Por William Nozaki (*), do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas para o Setor de Óleo e Gás (Geep/FUP)
Há mais de duas décadas a política macroeconômica tem sido orientada por juros elevados e câmbio valorizado, em um cenário internacional marcado, do ponto de vista financeiro, pelas oscilações dos ciclos de liquidez e, do ponto de vista produtivo, pela emergência das cadeias globais de valor.
Essa combinação de fatores contribuiu para a mudança no perfil do empresariado industrial, que, progressivamente, passou a diversificar parte dos investimentos produtivos, convertendo-os em aplicações financeiras, de modo a auferir ganhos menos com lucros de médio e longo prazos e mais com rendimentos imediatos.
A financeirização que ao longo dos últimos anos foi tratada como uma questão prioritariamente macroeconômica agora revela sua face microeconômica. O caso atual da Petrobras tem sido emblemático, o rentismo não impõe sua influência sobre a petrolífera apenas de fora para dentro, ele também exerce seu poder de dentro para fora ocupando assentos nos espaços decisórios do conselho, da diretoria e da própria presidência da empresa.
Como se sabe, observa-se atualmente em curso um projeto acelerado de desmonte do arranjo institucional e estatal que criou condições para o desenvolvimento brasileiro. No epicentro desse processo encontra-se a Petrobras.
Desde 2003, a estatal preservou-se de uma forte interferência dessa lógica financeirizada na gestão interna. Ou seja, a estratégia e os projetos desenvolvidos pela Petrobras ficaram à cargo de um corpo técnico e diretivo ligado à própria empresa e/ou a especialistas que não materializavam, ao fim e ao cabo, os interesses rentistas. Foi agora, na gestão Pedro Parente, que houve, porém, uma forte reconfiguração desse cenário.
A atual gestão apresentou um novo Plano de Negócios e Gestão (2017-2021) cuja centralidade está no pacote de desinvestimentos e privatizações. Desde então, a Petrobras estabeleceu como meta se desfazer de ativos e patrimônios estimados em 34,6 bilhões de dólares (perto de 110,7 bilhões de reais).
A companhia retira-se dos ramos da petroquímica, biocombustíveis e fertilizantes, abre o mercado de refino para uma centena de importadoras, sinaliza para a abertura de capitais da BR Distribuidora, encolhe sua atuação logística, se desfaz de suas térmicas e promove a venda de campos estratégicos do pré-sal, abrindo o mercado nacional para multinacionais como a Total (francesa), a Statoil (norueguesa), a Taiyo Oil (japonesa) e a Alpek (mexicana), entre outras.
Para além da chegada de grandes companhias petrolíferas no País, o que chama a atenção é a participação de grandes fundos de investimentos no atual processo de privatizações, como é o caso, por exemplo, do Brookfield, que arrematou a compra da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) por 5,2 bilhões de dólares (16,6 bilhões de reais). Não só as empresas do setor, mas o mercado financeiro está sedento pelas novas oportunidades abertas pela Petrobras.
Dessa vez, é importante destacar: os interesses financeiros assediam a Petrobras a partir do seu interior e gera desconfianças sobre a possibilidade de existência de conflitos de interesse e tráficos de influência na companhia e no seu plano de privatizações.
A despeito de alardear a eficiência de seu novo programa de governança, compliance e de seus testes de integridade para a nomeação do alto escalão da companhia (background check), é no mínimo curioso notar que parte dos diretores e conselheiros da Petrobras permanece atuando ou atuou em segmentos empresariais diretamente interessados no desmonte da Petrobras, com destaque para conexões que deságuam no setor financeiro.
O diretor-executivo de governança e conformidade, João Adalberto Elek Jr., foi diretor financeiro do Citibank por mais de 20 anos e acabou recentemente afastado temporariamente do cargo, pois contratou sem licitação a consultoria financeira Deloitte, empresa onde sua filha trabalha. Em outras palavras: o responsável por apurar casos de conflitos de interesse é ele mesmo um interessado em conflito com as normas éticas da própria empresa. O atual diretor de estratégia, organização e sistema de gestão, Nelson Silva, foi CEO da BG e da Comgás, essa última concorrente da Liquigás Distribuidora, também privatizada.
No conselho da Petrobras, por seu turno, dos nove conselheiros, ao menos quatro tem relações pregressas ou presentes com empresas hoje interessadas na venda dos ativos da Petrobras: Luis Nelson Guedes de Carvalho e Durval José Soledade Santos, dividem suas atuações, simultaneamente, no conselho da Petrobras e no conselho administrativo da BM&FBovespa.
Francisco Papathanasiadis foi presidente da Associação Brasileira de Mercado de Capitais e Marcelo Mesquita trabalhou nos bancos Garantia e BTG Pactual. Em todos os casos, observa-se uma intensa presença de interesses financeiros na órbita e no interior da Petrobras.
Talvez o caso mais emblemático seja o do próprio presidente da Petrobras. Pedro Parente mantém seu posto de presidente do Conselho Administrativo da BM&F Bovespa justamente num momento em que a companhia realiza desinvestimentos e abertura de capitais de algumas de suas subsidiárias, além de ter atuado como CEO da Bunge, grande interessada na área de atuação da Petrobras Biocombustíveis, também privatizada.
Mais ainda: Parente é proprietário de uma empresa especializada em gestão financeira de ativos de famílias milionárias ou bilionárias, a Prada Ltda., onde tem como sócia sua esposa, oriunda do JP Morgan e do Credit Suisse, além de uma gestora egressa do setor financeiro da Booz Allen.
Em 2014, quando Parente saiu da Bunge, a Prada Ltda atendia uma carteira de 20 famílias, todas com patrimônio acima de 20 milhões de reais. Em 2016, depois de Parente ter sido nomeado presidente da BM&F Bovespa e da Petrobras, sua empresa privada passou a atender 91 famílias e 4 empresas, agora incorporando clientes com patrimônios bilionários.
Além disso, Parente é também conselheiro do grupo RBS, sucursal da Rede Globo no Rio Grande do Sul, e do Grupo ABC, empresa de propaganda que tem como sócios Nizan Guanaes e Armínio Fraga, este último, por seu turno, proprietário da Gávea Investimentos, que estabelece relações com grandes bancos e fundos internacionais interessados nos pacotes de desinvestimentos da Petrobras.
Os atuais gestores da maior petrolífera da América Latina tem por hábito defender as virtudes do mercado em contraposição aos vícios do Estado. Se dizem liberais, mas não cultivam a suposta impessoalidade e a propalada separação entre público e privado que eles mesmos dizem ser um traço essencial do liberalismo, no lugar disso se enroscam em tramas envolvendo laços de família e amizade que se convertem em troca de favores travestidas de operações técnicas e isentas. Desse modo, operam o desmonte de Estado e das empresas estatais como se estivessem numa ação entre amigos. São exatamente esses “operadores amigos” que encomendaram a privatização da Eletrobras.
Tantas possibilidades de conflitos de interesses, como no caso atual da Petrobras, causaria vergonha a qualquer liberal digno do nome, mas no Brasil, como se sabe há muito, o liberalismo é ideário de fachada, mero verniz para disfarçar a porta que abre aquela antessala onde se encontram os vendilhões do patrimônio público e os mercadores financeiros da iniciativa privada.
* Professor de Ciência Política e Economia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP)