O que se tornou irremediável na Europa com o massacre do ‘Charlie Hebdo’

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Por Emir Sader, cientista social e professor da UERJ

O brutal e injustificável – de qualquer ponto de vista – massacre da redação do Charlie Hebdo vira uma página irremediável na historia da França e, de alguma forma, da Europa. Foram se acumulando ódios, discriminações, agressões, violências, até desembocar no atentado sangrento de 7 de janeiro deste ano.

Muitas vezes se diz, diante de uma ou outra circunstância, que agora “já nada será como antes”. E muitas vezes foi assim. Hobsbawn considera que nada foi como antes da primeira guerra mundial, quando este sangrento conflito explodiu no centro do continente que se considerava o mais civilizado do mundo, depois de 70 anos sem guerras internacionais. Adorno considera que depois de Auschwitz a humanidade nunca mais seria a mesma. Falou-se disso com os atentados de 2011 nos Estados Unidos, mas a humanidade, cinicamente, poupou-se de dizer a mesma coisa com as bombas de Hiroshima e Nagasaki.

O que mudou definitivamente na França e na Europa com o atentado à redação do Charlie Hebdo? Acabou a cordialidade e dificilmente o espírito de humor não deixará de ser afetado. Mas o que a Europa tinha como seu melhor patrimônio, vem sendo destruído há anos e agora se consolida.

A Europa foi o continente que melhor conseguiu impôr a “paz social” dentro do capitalismo, nas décadas de vigência do Estado de bem-estar social. Nunca os direitos tinham se universalizado tanto como quando se deu o pleno emprego, com a diminuição da jornada de trabalho e outras conquistas sociais correspondentes.

A crise atual representa o fim do Estado de bem-estar social no altar do mercado, via políticas de austeridade. Mas há algum tempo já, por outro lado, a “paz social” era corroída: pela utilização da imigração para operar a mais impressionante transformação da consciência de uma classe operaria que a história já conheceu. A classe trabalhadora francesa, que era, em sua quase totalidade, socialista ou comunista, passou a votar maciçamente na extrema direita, na Frente Nacional.

O mecanismo para que se desse essa virada foi o falso argumento de que os estrangeiros chegavam para tomar o emprego e os direitos sociais dos trabalhadores franceses. Mas, junto com o fim da URSS e a conversão da social democracia ao neoliberalismo, facilitaram essa conversão e ajudaram a criar o clima de hostilidade étnica, que passou a ser um componente da sociedade francesa.

O paradoxo de que o atentado contra o Charlie Hebdo, cometido em nome da punição dos que ofenderiam Maomé, é condenado pelos islâmicos franceses, mas vai recair sobre eles, aumentar a islamofobia e favorecer a Marine Le Penn, candidata da extrema direita, só pode ser compreendido nesse quadro político e ideológico geral.

Havia episódios de violência em Paris e em outras cidades da França, protagonizados por jovens, entre eles, imigrantes de origem árabe e negros. Quem viveu em bairros populares de Paris sabe a tensão social diária entre essas camadas da população – atingida fortemente pelo desemprego, pela exclusão social e pela discriminação – e polícia, sabe do que estou falando.

Nada disso explica ou menos ainda justifica a brutalidade do atentado, mas algo dessa proporção não cai do céu azul, não é obra e psicopatas em momento de delírio. E uma das coisas mais duras para a sociedade francesa é que seus autores, embora de origem árabe, são todos franceses, nasceram e cresceram nas ultimas décadas na sociedade francesa realmente existente. Que agora terá que acertar contas consigo mesma, por ter abrigado tantas monstruosidades.