O jornalista critica a industrialização da imprensa e fala sobre mudanças na mídia


Durante a entrevista com o jornalista Bernardo Kucinski se discutiu as grandes transformações da mídia que fez o jornalismo estrito senso se diluir.  Para, ele “o campo popular não pode culpar a grande imprensa por sua própria debilidade na criação de instrumentos de comunicação”.

No jornalismo “tudo é contradição”, pois se trata de uma área de “disputa permanente pelas mentes e corações”, avalia Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo (USP). Partindo desse princípio, ele chama a atenção para a necessidade de diferenciar a “função político-ideológica da grande imprensa e da imprensa alternativa”.

Em entrevista à IHU On-Line, por e-mail, Kucinski reforça a necessidade de cobrar a veracidade dos fatos da grande imprensa, já que ela “pretexta isenção política”. A função da mídia livre, alternativa, em contrapartida, deve ser outra. Essa deve atuar “como consciência crítica dos próprios jornalistas e da sociedade”, considera.

Uma das maiores críticas aos principais veículos diz respeito à industrialização e manipulação das informações. Nesse sentido, Kucinski afirma que a mídia alternativa não pode “reclamar” do fato de a indústria da comunicação “defender a ideologia e os interesses dos grupos dominantes”.  O que se deve fazer, ressalta, é cobrar políticas públicas que “coíbam a formação de monopólios”, acabem com as irregularidades nas concessões e “ofereçam linhas de incentivo à mídia de fins não lucrativos.”

Kucinski é graduado em Física, pela Universidade de São Paulo (USP), e doutor em Ciências da Comunicação, pela mesma universidade. Entre 2003 e 2006, foi Assessor Especial da Secretaria de Comunicação Social (SECOM) da Presidência da República. Atualmente, é docente da Escola de Comunicação e Artes – Departamento de Jornalismo e Editoração da USP. Confira a entrevista.

 

Analisando a grande imprensa, atualmente, e comparando com o jornalismo feito nos anos 1960 e 70, quais as principais diferenças? Quais são os problemas do jornalismo contemporâneo?

 

Nos anos 60 e 70, o jornalismo era uma atividade mãe e principal canal do pensamento crítico: atraía intelectuais e até não-intelectuais de diversas formações. Foi um dos períodos de apogeu do jornalismo como um campo social. Hoje, dá-se o inverso: os jovens formam-se em cursos de jornalismo e espalham-se pelas mais diversas profissões, a maioria delas banais, desde a indústria do entretenimento até assessorias de imprensa, passando por vendas e promoções de eventos. No entanto, a comunicação como um todo se expandiu ao ponto de ocupar, hoje, todos os interstícios e espaços da sociedade. A comunicação tornou-se o ambiente no qual cresce e se desenvolve o ser humano. Possui uma dimensão antropológica. Nesse estado, multiplicam-se as revistas temáticas, periódicos, publicações de mercado ou institucionais de todos os tipos. O jornalismo estrito senso se diluiu. Os jornalões perderam qualidade e suas tiragens estagnaram. Mas a comunicação como um todo nunca esteve tão rica e diversificada no Brasil. Basta parar numa banca de revistas, ou entrar na internet.

 

Nesse ano, com o incentivo da Carta Maior, está surgindo um movimento que luta por uma mídia alternativa. Como sabemos, essa mídia, embora polêmica, é pequena e não consegue dialogar com o grande público. Levando em consideração as reivindicações propostas pela pequena imprensa, caso ganhe mais respaldo financeiro, ela pode, de alguma maneira, se transformar numa “nova elite midiática”, que defende, como a grande imprensa, atualmente, apenas os seus interesses?

 

Não acho que esse tipo de imprensa alternativa, mais ideológica, possa dialogar com o grande público e nem sei se essa seria sua função. Certamente seria bom se ela conseguisse dialogar com um publico “um pouco maior” e ganhasse a capacidade de contestar ou pelo menos disputar a agenda dominante da grande imprensa escrita, que a propósito, apesar desse qualificativo, também não tem público muito grande no Brasil. Para isso, seria crucial um programa de apoio à imprensa pequena, regional, experimental e alternativa.

 

O senhor diz que as verbas destinadas à mídia devem ser distribuídas segundo uma nova política pública que leve em consideração a ampla gama de veículos de informação. Que critérios devem compor essa decisão?

 

A questão das verbas de propaganda e publicidade do governo central e dos governos estaduais e municipais é mais complexa. Primeiro: os governos não deveriam usar dinheiro público para fazer propaganda de si mesmos. A lei já proíbe isso, mas ela é violada através de subterfúgios. Segundo: está comprovado que esse tipo de propaganda é de baixa eficácia, portanto o objetivo da alocação dessas verbas é muito mais o de cooptar os grandes veículos e o sistema em geral, incluindo agências que ficam com uma gorda porcentagem das verbas. Terceiro: as verbas são vultuosas. Quando se incluem as verbas de propaganda institucional (não as de propaganda de produtos e serviços) das empresas estatais subordinadas a esses governos, tornam-se as mais altas verbas de publicidade e propaganda do país.

Por tudo isso, seria preciso uma nova política pública que: a) reduzisse substancialmente as situações em que os governos podem usar dinheiro público em propaganda e publicidade e b) adotasse para a alocação dessas verbas critérios socioculturais, entre os quais estimular a mídia regional, cultural, educativa, experimental, de vanguarda e a vinculada a projetos sociais.

É importante observar que algumas empresas públicas, notadamente a Petrobras e o Banco do Brasil, já mantêm políticas de alocação de verbas substanciais de patrocínio e até de publicidade institucional, segundo os critérios que eu mencionei. E o Ministério da Cultura tem todo um programa de incentivo à produção audiovisual que também adota critérios semelhantes. Portanto, não há nenhuma novidade na proposta. Trata-se da extensão e universalização dessas práticas, na forma de uma política pública geral. A verdadeira novidade – o choque – está em dar um destino melhor às verbas ineficazes de pura cooptação alocadas pelo governo federal e certos governos estaduais e municipais aos grandes veículos.

 

A mídia, para garantir a diversidade da informação, deveria ser apartidária? Os veículos de comunicação se deixaram contaminar e corromper pelos partidos?

 

As rádios e tevês, por serem, cada uma delas, concessão pelo Estado de uma freqüência específica e única do espectro eletro-magnético, devem ser estritamente apartidárias.  Infelizmente, não é o que acontece no Brasil. Muitas rádios, inclusive, graças a subterfúgios, são propriedade de políticos com mandato eletivo, apesar de a lei proibir.

A mídia impressa, por sua natureza, é livre de restrições legais quanto à sua postura ideológica. É ampla e heterogênea. O mesmo se dá com a internet. Essa amplitude e heterogeneidade é que deveria propiciar a diversidade de informação. Há veículos menos ideológicos e mais informativos. Há os partidários, aberta ou veladamente, e os não-partidários. Existe de tudo e assim é que deve ser. Que floresçam mil flores. Em tese, toda mensagem carrega uma construção ou visão ideologicamente determinada. Há veículos mais ideológicos, nos quais essa determinação é dominante. Isso não significa que se “deixaram corromper”. É ruim quando se dizem eqüidistantes, e não são, como acontece com a maioria dos grandes jornais brasileiros. Mas isso faz parte do próprio jogo ideológico, no qual idéias de um grupo tentam se apresentar como de interesse geral ou como leis da natureza.

 

Que medidas são imprescindíveis quando se pensa em democratizar os meios de comunicação?

 

Para responder a essa questão, precisamos dividir os meios em três categorias: os meios impressos, os meios que usam o espectro eletromagnético e a internet. Os meios impressos são regidos pelo mercado. Você não democratiza os meios de informação. Você democratiza o mercado. Os mercados são a essência do sistema capitalista e tendem à concentração, com a formação de cartéis e até de monopólios. Por isso, todos os sistemas capitalistas avançados possuem legislação específica de combate à concentração do mercado. Nós também possuímos e temos uma agência (CADE) com essa função. Mas, graças a subterfúgios, ou ao medo dos políticos, que são reféns da grande imprensa, a altíssima concentração no mercado da produção da informação assim como no da distribuição da informação não é coibida.

Quanto ao rádio e à TV, deveria ser ampliada a Lei que proíbe a concentração da propriedade, ou melhor, atualizada essa lei de modo a impedir que uma mesma empresa tenha ao mesmo tempo tantas estações de rádio e de TV (além de possuir jornais).

Além de tudo isso, em todas as atividades jornalísticas deveria ser mais impositiva a aplicação do código de ética jornalística, que proíbe o falseamento da verdade dos fatos. Caberia aos próprios jornalistas essa tarefa. O ideal seria a conquista, na legislação, da cláusula de consciência, pela qual empresas não poderiam obrigar jornalistas a expressar opiniões ou avaliações contrárias à sua consciência ou puni-los por causa disso.

Quanto à internet, está tudo ainda para ser discutido. Ela é por sua natureza libertária e barata, a mídia ideal para a disseminação de idéias contra-hegemônicas. Mas está sendo ocupada cada vez mais pelo grande capital por insuficiência organizativa e ideológica das forças populares.

 

Como o senhor percebe o debate de uma reformulação na mídia, entre os jovens? Os estudantes de jornalismo demonstram preocupações com o futuro da imprensa brasileira?

 

Meus contatos mais recentes com estudantes não mostram mudança em relação aos últimos anos, dominados pela ética neoliberal do cada um por si, Deus por todos. Ainda predomina entre os jovens a preocupação com o emprego; a busca do sucesso pessoal num ambiente bastante adverso. Além disso, a função do jornalismo está se diluindo num mundo cada vez mais integrado e multifacetado de comunicação-entretenimento, o que enfraquece a demarcação ética do jornalismo.

 

Uma das reivindicações da mídia livre “alternativa” é a diversidade da informação. Como garantir "esses múltiplos pontos de vista"?

 

A mídia alternativa não pode reclamar da indústria da comunicação o fato de ser uma indústria. Nem mesmo do fato de defender a ideologia ou os interesses dos grupos dominantes. Esse é o seu papel, ainda que alegue defender o interesse público.

 

O que a mídia alternativa pode e deve cobrar é a implantação pelo governo de políticas publicas que a) coíbam a formação de monopólios e cartéis; b) imponham o império da Lei sobre o setor, acabando com todas as irregularidades nas concessões públicas; e c) ofereçam linhas de incentivo à mídia de fins não lucrativos, experimental, regional, cultural, de vanguarda e a ligada a movimentos sociais.

Além disso, os movimentos e pessoas preocupados com a qualidade da informação e do debate públicos no Brasil deveriam cobrar das instituições mais ligadas ao povo, dos sindicatos, associações, movimentos sociais, um maior investimento em comunicação. O campo popular não pode culpar a grande imprensa por sua própria debilidade na criação de instrumentos de comunicação.

 

As críticas à grande imprensa e seus comandantes ganham força nos debates. Por outro lado, todos lêem e se informam, de alguma maneira, por esses veículos. Essa relação não lhe parece contraditória? Como lutar por uma mídia alternativa ao mesmo tempo em que se cultiva os produtos da grande imprensa?

 

Na esfera da comunicação e do jornalismo, tudo é contradição. Trata-se de um campo de disputa permanente pelas mentes e corações. Nessa esfera, é preciso também distinguir entre a função político-ideológica da grande imprensa e a da imprensa alternativa. A grande imprensa é o espaço dos grandes embates político-eleitorais numa democracia de massa como é a nossa. Daí a importância de se cobrar ética jornalística da grande imprensa, já que ela pretexta isenção política. Mesmo sabendo que ela não é isenta, essa cobrança pode inibir seus abusos. Da televisão e do rádio, essa isenção deveria ser imposição legal, como já disse antes, por se tratar de concessão pública.

A mídia alternativa tem outro papel. Ela faz um contraponto. Ela atua como consciência crítica dos próprios jornalistas e da sociedade. Mas sua influência no grande jogo político eleitoral de uma democracia de massa é limitada. Por isso, a existência de uma boa mídia alternativa não resolve o problema da qualidade da democracia, se a grande imprensa for totalmente viciada.

 

O senhor concorda que, em parte, a deturpação da informação está relacionada à má qualidade dos jornalistas? Como a universidade, formadora desses profissionais, pode contribuir para mudar esse quadro?

 

A qualidade da informação é má porque isso facilita a manipulação ideológica. Junta-se a fome com a vontade de comer. Hoje, as redações parecem privilegiar os jornalistas obsequiosos e punir os que têm espinha. A seleção natural se dá pelo mecanismo da sobrevivência dos mais capacitados a manipular a informação, sofismar, mentir e suprimir informação.

O papel das universidades é o de formar bons jornalistas, independentemente do que eles vão fazer de suas vidas, ou do que o mercado lhes vai oferecer. A universidade é uma etapa crucial e irreprodutível na formação do ser humano moderno. Por esse motivo principal, além de outros, o ensino do jornalismo não pode ser rebaixado ao sabor do mercado ou de novas tecnologias. Deve ter uma sólida base humanista e ética. 

 

No que se refere à TV pública, o senhor considera que ela poderá exercer seu papel de mídia independente ou sua atuação profissional irá variar de acordo com os interesses do governo que estiver no comando?

 

O conceito de TV pública embute o atributo de independência não só do governo do dia como de interesses mercantis ou partidários. Note que esses deveriam ser os requisitos obrigatórios de todas as emissoras de rádio e tevê, já que são concessões públicas. Nem deveria ser objeto de discussão. Como sabemos, não é assim que acontece e esse é um dos motivos da campanha por uma rede pública de tevê. Idealmente, a TV Pública deveria ser financiada com recursos públicos imexíveis incluídos no orçamento da União, como se dá em alguns países, ou com taxas pagas pelo público possuidor de aparelhos de tevê, como se dá na Grã Bretanha, de modo a independer também financeiramente dos humores do governo do dia. Finalmente uma TV Pública deve ter uma política editorial (prioridades, públicos, grade de programação etc.) definida numa carta de outorga. Não pode ser autodefinida pelos seus próprios jornalistas, até porque eles naturalmente já deterão o poder último de formatação da linha proposta. Na Grã Bretanha, essa carta de outorga é rediscutida a cada dez anos pelo Parlamento. Há uma cobrança de sua aplicação. O que não significa censura e nem controle. Por exemplo, a última carta de outorga determina que a BBC dê prioridade a uma política multi-racial na sua programação, dado o extraordinário crescimento e ativismo no país de etnias antes relativamente confinadas em guetos, como os indianos e os negros. Pode-se operar o sistema de outorga por um Conselho, ou outro órgão que reflita o conjunto da sociedade. Seria melhor que existisse essa carta de outorga. Consolidaria a legitimidade da TV Pública. A TV Brasil foi definida formalmente com alguns desses requisitos (por exemplo, independência financeira), mas desprovida de outros, entre os quais a carta de outorga. Mas isso formalmente. Politicamente, ela foi montada num ambiente de defensiva ideológica e patrulhamento intenso da grande imprensa, que teme o surgimento de um padrão narrativo que dê mais contraste à suas manipulações.

Além disso, no processo de criação da TV Brasil foi cometido o erro capital de extinguir a Radiobrás, que era o sistema estatal de comunicação. A Constituição manda que coexistam os três sistemas, público, privado e estatal. Criamos um sistema público de futuro incerto, e extinguimos o Estatal já consolidado. Como alguns serviços específicos prestados pelo estatal não podem ser em si extintos, como a Hora do Brasil, isso será feito pela TV pública, por contrato terceirizado. Uma agravante, porque introjeta na TV Pública uma tarefa de comunicação estatal, o que não ajuda nada.