O professor e pesquisador de comunicação fala sobre a batalha da mídia na América Latina


 

Entrevista originalmente publicada no Observatório do Direito à Comunicação

A América Latina tem se destacado no cenário internacional pelas sucessivas vitórias da forças de esquerda nas eleições presidenciais. Nestas experiências de caráter mais ou menos transformador, os meios de comunicação vêm assumindo papel fundamental, seja como forças de resistência às mudanças ou como instrumentos de disputa de hegemonia de seus promotores.

Uma análise deste quadro complexo e rico está no livro A Batalha da Mídia (Pão e Rosas, 2009), escrito pelo professor Dênis de Moraes. A obra discute o papel da comunicação nas lutas políticas em curso na região a partir da investigação sobre como os governos progressistas latino-americanos têm agido em relação à mídia, seja no campo das políticas públicas para a área, seja na disputa contra grupos midiáticos opositores.

O autor analisou as alterações promovidas no ambiente regulatório do setor nos vários países e identificou que as novas políticas de comunicação de governos progressistas da região buscam viabilizar legislações antimonopólicas, apoiar meios alternativos e comunitários e estimular a produção audiovisual independente.

Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), sediado em Buenos Aires, Argentina. É professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Como você analisa a importância das batalhas em torno da comunicação no processo atual de transformação na América Latina?

A comunicação tem importância estratégica no processo de transformação na América Latina. Trata-se de um campo de luta entre diferentes propostas hegemônicas, no quadro geral dos embates políticos e culturais que têm origem na totalidade social. É na arena da comunicação que se trava, neste momento, uma das mais renhidas batalhas pelo controle do imaginário social na região. De um lado, estão as elites políticas e econômicas associadas, por identidade de propósitos de dominação, à chamada grande mídia, formando um bloco privatista que tudo faz para manter a sua influência ideológica e suas ambições lucrativas.

De outro lado, estão as forças sociais e políticas que apóiam governos progressistas empenhados em superar os malefícios provocados por décadas de neoliberalismo, assumindo compromissos com a justiça social, com a inclusão das massas no processo de desenvolvimento e com a diversidade informativa e cultural. Há um cabo-de-guerra entre ações governamentais em favor da descentralização e da diversificação dos sistemas de comunicação e as violentas campanhas midiáticas em defesa de seus históricos privilégios e mandonismos. Sob alegação de que exerce uma hipotética função social específica (informar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de contenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal.

A opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevância aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e papéis tradicionalmente desempenhados por instâncias representativas da sociedade. Pela primeira vez na América Latina, essa posição hipertrofiada dos meios, coligada à absurda concentração dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de corporações, está sendo contestada frontalmente, e em vários países podemos perceber providências concretas para se tentar reverter quadro tão adverso ao pluralismo.

Penso que a democratização dos sistemas de comunicação se insere numa moldura mais ampla, de revigoramento da esfera pública e do papel regulador e ativo do Estado na vida socioeconômica e cultural – o que depende, entre outros fatores, de políticas consistentes de promoção social e educação, formas de defesa e ampliação dos direitos de cidadania, gestão participativa na tomada de decisões, controle do capital especulativo, políticas externas independentes, redistribuição e elevação de renda e geração de empregos. Que não tenhamos ilusão: não cessarão as imprecações do conservadorismo, e os atritos com conglomerados de comunicação vão agudizar-se à medida que se acelere a velocidade das mudanças. Daí ser imperioso esclarecermos a opinião pública e desenvolvermos mobilizações e pressões para reclamar intervenções democratizadoras e afirmá-las frente às resistências das elites e da mídia.

Em que países você identificou políticas de comunicação orientadas para superação do atual quadro de hegemonia neoliberal no continente? Que experiências de contra-hegemonia você destacaria? 

Os governos de Venezuela, Equador e Bolívia – que formam um bloco de poder nacionalista, antineoliberal, antiimperialista e de esquerda – têm sido os mais coerentes e ativos na rejeição à mercantilização da informação e ao monopólio privado da mídia e ao seu predomínio desmedido no mundo social. Naqueles três países, qualificados pelo sociólogo argentino Atílio Boron, como “o eixo da esperança” na América Latina, as intervenções governamentais visam enfrentar a concentração da mídia com legislações antimonopólicas e antioligopólicas, ao mesmo tempo em que põem em vigor um conjunto de medidas para diversificar as fontes de emissão, estimular meios alternativos e comunitários, apoiar a geração e a divulgação de conteúdos regionais e locais, revalorizar os meios públicos e redirecionar fomentos e patrocínios à produção audiovisual independente.

Tais medidas contam com o respaldo das maiorias parlamentares no legislativo e de movimentos sociais e entidades que lutam pela democratização da comunicação. O meu livro "A batalha da Mídia" apresenta um amplo e detalhado painel de tais providências, incluindo iniciativas análogas que estão em curso ou em vias de execução em outros países latino-americanos, com distintos graus de profundidade e eficácia. Sabemos que não é tarefa fácil, principalmente quando políticas públicas colocam em xeque conveniências de elites políticas, empresariais e midiáticas. Os governos de Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Moraes estão sendo obrigados a travar duras pelejas para que suas propostas renovadoras sobrevivam às campanhas orquestradas pela mídia e por grupos conservadores, cujo alvo é debilitá-los perante a opinião pública.

Que experiências de políticas públicas analisadas pela pesquisa podem ser tomadas como exemplos interessantes para o Brasil?

As novas Constituições do Equador e da Bolívia consagram e protegem o direito à informação veraz e plural, instituindo mecanismos de combate à concentração e às oligopolização e assegurando a setores sociais e comunitários uma participação real na área de comunicação, incluindo o acesso à radiodifusão sob concessão pública. Também devem ser destacadas: a nova legislação de radiodifusão comunitária do Uruguai, considerada pela Amarc uma das mais avançadas do mundo; a nova lei geral de comunicação da Argentina, de clara inspiração antimonopólica e antioligopólica, em tramitação no Congresso; e a nova Lei do Audiovisual da Venezuela, que coíbe o controle da distribuição e da exibição cinematográficas por cartéis norte-americanos, garantindo reserva de mercado para filmes nacionais e latino-americanos e instituindo taxação dos lucros dos cartéis.

Merecem ainda ser apreciadas outras experiências, como, por exemplo, a cadeia de rádios dos povos originários da Bolívia, concebida por Evo Morales; os fundos de financiamento à produção independente para televisão e à regionalização da mídia patrocinados pelo governo de Michelle Bachelet no Chile; os inovadores canais públicos de televisão educativa e cultural Encuentro, criado pelo presidente Néstor Kirchner na Argentina, e Vive TV, levado ao ar pelo presidente Chávez na Venezuela; o programa de apoio ao audiovisual independente no Brasil; as modalidades de integração e intercâmbios entre órgãos públicos latino-americanos, como que acontece no canal Telesur, entre agências de notícias e emissoras de televisão estatais e com os mecanismos de co-produção e co-distribuição cinematográficas.
Mas nada disso será levado adiante, no Brasil ou em qualquer país, se faltarem vontade política aos governantes e sustentação popular. A feição progressista de um mandato não se mede por intenções retóricas nem por aptidão para contemporizar; mede-se, isto sim, pela coragem para inverter a pirâmide e colocar no alto tudo aquilo que estava sufocado e travado. O que pressupõe fazer cumprir deliberações democratizadoras. Este me parece ser o norte do presidente do Equador, Rafael Correa, ao tomar, em novembro de 2008, uma decisão importante e inédita na América Latina: designou uma comissão formada por especialistas nacionais e internacionais para realizar auditoria das licenças de rádio e televisão, com base nas disposições antimonopólicas da nova Constituição daquele país.

Aí está um exemplo fabuloso a ser seguido, com o propósito de dar transparência, legitimidade e garantias a um regime justo de concessão de canais de rádio e televisão. Um regime que ponha termo ao que Venício Artur de Lima bem definiu como “coronelismo eletrônico” e assegure equidade entre os setores público, privado e comunitário na divisão das outorgas e variedade de programação dos canais.

Dentro desse panorama de transformações na América Latina como você analisa a importância da Conferência Nacional de Comunicação, convocada para o final de 2009 no Brasil?

A Conferência é uma oportunidade extraordinária para a discussão e o encaminhamento de proposições que contribuam para a estruturação de um sistema de comunicação mais justo e democrático no Brasil. Por isso, devemos nos esforçar para realçar junto à sociedade sua importância neste momento histórico, inclusive salientando o direito que o exercício da cidadania nos confere de interferir nos rumos da comunicação no país. Contudo, não devemos cultivar ilusões, nem acreditar que males crônicos serão equacionados, por encanto, em função da repercussão dos trabalhos da Conferência. Não podemos esquecer que o mesmo governo Lula que convocou a Conferência praticamente nada fez em sete dos seus oito anos de mandato para modificar o quadro geral da comunicação no país.

Aí está a anacrônica legislação de radiodifusão que não me deixa mentir. Também não podemos desconhecer a força dos lobbies e interesses empresariais do setor. Penso que é essencial aumentar o grau de organização e de articulação de entidades e segmentos da sociedade civil que lutam pela democratização da comunicação, bem como buscar meios mais efetivos e conseqüentes de esclarecimento e convencimento da opinião pública sobre a relevância da comunicação para o desenvolvimento humano em bases igualitárias. Esses esforços me parecem decisivos, sobretudo para intensificar a pressão organizada de áreas reivindicantes da sociedade civil sobre os poderes públicos, e assim, no curso de persistentes campanhas e longas batalhas, construir, gradualmente, uma outra comunicação no país.

A Conferência, sem dúvida, poderá ter desdobramentos válidos e promissores. Mas não percamos de vista que enfrentamos e enfrentaremos inimigos poderosos, inclusive ramificados nas instituições hegemônicas. Daí a necessidade de avançarmos também no plano das mobilizações e campanhas permanentes, tanto para exigir e cobrar providências aos poderes públicos quanto para esclarecer a opinião pública sobre a necessidade urgente de políticas públicas que protejam e promovam o interesse coletivo contra ambições monopólicas privadas.

Gramsci é o autor mais presente nas suas análises, nos quatro ensaios de seu livro. Qual é a importância desse autor na compreensão das batalhas travadas na atualidade? 

O pensamento crítico de Antonio Gramsci, brilhante filósofo marxista italiano, é uma fértil fonte inspiradora na luta por efetivas transformações sociais e na compreensão das disputas políticas, ideológicas e culturais que se manifestam no contexto concreto da luta de classes. Considero extremamente atual a argumentação de Gramsci sobre as possibilidades humanizadoras para a existência. Segundo ele, perseguir o consenso em torno de concepções emancipadoras pressupõe recusar e combater proposições que tentam, intencionalmente, afastar os homens da consciência contra o conformismo, a apatia e a alienação.

Se observamos atentamente o que se passa à nossa volta, perceberemos o quanto de proposital e insidioso existe nos discursos hegemônicos; quase sempre, eles atenuam os efeitos perversos do capitalismo, arrefecer o espírito crítico e neutralizar as vozes dissonantes e questionadoras. Também reputo como fundamental a contribuição de Gramsci a um entendimento ampliado do conceito de hegemonia, tão valioso para desvendarmos os jogos de consenso e dissenso que caracterizam a produção de sentido nos meios de comunicação. Gramsci nos faz ver que a hegemonia não se reduz à coerção militar e à superioridade econômica, pois decorre também de batalhas permanentes pela conquista da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras.

A hegemonia não é, por conseguinte, uma construção monolítica, e sim o resultado das medições de forças entre blocos e classes, traduzindo formas variáveis de conservação ou reversão do domínio material e imaterial que atravessam o campo midiático, sendo por ele influenciadas. Tem a ver, portanto, com entrechoques de valores e visões de mundo. A teoria da hegemonia de Gramsci permite-nos meditar sobre o lugar crucial dos meios de comunicação na contemporaneidade, a partir de sua condição privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos. Os veículos atuam na sociedade civil como aparelhos privados de hegemonia (organismos relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito).

São os agentes da hegemonia, os portadores materiais das ideologias que almejam sedimentar apoios na sociedade civil, seja para manter a dominação, seja para contraditar seus pressupostos. Assim sendo, situar a mídia como aparelho privado de hegemonia torna-se decisivo para avaliarmos, na exata medida, sua inserção no plano político-cultural, como caixas de ressonância de posições presentes nos embates sociais. Ao mesmo tempo, as teorias gramscianas ajudam-nos bastante a vislumbrar horizontes alternativos, mobilizar coligações de forças afins e construir ações contra-hegemônicas, com o propósito de intervirmos sistematicamente na difusão de informações e idéias que concorram para a formação progressiva de outros consensos em torno de concepções democratizadoras da vida social e da própria comunicação.