O professor e pesquisador da UNB analisa o processo de outorga e renovação das concessões de rádio e TV no Brasil


No próximo dia 5 de outubro, vencem as concessões das principais emissoras de TV brasileiras. Entre elas as da Record e Bandeirantes e as cinco concessões da Rede Globo –  São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Belo Horizonte. Em teoria, este seria o prazo para o governo federal decidir se aceitará o pedido de renovação das concessões a essas empresas e encaminhar esta decisão para posterior análise do Congresso Nacional. Na prática, não se sabe o que vai acontecer. Se o Presidente da República e os parlamentares não se manifestarem sobre o assunto, as emissoras continuarão operando com licenças precárias. Historicamente, o tempo médio de análise pelo Executivo dos processos de renovação de outorgas de rádio e TV tem sido de mais de seis anos.

O simbolismo da data, no entanto, fará com que o dia 5 de outubro não passe em branco. Diversos movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil estão preparando neste dia mobilizações pelo país afora. Um dos objetivos é denunciar a flagrante ilegalidade que existe nos processos de concessão e renovação de outorgas.



É sobre este assunto que Venício Artur de Lima, pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília, fala nesta entrevista concedida ao Observatório do Direito à Comunicação. Confira abaixo os principais trechos da conversa.

Atualmente, os critérios econômicos são os principais num processo de licitação para a concessão de outorgas de rádio e TV no Brasil. Que tipo de problemas isso cria?
Antes mesmo das outorgas serem concedidas via licitação, o que valia mais era o poder econômico das empresas. Foi assim que a comunicação comercial se consolidou no país. Nunca obedeceu às prioridades definidas na própria lei. Na origem da legislação de radiodifusão, se estabeleceu a prioridade a finalidades educativas. De 1988 pra cá, com a promulgação da Constituição Federal, o artigo 221 passou a estabelecer quatro prioridades claras, que valeriam para qualquer tipo de outorga de radiodifusão: finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, mas isso nunca foi cumprido. Dar mais peso aos critérios econômicos na licitação é só uma forma através da qual a lei é burlada em detrimento dos objetivos que a priori são definidos para a radiodifusão. Ao introduzir a licitação e privilegiar o aspecto econômico, do ponto de vista contratual, e abandonar os outros, você esquece o que é mais importante. 

E isso também vale pra a venda de outorgas, que também é permitida por lei. É quase um processo de transferência privada, que envolve o Ministério das Comunicações. Nas transferências, não há nenhum tipo de fiscalização da autoridade pública. Eu sou concessionário, você tem interesse, eu vendo minha outorga pra você e pronto. E posso vender pra qualquer tipo de pessoa.

E o que ocorre nos processos de renovação de concessões, para os quais sequer há critérios estabelecidos?
Na renovação é pior ainda. As concessões acabam se transformando em propriedade dos concessionários. São temporárias, mas se transformam em propriedade permanente. Isso tem sido inclusive uma preocupação do Ministério Público. Recentemente, um procurador disse que era um absurdo todos os tipos de contrato de prestação de serviço público poderem ser desfeitos pelo outorgante e nada disso se aplicar à radiodifusão. Ou seja, até o Ministério Público se deu conta de que as renovações são pró-forma. Na prática, embora haja uma série de exigências formais e técnicas, de comprovação de situação fiscal, elas não se concretizam. Primeiro, porque o processo de renovação demora tanto que essas comprovações perdem a validade. Segundo, porque na renovação se ignora tudo o que já havia sido ignorado na concessão. Ou seja, o artigo 221 continua não aparecendo como critério.

O processo também passa pelo Congresso Nacional, ou seja, deputados e senadores exercem, neste caso um poder, concedente. Ao mesmo tempo, a legislação diz que nenhum parlamentar pode ser dirigente de empresas concessionárias de serviço público. Isso é respeitado?

Há, sabidamente, vários problemas no Congresso envolvendo concessões e renovações de outorgas. Um deles é o processo de tramitação interno. O Congresso sempre alegou que não tinha pessoal preparado para instruir os processo de renovação. Recentemente, houve avanços neste sentido, com o ato normativo número 1/2007 da subcomissão de concessões da CCTCI [Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados], que estabeleceu mudanças no tempo da tramitação, na exigência de se disponibilizar um banco de dados sobre os processos, etc.

Mas o problema de solução mais difícil é que, a partir do momento em que o Congresso passou a ser poder concedente, foi incorporado a este poder um grupo grande de parlamentares que são, eles próprios, associados à radiodifusão. Ou porque são diretamente concessionários ou, embora não apareçam nos contratos, estão indiretamente envolvidos via familiares ou laranjas. Isso cria problemas gigantes, porque o concessionário se confunde em alguns casos com o poder concedente, também responsável pela renovação.

Ou seja, há uma contaminação do processo pelo fato de que, tradicionalmente, há vários deputados compondo a CCTCI com interesse direto em jogo, ou para aprovar ou para prorrogar concessões. Isso foi admitido no relatório da própria subcomissão de concessões. O documento disse que, até agora, as renovações eram aprovadas em bloco sem obedecer a nenhum critério. Alguns parlamentares que foram pegos votando suas próprias concessões alegaram, em sua defesa, que isso acontecia porque a votação era em bloco.

No início do ano, o ministro das Comunicações Hélio Costa afirmou que não havia nenhum parlamentar concessionário de rádio e TV no país.
O imbróglio legal é mais complicado do que parece, não é tão simples como o ministro coloca. O Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, faz uma restrição neste sentido. A regulamentação do Código, de 63, foi diversas vezes modificada. No meio disso, entra a Constituição, que coloca o problema de uma forma diferente: o problema passa a existir quando o cidadão comum se transforma em parlamentar. Antes disso – portanto, mesmo enquanto candidato – ele pode ser concessionário. Tendo sido eleito, aí o artigo 54 da CF passa a valer. Aí o parlamentar passa a empresa para o nome da esposa…

Mas na verdade os detalhes se o parlamentar é sócio ou membro da diretoria de uma emissora são uma filigrana. Se o sujeito é parlamentar, ele se transforma em poder concedente. Os regimentos das duas Casas dizem que, quando a pessoa tiver interesse privado, há um impedimento ético em decidir sobre essa questão. No caso da Câmara, o impedimento tem que ser declarado pelo próprio deputado. Mas é obvio que como radiodifusor o parlamentar deveria se excluir de toda manifestação que envolvesse radiodifusão.

Essa questão é central no mundo contemporâneo, quando se conhece o pelo papel da comunicação na política. Obviamente é uma pratica antidemocrática.

Há algumas semanas, o Ministério das Comunicações anunciou um recadastramento das emissoras de rádio e TV, algo que não ocorria desde 1973. As empresas terão que enviar informações como o quadro societário atual, endereço, etc. Esse recadastramento serve para alguma coisa se não há fiscalização do MiniCom durante o período de exploração da outorga?
O recadastramento é para inglês ver. Será um banco de dados atualizado pelos próprios interessados e não há nenhuma informação se isso vai ser ou não colocado à disposição pública. Em novembro de 2003, o cadastro das concessões foi disponibilizado no site Minicom e desapareceu no início deste ano. Quando alguma irregularidade é encontrada e se acha alguém envolvido, o mecanismo de defesa das pessoas é dizer que o cadastro está desatualizado. Agora se fala em recadastramento, mas ninguém diz que a informação é pública, que deveria estar disponível.

Num curto prazo, o que poderia ser feito para melhorar esta situação?
Se a lei fosse cumprida, com certeza absoluta já seria um outro quadro. Um exemplo seria o acompanhamento das renovações e das novas outorgas para emissoras de rádio e TV existentes no município. Se todos conhecessem a relação das concessões existentes em seu município, as datas de vencimento de cada uma e as relações de cada uma com os políticos locais, se essa informação fosse amplamente divulgada na sociedade, a população poderia fazer um acompanhamento disso. A situação no Brasil é tão absurda que se a sociedade civil conseguisse simplesmente levantar os concessionários e aplicar as regras de hoje já seria uma revolução.

Entrevista publicada originalmente no portal do Observatório do Direito à Comunicação