País revive golpe e ignora recomendações da Comissão da Verdade

Um ato no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, região central da cidade, relembrou desaparecidos políticos da ditadura e contemporâneos, para afirmar que o Estado segue em dívida e que a democracia é desrespeitada. Durante o ato, ativistas de direitos humanos afirmaram que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade – que entregou seu relatório final em dezembro de 2014 – foram ignoradas. E outras iniciativas de resgate histórico e apuração de fatos do período ditatorial não avançaram.

“Essa (desaparecidos) continua sendo uma questão central da nossa história contemporânea e da nossa democracia”, disse Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da USP, logo no início do ato, na manhã desta sexta-feira (31). “Enquanto essa questão permanecer, talvez nunca possamos ter uma democracia efetiva. Só será plena quando o Estado brasileiro abrir a verdade e mostrar o que seus agentes fizeram em seu nome.”

Para o presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Augusto Salvador Bezerra, o Brasil vive um momento de “fragilidade” no processo de consolidação democrática. “Pela Constituição de 88, os direitos, as liberdades públicas, deveriam ser regra”, afirmou, acrescentando que a regra virou exceção. Ele citou o fato de o país ter a quarta maior população carcerária do mundo, a chamada PEC da maioridade penal e o projeto de terceirização recentemente aprovado.

“Vivemos ainda no tempo histórico da ditadura”, disse o presidente da AJD, identificando uma “ideologia autoritária” na sociedade. “O Judiciário é um reflexo desse Estado de exceção permanente”, acrescentou, ao observar que a Lei Orgânica da Magistratura ainda é daquele período (1979).

A atividade não lotou o salão nobre, mas os manifestantes colocaram fotos de desaparecidos políticos em cada uma das 800 poltronas do auditório. Durante o ato, alguns nomes eram falados, com o coro de “presente!” na sequência. Uma enorme faixa foi pendurada no meio do salão, onde também foram feitas uma apresentação teatral e outra musical. A presidenta do Centro Acadêmico XI de Agosto, Paula Masulk, disse que será feito um pedido para reativar a comissão da verdade da Faculdade de Direito.

Lei da classe dominante

Também para Ana Lucia Marchiori, diretora do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, o país vive um período de exceção, “embora com uma suposta Constituição democrática”. Ela citou, entre outros, os casos de Amarildo Souza, o pedreiro que desapareceu após abordagem policial, e de Claudia Silva Ferreira, arrastada por uma viatura no Rio de Janeiro. “Numa sociedade de classes, a lei é da classe dominante, da elite. Nenhuma lei de uma minoria, de uma elite, pode fazer justiça à classe trabalhadora.”

A ativista e ex-presa política Amelinha Teles leu uma carta do procurador da República Sérgio Suiama, que falou sobre a dificuldade de avanço, no Brasil, na responsabilização de agentes do Estado por crimes cometidos durante a ditadura. Ele citou a condenação do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, pelo caso Araguaia.

Responsável pela ação relativa a Inês Etienne Romeu, o procurador também comentou a decisão do juiz federal Alcir Luiz Lopes Neto, de Petrópolis (RJ), que não só recusou o pedido como “ignora ou desqualifica todas as provas obtidas e, o que é pior, desqualifica o valor da palavra da vítima do estupro, dizendo que o fato só foi relatado após 8 anos do ocorrido, como se fosse possível à vítima ir a uma delegacia de polícia em 1971 registrar queixa contra os militares que a violentaram e torturaram”.

Inês, que morreu em 2015, foi torturada e estuprada em 1971 na chamada Casa da Morte, no município fluminense. O juiz rejeitou a denúncia contra o militar Antônio Waneir Pinheiro de Lima, o “Camarão”, identificado como estuprador.

Laura Petit da Silva perdeu três irmãos no período da Guerrilha do Araguaia – Jaime, Lúcio e Maria Lúcia. Apenas a jovem, de 22 anos à época (1972), foi identificada, mais de 20 anos depois, após os restos mortais terem sido encontrados no Cemitério de Xambioá (TO). “Os familiares estão nessa luta desde a campanha da Anistia”, disse Laura, também lembrando da condenação do Brasil na Corte Interamericana. “Hoje, como no passado, continuamos com as mesmas palavras de ordem. Justiça já!”, afirmou ela, para quem “o sistema repressivo não foi desmantelado”.

Os juristas Dalmo de Abreu Dallari e Fábio Konder Comparato também deram depoimentos, exibidos em um telão. Dallari afirmou que as pessoas devem permanecer “atentas contra qualquer tentativa de suspensão da ordem constitucional”. E Comparato lembrou do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Lei da Anistia. O STF, que foi contrário à revisão da lei, até hoje não apreciou os recursos contra o julgamento de 2010, “sob pressão da corporação militar”.

Aceitação

O ex-deputado estadual Adriano Diogo apontou o perigo do que chamou “de naturalização, ou aceitação, do golpe” pela sociedade. “Alguns dizem movimento da página virada. Isso não existe. O golpe não pode ser naturalizado, tem de ser enfrentado”, afirmou o ex-presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa paulista.

Várias atividades estão previstas para marcar o “aniversário” do golpe de 1964. Ainda na tarde de hoje, a partir das 16h30, a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo fará entrega do material colhido ao Arquivo Histórico Municipal.

Amanhã pela manhã haverá uma “Caminhada da Resistência”, que passará por marcos da ditadura, como o Presídio Tiradentes, a antiga sede do Dops, onde funciona hoje o Memorial da Resistência, e o Memorial da Luta pela Justiça, no antigo prédio da Auditoria Militar. A saída será a partir das 9h, no metrô Tiradentes. Às 15h30, haverá um ato diante do 36º Distrito Policial, na Rua Tutoia (Vila Mariana), que abrigava o DOI-Codi. Um movimento pede a transformação da delegacia em memorial.

Por Rede Brasil Atual