O presidente do IPEA fala sobre as mudanças estruturais do emprego e da economia no Brasil

 

Entrevista originalmente publicada no IHU – On Line

No país, hoje o centro do mercado de trabalho é a terceirização da economia, em que são os serviços os responsáveis por cerca de 70% das ocupações geradas. E aí temos uma nova configuração do mercado de trabalho que implica inclusive no surgimento de outra classe trabalhadora, submetida a graus de exploração mais sofisticados do que aqueles que vigoravam quando a indústria era o centro da geração dos postos de trabalho. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento também de que o rigor dessa estruturação do mercado de trabalho ganhou peso recentemente pela formalização e expansão dos postos de trabalho na base da pirâmide social. O que estrutura o mercado de trabalho recente são os postos de trabalho com remuneração de até dois salários mínimos mensais”. A análise é do economista e professor da Unicamp Marcio Pochman, atualmente presidnete do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Ao apontar as mudanças estruturais que se delineiam no mercado de trabalho atual, Pochmann percebe um crescimento da individualização do trabalho. “Os novos métodos de gestão empresarial aprofundam o individualismo, a competição entre os trabalhadores. Isso afasta crescentemente a compreensão da classe trabalhadora em si”.

Marcio Pochmann é doutor em Economia e professor do Instituto de Economia da Unicamp. Desde 2007 é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Entre seus livros, destacamos E-trabalho (São Paulo: Publisher Brasil, 2002) e Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (São Paulo: Cortez, 2002).

Confira a entrevista.

Considerando uma queda no desemprego e o aumento da chamada classe C e do consumo, a que conclusão podemos chegar em relação ao mundo do trabalho no Brasil?

Estamos retomando uma trajetória que iniciou ainda na década de 1930, quando o Brasil, abandonando a antiga sociedade agrária, enveredou para uma sociedade urbana industrial, que tinha como centro a organização do trabalho e a estruturação do mercado de trabalho com o assalariamento. No entanto, não completamos essa estruturação e não alcançamos nem 90% do total de ocupação dos trabalhadores do Brasil como assalariados (apenas 2/3 dos trabalhadores ocupados estavam nessa condição). E destes, algo em torno de 70% tinha carteira assinada. Isso ocorreu no final dos anos 1970. A partir daí, tivemos duas décadas de regressão desse assalariamento, em um movimento de desestruturação do mercado de trabalho. Especialmente pela expansão do desemprego, tínhamos, em 1980, menos de dois milhões de pessoas desempregadas e chegamos ao ano 2000 com quase 12 milhões de pessoas sem emprego. Simultaneamente tivemos a precarização dos postos de trabalho e o crescimento da informalidade na contratação de trabalhadores assalariados e não assalariados, o que resultou numa perda de participação dos salários na renda nacional. Em 1980, os salários respondiam por 50% da renda nacional. E em 2000 os salários começaram a responder por 38% da renda nacional. Essa trajetória de desestruturação no mercado de trabalho sofreu, a partir dessa primeira década do século XXI, uma inflexão. Nós voltamos à trajetória de estruturação do mercado de trabalho pela forte ampliação do emprego assalariado com carteira assinada. Atualmente, de cada dez postos de trabalho abertos, nove são assalariados e oito são com carteira assinada. Ao mesmo tempo, tivemos um aumento, uma recuperação da participação dos salários na renda nacional. Hoje estimamos que em torno de 46% da renda nacional seja formada por salários.

Então esse é um primeiro elemento: o Brasil voltou à trajetória de estruturação do mercado de trabalho, mais ela ainda está incompleta. E tal incompletude se dá por novos fenômenos que ganham dimensão no mundo do trabalho brasileiro, como a expansão das ocupações terciárias, que é o que predomina nos dias de hoje, ao contrário daquele movimento da década de 1930 à década de 1960, que tinha como eixo estruturador o emprego industrial. No país, hoje o centro do mercado de trabalho é a terceirização da economia, em que são os serviços os responsáveis por cerca de 70% das ocupações geradas. E aí temos uma nova configuração do mercado de trabalho que implica no surgimento de uma outra classe trabalhadora, submetida a graus de exploração mais sofisticados do que aqueles que vigoravam quando a indústria era o centro da geração dos postos de trabalho. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento também de que o rigor dessa estruturação do mercado de trabalho ganhou peso recentemente pela formalização e expansão dos postos de trabalho na base da pirâmide social. O que estrutura o mercado de trabalho recente são os postos de trabalho com remuneração de até dois salários mínimos mensais.

Como avalia o mercado de trabalho de forma geral no país atualmente? Que mudanças estruturais envolvendo o trabalho e o emprego estão em curso no Brasil hoje?

Em primeiro lugar, temos o reconhecimento de que as teses neoliberais dos anos 1990 estavam equivocadas. O Brasil não estava condenado a não gerar mais empregos assalariados. As teses diziam que a CLT era um anacronismo, um obstáculo para as gerações de postos de trabalho e que a indústria não geraria mais emprego no Brasil. Sem falar que os direitos sociais trabalhistas eram considerados um impeditivo ao avanço da ocupação no Brasil. No entanto, o país voltou a gerar empregos assalariados. Hoje ele é o terceiro país que mais gera empregos no mundo. Em segundo lugar, os empregos assalariados, sem ter havido mudança na CLT, têm ganhado maior dimensão. Os direitos sociais trabalhistas têm sido igualmente importantes para o apoio aos postos de trabalho que estão sendo gerados. Além disso, a indústria voltou a gerar emprego.

O trabalho imaterial

A questão nova do ponto de vista estrutural é a formação de uma nova classe trabalhadora assentada no trabalho imaterial. É justamente aquele trabalho cujo resultado não é algo concreto, palpável, como o que predominou na antiga classe trabalhadora material, que envolvia a indústria, a agricultura e a construção civil. Essa expansão da classe trabalhadora está submetida a um grau de alienação muito grande, alienação esta que decorre do esvaziamento e da fragmentação das ciências humanas no Brasil, da incapacidade da pesquisa social em identificar essa situação nova do ponto de vista da exposição do trabalho imaterial. Além disso, temos a baixa capacidade de articular problemas em relação à dimensão da jornada de trabalho, que é decorrente da introdução de novas tecnologias de comunicação e informação (telefonia celular, internet, Ipod, tábletes), que fazem com que a pessoa continue conectada ao trabalho 24 horas por dia. O trabalho imaterial é reportável, ou seja, a pessoa o realiza em qualquer lugar, em qualquer horário.

Em segundo lugar, temos a dificuldade da estrutura sindical em capturar e compreender essa transformação profunda no mundo do trabalho atual. Os sindicatos terminam defendendo mais o passado do que sendo protagonistas do futuro.

Em terceiro lugar, está a desconexão entre a regulação pública do trabalho com a realidade do trabalho imaterial. O direito do trabalho, tal como o conhecemos, leva em conta o local específico da atuação do trabalhador. Os direitos trabalhistas (jornada de trabalho, descanso semanal, férias, acidentes de trabalho, etc.) valem somente quando a pessoa está exercendo seu trabalho no local designado para isso. Quando ela não está nesse local, os direitos não estão conectados com ela. Como o trabalho imaterial vem sendo realizado de forma cada vez mais distante do espaço em questão, há um descolamento da regulação pública.

Em quarto lugar, há um esvaziamento das políticas públicas, a baixa efetividade da atuação do Estado através de políticas de emprego, de qualificação, de coesão e convergência coletiva. O que vemos é um crescimento da individualização do trabalho. Os novos métodos de gestão empresarial aprofundam o individualismo, a competição entre os trabalhadores. Isso afasta crescentemente a compreensão da classe trabalhadora em si.

Em que medida as políticas públicas de caráter pós-neoliberal impactaram diretamente a estrutura produtiva e o funcionamento do mercado de trabalho?

Esse ciclo de políticas de caráter pós-neoliberal procuraram, num primeiro momento, reconectar a trajetória que vinha anteriormente à emergência neoliberal. Esse é um reposicionamento importante, mas insuficiente. Não se trata de reconectar o passado, mas sobretudo estabelecer uma ponte com o futuro. Essa reconexão implica, em primeiro lugar, identificar que não há mais razão técnica para alguém começar a trabalhar antes de ter completado o ensino superior. Estamos tratando agora da postergação do ingresso no mercado de trabalho. Assim como na virada do século XIX nós entendíamos que era necessário todos postergarem o ingresso no mercado de trabalho dos 5 anos para os 14 anos de idade, após ter concluído o ensino fundamental, estamos diante da emergência de reconhecer que o ensino superior passa a ser agora o piso da nova sociedade do conhecimento e do trabalho imaterial, e não mais o teto. Isso se dá também pelo fato de que estamos entrando em uma fase em que se vai viver mais. Temos uma expectativa de vida que se aproxima cada vez mais dos 100 anos de idade. Nos dias de hoje, quem chega aos 60 anos tem uma expectativa média de mais 22 anos de vida no Brasil. Então, entrar mais tardiamente e mais bem preparado no mercado de trabalho é uma exigência desse novo mundo do trabalho.

Capacitação permanente

A segunda consideração é em relação ao entendimento de que agora estamos no mundo do trabalho que exige a qualificação e a capacitação permanentes ao longo da vida útil. No mundo do trabalho anterior, a educação e a capacitação era algo que vinha antes de entrar no mercado. A educação era para o trabalho e, quando dentro do mercado de trabalho, já como adulto, não se estudava mais, porque seu primeiro emprego era uma trajetória de longa duração. O que vemos hoje é um mundo do trabalho mais instável do ponto de vista de carreiras ocupacionais. Ao mesmo tempo, é recorrente de mais conhecimento. Isso introduz uma questão nova, que é a educação para a vida toda.

Em que sentido a forma como a classe trabalhadora brasileira é inserida no mercado de trabalho faz com que o país ainda seja considerado subdesenvolvido?

Aqui temos dois elementos fundamentais. O primeiro diz respeito aos diferenciais de produtividade no trabalho. Temos uma desigualdade muito acentuada em relação a ganhos de produtividade. E esse é um indicador inegável do subdesenvolvimento brasileiro. O segundo elemento é a desigualdade do ponto de vista da remuneração e das condições de trabalho. A ausência de uma homogeneidade, de uma convergência na produtividade e na remuneração e condições de trabalho ainda nos apontam para um país subdesenvolvido.

Podemos falar em pleno emprego considerando a alta taxa de informalidade em nosso país?

É um equívoco usar esse termo para a realidade brasileira. A ideia do pleno emprego desenvolvida por Keynes sustenta que não significa que não haveria pessoas desempregadas, mas que a capacidade de produção da economia seria suficiente para absorver a todos os trabalhadores. Nem todos seriam empregados por várias razões: problemas de intermediação de mão de obra, por incompatibilidade de capacitação e qualificação, etc. Então, a ideia do pleno emprego pressupõe a capacidade da economia em contratar a todos, o que não é uma verdade no Brasil de hoje. Além disso, essa ideia pressupõe um mercado de trabalho estruturado, com todos assalariados. E realmente ainda temos uma parte importante dos nossos ocupados ainda informais, à margem da legislação social e trabalhista. Ainda temos o problema de desemprego aberto; em torno de 5 a 6 milhões de pessoas estão vivendo na condição de desempregados. Por outro lado, temos pessoas que estão ocupadas, mas em condições precárias e à margem da legislação. Então, o pleno emprego, nesse momento, não seria o termo adequado. Embora tenhamos setores com grande escassez de mão de obra qualificada, o que nos coloca diante de um paradoxo.