O mal do avestruz


A GUINÉ Equatorial, minúsculo país da África, exporta 400 mil barris de petróleo por dia e tem PIB per capita de cerca de US$ 50 mil, medido pelo poder de compra, o nono maior do mundo. Apesar da riqueza, o país ainda não conseguiu diversificar a sua economia, que continua dependente da exportação de commodities.

O saneamento básico é precário e não há água potável nas torneiras. No campo social, a situação é muito ruim.

A Guiné Equatorial ocupa a 127ª posição no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU.

Embora o exemplo da Guiné Equatorial seja extremo, ele reflete um mal que afeta a maioria dos países exportadores de petróleo: a chamada "doença holandesa". Tal doença levou esses países a desperdiçar sua riqueza em consumo de bens importados e gastos perdulários, a criar gigantescas burocracias e a não construir os fundamentos destinados a promover o desenvolvimento sustentado.

Assim, entre os 15 maiores exportadores mundiais de petróleo, só um tem lugar de destaque no ranking do IDH da ONU: a Noruega, que ocupa a segunda colocação. O resto não figura sequer entre os 30 primeiros -a maioria está abaixo da 50ª posição.

Ademais, as economias desses países ainda são, em geral, pouco diversificadas e fortemente dependentes das divisas do petróleo.Trata-se de verdadeira tragédia que condena tais nações a um futuro incerto, já que o petróleo é recurso não-renovável.

Pois bem, com as extraordinárias descobertas do pré-sal, a megajazida que pode conter entre 50 bilhões e 70 bilhões de barris de petróleo, abre-se inexoravelmente para o Brasil a estratégica questão de como investir e distribuir os recursos da exploração dos novos campos, de forma a não repetir os erros históricos dos países exportadores de petróleo e ser contagiado pela doença holandesa.

Felizmente, a doença e a tragédia a ela associada, como demonstra a Noruega, são evitáveis. No caso do Brasil, temos algumas características que podem nos ajudar. O país tem o décimo PIB mundial, economia bastante diversificada, abundância de recursos naturais e mercado interno dinâmico e em crescimento. Esses fatores nos colocam em melhor posição e nos distinguem dos membros da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), embora continuemos a ser sociedade muito desigual.

Mas nosso grande diferencial é a democracia, que nos permite discutir todas as questões relevantes, inclusive a do petróleo. Na Noruega, tal questão foi amplamente debatida, tendo resultado na decisão do Parlamento norueguês de criar fundo soberano para gerir os recursos não-renováveis do petróleo com critérios intergeracionais, que hoje soma US$ 400 bilhões. No Brasil, venho tentando iniciar a mesma discussão, pois é óbvio que o marco regulatório vigente do petróleo, elaborado há décadas, não é adequado à nova realidade.

É imprescindível debater a criação de fundo soberano para gerir os novos recursos.

Também é preciso discutir a regulação da exploração, que não pode mais ser feita com base em "contratos de risco", pois é provável que o risco exploratório do pré-sal, jazida quase que certamente contínua, seja zero.

Outro debate que necessita ser enfrentado é relativo à espinhosa questão da hiperconcentração dos royalties do petróleo, que faz com que 62% dos recursos do país sejam apropriados por apenas nove municípios do Rio, Estado com 92 cidades. Essa hiperconcentração, que já é ofensiva ao pacto federativo, transformar-se-á em tragédia com a enxurrada de novos recursos. Será que queremos criar uma Guiné Equatorial no Brasil?

O que proponho não é um debate provinciano para ver que Estado fica com a maior parte dos recursos das novas jazidas, mas sim uma discussão estratégica para o futuro do país.

Não se pretende arranhar o pacto federativo, mas fortalecê-lo mediante distribuição e uso mais racional dos recursos, que poderá revolucionar nossa educação e inovação científica.

Nenhuma unidade da Federação terá de fazer sacrifícios. Com os recursos do pré-sal, todas podem ganhar com a redistribuição de royalties.

As resistências às novas propostas são intensas. Tais resistências são legítimas e fazem parte do jogo democrático. O que não é legítimo e democrático é a intenção de alguns de não fazer o debate sobre assunto tão relevante para o país. A sociedade brasileira tem o direito de ser informada sobre esse tema. Não se pode ignorar a nova realidade do petróleo e fazer como avestruz, que julga que o desafio desaparece quando enterra a cabeça na terra. Cedo ou tarde, esse é um debate que o Brasil terá de fazer. Melhor cedo, ou o mal do avestruz nos conduzirá à doença holandesa e nos condenará à tragédia do petróleo.