O jornalista e pesquisador esclarece as transformações que virão com a TV Digital


A televisão digital estreou oficialmente no dia 02 de dezembro, na cidade de São Paulo, para raríssimas famílias que puderam vê-la em casa, com os equipamentos postos à venda a toque de caixa, nas últimas semanas.

A transmissão digital dos sinais de televisão vem sendo apresentada como um novo momento na história da TV brasileira, hoje presente em mais de 95% dos lares.

“A TV ficará mais próxima do telespectador, oferecendo qualidade superior de imagem, maior número de canais, interação do público com a programação e transmissão perfeita para TVs, TVs em ônibus, trens e outros transportes coletivos”, afirmou o presidente Lula na cerimônia de lançamento da nova tecnologia.

Nesta entrevista, extraída de artigo originalmente publicado no portal do Observatório da Imprensa, o jornalista Gabriel Priolli, ex-presidente da Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU) e atualmente à frente da Televisão América Latina (Tal) esclarece várias questões que não foram abordadas pela grande imprensa a respeito da TV Digital.

O Brasil está certo em adotar a TV Digital?

Sem sombra de dúvida. A TVD (ou DTV, na sigla inglesa que a tradicional macaquice pátria já adotou) é uma tecnologia muito superior de transmissão de sinais de áudio e vídeo, que os países centrais já adotam desde o início da década, ou mesmo antes. Ela abre uma nova etapa na história da televisão e pode trazer enormes benefícios em termos de informação, entretenimento, educação e cidadania. Colocar-se contra a TV digital é burrice e fazê-lo apenas por pirraça contra o governo Lula, é burrice e meia.

O Brasil adotou a TV Digital no momento certo?

Em termos. A decisão de planejar a introdução da tecnologia no mercado brasileiro, um dos maiores do mundo, foi tomada até tardiamente, em novembro de 2003 (veja o Decreto nº 4901 ). Poderíamos ter começado antes. Mas, depois que o processo começou para valer, as milhares de questões que ele colocou recomendavam cautela, para que as implicações fossem bem estudadas e os entraves solucionados antes da estréia.

Não foi o que ocorreu. As emissoras apressaram o governo, temerosas com a instabilidade em seu mercado, que está ameaçado pelo migração de telespectadores para a internet, a desenfreada pirataria de DVDs e a concorrência que já se anuncia da IPTV, a televisão por internet das empresas de telefonia, que é paga, mas de custo mais baixo. Queriam fortalecer-se, oferecendo um forte atrativo ao público e recobrindo-se da aura de modernidade e avanço tecnológico que haviam perdido. O governo embarcou na pressa e, em junho de 2006, definiu as regras gerais do jogo, nos termos em que as emissoras queriam, recuando enormemente de suas objetivos iniciais (compare o Decreto nº 5820 com o anterior).

De lá para cá, tudo foi feito na correria, sem tempo para o desenvolvimento, por exemplo, do sistema operacional Ginga, o Windows da TVD brasileira – nossa (boa) contribuição ao sistema japonês que adotamos. Estamos começando sem Ginga, o que significa uma TVD limitada e gastos futuros para os consumidores que estão comprando equipamentos agora.

O Brasil fez o certo ao adotar o padrão japonês de TVD?

O padrão japonês, desenvolvido depois do americano e do europeu, é mais avançado e adapta-se melhor às condições brasileiras, sejam as sócio-econômicas, sejam as geográficas. Testes conduzidos por universidades (USP, Mackenzie), com apoio das emissoras, demonstraram isso.

A questão é que o padrão japonês privilegia a alta definição de imagens e de sons (HDTV), e a mobilidade/portabilidade, isto é, a recepção em veículos de qualquer tipo e em dispositivos pessoais como celulares, i-pods etc. A primeira dessas funcionalidades é bastante elitista, já que exige receptores muito caros. Tanto assim que, mundo afora, a definição que temos atualmente – a chamada "padrão", ou "standard" (SDTV) – ainda é majoritária na TVD.

Quanto à outra funcionalidade, o padrão japonês interessava mais às emissoras porque permite que elas transmitam diretamente para os celulares, sem passar pelas redes de telecomunicações. São elas que fazem o sinal chegar ao aparelho e não as teles. Com isso, as emissoras mantém o controle exclusivo de seu mercado. É melhor para o telespectador, claro, que não tem de pagar nada às teles, mas não foi no orçamento dele que as emissoras pensaram e sim no próprio.

Já o padrão europeu foca mais a multiprogramação, ou a possibilidade de se ampliar o número de canais, e também a interatividade, que permite ao telespectador navegar em telas de informação e fazer escolhas, como na internet. Isto seria melhor para o Brasil, que tem pouca diversidade de conteúdo na televisão e um enorme contingente de pessoas ainda longe da rede mundial de computadores (cerca de três quartos da população). Foi por isso que os setores pró-democratização da mídia posicionaram-se mais a favor do padrão europeu, ou de um padrão mais adequado às nossas necessidades.

O padrão de TVD que temos, afinal, é japonês ou nipo-brasileiro?

O governo adotou o sistema japonês, com inovações brasileiras – basicamente, o navegador Ginga e a compressão de imagens padrão MPEG-4. O sistema japonês puro não funciona aqui e não adianta trazer muamba nipônica do Paraguai. Ele também não incorporou, ainda, os avanços da engenharia brasileira.

Portanto, não há propriamente um padrão "nipo-brasileiro", ao menos por enquanto. Há um padrão japonês e um brasileiro, que é o japonês adaptado. Os dois são únicos no mundo e adotados apenas em seus mercados. O que significa que não dá para importar nem exportar. Por isso, são mais caros que o americano e o europeu. E seguirão sendo, enquanto não conquistarem novos mercados.

Onde foi parar a fábrica de semicondutores, que o Japão nos daria como contrapartida pela escolha de seu padrão?

Perdeu-se no papelório oficial. Não era uma exigência contratual nossa, nem um compromisso formal deles. Era uma vaga intenção de envidar esforços no sentido de um dia, quem sabe, considerar a remota hipótese de estudar o assunto por dois ou três minutos. Já passaram mais de cinco e não rolou fábrica alguma. Nem vai rolar.

O que, enfim, a TV digital brasileira oferecerá aos telespectadores?

Inicialmente, das grandes funcionalidades da TVD – alta definição, mobilidade/portabilidade, multiprogramação e interatividade – só está disponível a primeira. E apenas para consumidores que possam comprar conversores (set top boxes) dotados de HDTV, com custo superior a 1 mil reais, e que tenham telas de LCD ou plasma com 1080 linhas de resolução (a mais baratinha custa quase 8 mil reais). Ou seja: a elite da elite da elite dos telespectadores. A turma do Rolex.

Para a tigrada, a aquisição do conversor digital mais simples, em definição SDTV, já melhora bastante a imagem e o som do televisor analógico que a maioria tem. Mas com os preços desse conversor na faixa de 500 reais, no mínimo, significa que o consumidor terá de desembolsar quase o valor de dois televisores atuais de 16 polegadas para melhorar a sua recepção. O bom-bril na antena ainda vale mais a pena.

A TV digital elimina, de fato, todos os problemas de imagem?

A TVD acaba com fantasmas, chuviscos, oscilações, todos os problemas da televisão analógica. Mas também tem lá os seus defeitos. Quem tem NET Digital em casa já os experimenta. Sabe aquele congelamento de imagens, aquele quadriculamento, que deixa a tela como se fosse um mosaico de quadradinhos? Pois é. Defeito digital.

Quando serão introduzidas as demais funcionalidades da TV Digital?

A indústria eletrônica está prometendo dispositivos móveis e portáteis para o primeiro trimestre de 2008. Vamos ver se o preço, e não apenas o aparelho, cabe no bolso. Quanto ao celular com TV, não se anime muito. As teles comandam a produção desses equipamentos e, como não lucram nada com a TVD – ao contrário, porque fulano não telefona enquanto assiste TV, muito menos baixa vídeos, portanto não gera tráfego –, não haverá nenhuma farra de televisão no celular. É o que acontece no Japão, onde os dispositivos portáteis para recepção de TV abundam, mas não os celulares.

Quanto à interatividade, a melhor perspectiva é o final de 2008, quando estará pronto, supostamente, o navegador Ginga. Mas depende das emissoras se interessarem por oferecer produtos interativos em sua programação e não há maior entusiasmo nesse sentido. Elas acham que esse é um novo serviço, muito distinto do que fazem, e temem investir nele porque não têm modelo de negócio definido. Preferem fazer apenas o que sabem que dá dinheiro. Puro conservadorismo.

Já a multiprogramação poderia ser implantada rapidamente, se as emissoras tivessem interesse. Os investimentos não são muito altos. Mas as emissoras comerciais não querem, porque acham que haverá dispersão dos recursos publicitários por muitos canais e o cobertor será curto para todo mundo. Como apenas as emissoras educativas querem, para fazer canais de educação a distância, a indústria eletrônica não dotou os conversores de sintonia para multiprogramação. Também fica para o futuro. Indefinido.

Os preços da TV digital não vão cair com o tempo?

Certamente vão, mas em quanto tempo? Talvez leve anos. A indústria eletrônica diz que precisa ter ganhos de escala, portanto precisa vender para os primeiros consumidores por preços mais altos, para que outros comprem mais barato no futuro. Atualmente, como vimos, só a turma do Rolex pode comprar.

Mas essa turma já não tem TV por assinatura, que já é digital e que oferecerá HDTV a partir de janeiro? Vai comprar conversores digitais para quê? E se ela não comprar, como a indústria terá os ganhos de escala?

É aqui que se explica a linha de financiamento de 1 bilhão de reais do BNDES, anunciada pelo presidente Lula na cerimônia de inauguração da TVD em São Paulo. O governo vai financiar as redes varejistas, para que elas ponham os preços dos aparelhos ao alcance da tigrada. Ou seja: o contribuinte é que garantirá o ganho de escala.

Os aparelhos que forem comprados agora serão usados por muito tempo?

Só se o consumidor se contentar apenas com a melhoria do som e da imagem. Quando as outras funcionalidades da TVD forem introduzidas, os conversores lançados agora no mercado não servirão para sintonizá-las. Será preciso comprar novos aparelhos. Que não terão escala em sua produção, portanto serão caros, portanto necessitarão de uma ajudinha financeira do BNDES, portanto será mais uma conta para o contribuinte pagar.

Enfim, o que fazer? Aderir ou não à TV digital?

Não foi o próprio ministro Hélio Costa, das Comunicações, que nos sugeriu aguardar, porque o governo segue trabalhando para que o conversor digital seja vendido a 200 reais? Então sejamos obedientes e pacientes, a menos que alguém aí tenha dinheiro para torrar.