pensar a regulação, que terá um órgão de fiscalização. Mas, na prática, não é isso que acontece”, afirma.

Ela exemplifica a situação de cidades no estado de São Paulo, onde são “raras” exceções de municípios que têm suas próprias agências. “Os operados pela Sabesp acabam tendo que fazer a delegação para à agência estadual, o que acaba gerando uma série de questionamentos do quanto é possível ter uma regulação isenta, já que ela acaba sendo um órgão muito mais próximo do governo estadual do que das prefeituras”.

Hoje, a participação do setor privado ainda é pequena. Ao todo são 1.513 prestadores, sendo 1.479 prestadores locais, a maioria ligados à administração realizada pela município ou por meio de autarquia. Em 2015, apenas 304 municípios eram atendidos por empresas privadas. O Tocantins é o estado com a maior presença privada na prestação do serviço, com  125 municípios, seguido por São Paulo e Mato Grosso, com 50 e 41 cidades, respectivamente. 

Apesar de as empresas privadas atuarem, na maioria dos casos, em cidades com menos de 50 mil habitantes, a população atendida é bastante expressiva, cerca de 32 milhões de pessoas. “Mas eles tem uma meta ousada de atender 40% da população brasileira até 2020. A tendência é que a vida deste setor seja realmente facilitada”, lembrou o assessor da FNU. 

Os prestadores regionais, Companhias Estaduais de Saneamento Básico (Cesbs), são responsáveis por 78% de todo abastecimento de água do país e 55,1% de todo esgotamento sanitário, e são, em sua maioria, empresas de economia mista. 

Cobertura 

O estudo do Dieese trabalha com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad-IBGE) que aponta que, em 2014, o Brasil possuía 95% dos domicílios com acesso a água, e somente 56% deles com coleta de esgoto.

Quando se trata de esgotamento sanitário, a cobertura média nacional dos domicílios está em um patamar abaixo dos 60%. Mesmo o acesso à água, cuja abrangência é muito maior, nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, o percentual é inferior a 90%. No caso do esgotamento sanitário o quadro é muito mais gritante. No Norte, o índice de cobertura é abaixo de 14%. 

Silvestre não acredita que o processo de privatização garanta a cobertura integral que, ele ponderam ainda está muito aquém do que preconiza a OMS e a ONU no que tange, principalmente, ao esgotamento. O coordenador do instituto lembra que o processo de de privatização do setor elétrico nos anos 1990 não garantiu a expansão da rede. 

“A tendência é que o fornecimento deste serviço, qualquer que seja ele, mas aqui falando de infraestruturas essenciais, eles vão paras áreas mais rentáveis. Em municípios longínquos em áreas de baixa renda, muito provavelmente, elas não terão o interesse do capital privado em áreas mais ‘filé mignon'”, disse.

Marussia também diferencia o aporte em investimentos e a privatização dos serviços. “Para se chegar a um bom padrão de saneamento, isso terá que ser precedido de um grande investimento em infraestrutura e não apenas em serviços”, lembra. 

Segundo ela, a disparidade entre as regiões, no que se refere à cobertura, deve ser levada em conta quando se fala em concessões à iniciativa privada. “Não tem como prestar serviço por não ter nenhuma estrutura para isso. Nem água nem esgoto se teletransporta. estamos falando em investimentos para se construir rede, que é caro, perfura a cidade”, disse. 

O que acho importante é que temos uma divisão entre investimento e serviço. Se você fala que vai privatizar o serviço de água em São Paulo, mas já tem um investimento de anos, a empresa entraria apenas com o serviço. Mas em algumas cidades não há o serviço para prestar e é necessário fazer toda a infraestrutura”, pondera.

Em relação à água, Marussia questiona a pressão de empresas ligadas à produção de bebidas, como a Nestlé e Coca-Cola. “Tem um questionamento cada vez maior de como eles se posicionam, o quanto elas impactam o local que elas estão explorando. E os estados, como um todo, devem que pensar as regras dos recursos artificiais não são as mesmas para os recursos subterrâneos”, disse.

“Nós, como sociedade, temos que começar a se interessar por esse recurso e pensar em uma regulamentação mais adequada pensando a transparência, direito à água e não comprometer o uso das futuras gerações”, completou.  

Em janeiro de 2016, a ONU reconheceu o saneamento básico como um direito humano. 

 

VIA BRASIL DE FATO

Edição: José Eduardo Bernardes