Por Isadora Coutinho, mestra em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)
O contexto da pandemia de covid-19 não somente provocou a revisão de planejamentos empresariais e nacionais, como também expôs, em alguns casos, fragilidades e erros de caminhos antes percorridos e previstos por empresas e Estados.
A Petrobras não ficou fora dessas revisões. Com a redução da demanda global por petróleo e a queda nos preços do barril internacional, a companhia, assim como outras empresas petrolíferas mundo afora, teve que se reorganizar para lidar com o cenário desafiador. Chama à atenção, contudo, o tipo de descompasso entre a orientação estratégica da Petrobras planejada para o período entre 2020 e 2024 e algumas de suas respostas ao quadro de crise sanitária e energética nos últimos meses. Tal descompasso joga luz às escolhas equivocadas da administração da estatal e ao seu consequente posicionamento no setor do petróleo e de energia.
O Plano de Negócios e Gestão (PNG) 2020-2024 da Petrobras, elaborado no final de 2019, aprofundou diretrizes que vinham sendo seguidas desde 2015. Isso significa uma vigorosa política de desinvestimentos aliada a um crescente enfoque na área de exploração e produção (E&P), compondo, assim, o eixo estratégico de atuação da estatal. Além de detalhar os ativos que pretende vender – por exemplo, campos em terra e águas rasas; refinarias; transporte e distribuição de gás; distribuição de GLP; usinas térmicas; gasodutos offshore; ativos internacionais –, o atual plano prevê para o quadriênio a destinação de 85% dos investimentos totais para o segmento de E&P, sendo 66% desse montante concentrados no pré-sal. Enquanto isso, no que diz respeito a outras áreas – refino, transporte, comercialização, petroquímica, renováveis, gás e energia – houve uma redução de 42,5% no volume de investimentos planejados em relação ao plano anterior.
Já no contexto de pandemia, ao mesmo tempo em que o balanço do primeiro trimestre de 2020 da Petrobras registrou o maior prejuízo da história da companhia, demonstrou também que a companhia conseguiu obter resultados operacionais positivos. Nesse sentido, por exemplo, apesar da queda de 6,1% das vendas internas em função da redução de demanda por combustíveis automotivos e querosene de aviação, houve um crescimento da receita total de vendas em 7%, sustentado pela expansão em 70% das exportações de óleo cru e produtos derivados. Portanto, de um lado, a Petrobras tem se apoiado nas exportações de óleo cru principalmente para China, que já está em fase de recuperação da crise. De outro, tem utilizado a infraestrutura disponível de seu parque de refino para produzir derivados e exportar para países como Cingapura e Estados Unidos, por exemplo.
Partindo da constatação de que essas duas medidas contribuíram para evitar que a Petrobras sofresse ainda mais os impactos da Covid-19, cabe analisá-las à luz do seu último planejamento estratégico, da conjuntura atual e das perspectivas para o futuro. Embora a primeira estratégia tenha ajudado a compensar receitas e o óleo cru seja ainda o principal item de exportação (78%), sua fragilidade tem sido imensamente exposta em âmbito mundial pelos efeitos da própria pandemia. Isso porque os preços do barril de petróleo têm se mostrado cada vez mais voláteis e suas cotações atingiram patamares extremamente baixos nos últimos meses. Além disso, a Petrobras fica exposta a uma forte concorrência com outros ofertantes e refém da demanda internacional, principalmente da China. Como exemplo, não se pode afirmar com precisão se as importações chinesas de óleo cru vão se manter no mesmo nível, e nem mesmo se e quando haverá uma recuperação completa da demanda mundial por petróleo. Ainda, deve-se considerar incertezas variadas com relação às possíveis transformações no setor de energia que já estavam em curso.
Por outro lado, chama mais à atenção a segunda estratégia adotada pela Petrobras, a qual segue em um caminho contrário ao previsto no seu último PNG – que visa o desinvestimento na estrutura de refino da empresa, com a venda de oito de suas treze refinarias. Foram justamente algumas dessas refinarias que “protegeram” a Petrobras nesse período de perdas maiores por conta da pandemia da Covid-19.
No primeiro trimestre de 2020 em comparação no mesmo período de 2019, houve um aumento de 50% do volume de óleo combustível (diesel, bunker, fuel oil, etc) exportado pela empresa. Na primeira semana de junho de 2020, a Petrobras já divulgou que superou em 10% o recorde anterior de exportação de óleo combustível atingido em fevereiro de 2020. Tal aumento tem sido em grande medida sustentado por quatro refinarias do Nordeste, das quais três integram o plano de desinvestimento da Petrobras. A partir de levantamento do Ineep, pode-se constatar que as refinarias RLAM (Bahia), RNEST (Pernambuco), RPCC (Rio Grande do Norte) e Lubnor (Ceará) contabilizaram 56% da produção de óleos combustíveis da empresa no primeiro trimestre deste ano.
Esse aumento de exportação é muito relacionado à vantagem competitiva da Petrobras no que se refere à produção de óleo combustível de navegação (bunker oil). Desde janeiro de 2020, entrou em vigor a nova regulamentação do combustível marítimo, elaborada pela Organização Marítima Internacional (IMO), que reduziu de 3,5% para 0,5% o limite dos níveis de enxofre permitidos no combustível utilizado por embarcações. No caso, o óleo brasileiro historicamente conta com baixo teor de enxofre, sendo que grande parte do petróleo no mundo precisa passar por processos adicionais de tratamento. Ou seja, em meio ao cenário adverso imposto pela pandemia, a Petrobras, em posse do seu parque de refino, pôde contar com a possibilidade de explorar esse novo nicho de mercado global, que aparenta garantir maior resiliência na sua demanda no cenário atual.
Por isso é possível afirmar que parte do motivo de a companhia não ter sofrido significativamente os impactos da Covid-19 nos primeiros meses é relacionada justamente à maior utilização de refinarias de que pretende se desfazer, as quais já se encontram em fase vinculante de venda.
Nesse sentido, tais ações tomadas pela empresa colocaram em evidência a necessidade de readaptação de sua atuação. Se antes da pandemia o planejamento estratégico da Petrobras já demonstrava estar defasado há alguns anos em relação às tendências no setor de petróleo e de energia, atualmente não resta dúvida disso. Com um montante de desinvestimentos previstos contabilizando entre US$ 20-30 bilhões para o período 2020-2024 e com uma vultosa redução de investimentos nos setores de refino, transporte, comercialização, petroquímica, gás e energia e renováveis, a Petrobras tem buscado reduzir sua margem de ação ao concentrar sua atuação na exploração e produção do petróleo do pré-sal. De tal modo, no mínimo, torna-se sem flexibilidade para redirecionar suas atividades para segmentos que podem apresentar maior resiliência a crises, como pôde ser assim feito em certa medida nos últimos meses.
No cenário de grande incerteza, a empresa ainda pôde recorrer à sua capacidade de refino para responder aos desafios impostos pela conjuntura. Todavia, em um cenário hipotético de vendas das suas refinarias, essa capacidade de resiliência não existiria. Por isso, fica em questão se eventualmente a companhia irá se adequar à realidade e às perspectivas futuras. E esse futuro exige mais do que nunca flexibilidade por parte das empresas e não a especialização em apenas um tipo de atividade da indústria, como parece ser a atual estratégia da Petrobras.
[Artigo do INEEP originalmente publicado na Revista Carta Capital | Foto: FLÁVIO EMANUEL / AGÊNCIA PETROBRAS]