Por Maria Carolina Bissoto, especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na qual defendeu a monografia “Direito à Verdade: por uma Interpretação Democrática e Constitucional da Lei de Anistia (Lei 6683/79)”
Em 28 de agosto de 2012 se completam 33 anos da aprovação da Lei de Anistia (Lei 6683/1979). O movimento pela Anistia moveu milhares de pessoas, que pediam “anistia ampla, geral e irrestrita” a todos os presos políticos, aos banidos, aos exilados, e jamais pediram que os torturadores fossem incluídos entre os anistiados.
Em 1979 quando a Lei foi aprovada o Congresso Nacional se encontrava sob uma conjuntura muito difícil. Desde o Pacote de Abril, um terço dos senadores eram biônicos, e a oposição “consentida”, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) não conseguia fazer muita coisa. Mesmo assim, no momento de votação da Lei de Anistia, o projeto proposto pelo governo não venceu tão facilmente.
A Lei de Anistia foi aprovada por 206 votos a favor do projeto do governo e 201 votos contrários, sendo que, congressistas da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o partido do governo, chegaram a votar contra o projeto governamental.
O artigo 1º da Lei de Anistia declara anistiados aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos entre a data de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. A Lei não anistiou todos os presos políticos, já que em seu parágrafo 2º, dispunha que os condenados pelos crimes de terrorismo, sequestro, assalto e atentado pessoal, não seriam anistiados. A Lei não foi ampla, geral e irrestrita como desejavam as milhares de pessoas que por ela clamaram. Entretanto, foi a lei possível naquele momento e permitiu o retorno de muitos exilados políticos, banidos e a libertação de muitos presos políticos. Não foi ampla, não foi irrestrita, mas não deve ser desprezada, bem como a luta pela anistia deve ser sempre valorizada.
Mas a Lei foi interpretada equivocadamente, a pretexto de incluir entre os anistiados os torturadores e demais agentes da repressão. Se o regime queria, naquele momento anistiar os torturadores, não o fez expressamente falando. Esse entendimento é político e não-jurídico, pelo menos naquele momento.
É importante dizer que crimes políticos são aqueles praticados contra o Estado e não a favor. Assim, os agentes da repressão jamais poderiam estar praticando crimes políticos, pois estavam defendendo o regime e não lutando contra ele. Também não se pode dizer que os crimes praticados pelo Estado se enquadrem na definição de “crimes conexos”, pois conexão é um termo jurídico que se refere a um crime que é praticado com o fim de facilitar a impunidade, a prática ou o ocultamento de um outro crime. Não há como se falar que a tortura é um crime praticado para ocultar um outro crime, é o crime principal.
Portanto, a Lei de Anistia não anistiou os torturadores em momento algum. Querer fazer algo não é uma previsão legal. Os legisladores do regime militar podiam até querer anistiá-los, mas se não o fizeram, não cabe aos seus intérpretes fazê-lo. Só que foram os interprétes da lei que decretaram essa anistia, totalmente equivocada. Se os torturadores não cometeram crimes políticos e nem conexos, não foram anistiados pela lei. A interpretação da lei que os anistia é uma interpretação política e não jurídica que é dada a Lei de Anistia.
Entretanto, apesar de ser só uma interpretação política, o Poder Judiciário acabou concordando com esta tese e também ampliando o prazo que seria anistiado. É o que se vê, por exemplo, no Caso Riocentro. A explosão da bomba aconteceu em maio de 1981, ou seja, nem estaria enquadrada no lapso temporal da Lei, e mesmo assim, o Poder Judiciário alegou que o caso não poderia ser analisado porque estaria anistiado. Como se percebe, nada mais errado que isso.
A interpretação dada a lei que considerava anistiado os torturadores sempre foi questionada. Mas foi em 2008 que a OAB propôs uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) de nº 153 perante o STF, ação esta que foi julgada em abril de 2010, sendo que a decisão acabou por confirmar a tese de que anistia teria sido tanto para as vítimas quanto para os torturadores e que seria fruto de um acordo. Mas como vimos que acordo é este, no qual a proposta do Congresso só foi aprovada com 5 votos a favor? Que acordo era possível num Congresso, no qual um terço dos senadores eram biônicos, ou seja, tinham sido escolhidos pelo voto indireto? Não houve acordo. Houve duas propostas e a do governo foi aprovada por pouquíssimos votos de diferença.
Essa batalha não parou por aí. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao julgar o Caso Gomes Lund e outros, afirmou, confirmando o entendimento já manifestado em casos anteriores, que torturas, mortes e desaparecimentos políticos são crimes contra a humanidade e não podem ser anistiados. Afirmou também que uma anistia aos torturadores por parte do governo se trataria de uma auto-anistia, o que é totalmente proibido pelas leis internacionais, além de ser totalmente incoerente o fato que o próprio autor de um crime possa se declarar anistiado. Ora, se a repressão partiu do Estado, como pode esse próprio se declarar anistiado do crime que ele cometeu?
Há ainda um recurso pendente de análise no STF sobre a ADPF 153. Espera-se que ao analisá-lo o STF reveja o seu posicionamento anterior e que confirme o entendimento da Corte Interamericana no sentido que os crimes contra a humanidade não podem ser anistiados, permitindo, dessa forma, o julgamento dos responsáveis por sua prática. A novela não acabou. Vamos aguardar os próximos capítulos…
Maria Carolina Bissoto é especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na qual defendeu a monografia “Direito à Verdade: por uma Interpretação Democrática e Constitucional da Lei de Anistia (Lei 6683/79)”.