Entrevista publicada originalmente na Agência Carta Maior
O embaixador brasileiro no Egito, Cesário Melantonio Neto, está há mais de nove anos atuando no Oriente Médio, com passagens pelo Irã, Turquia e, agora, no país que surpreendeu o mundo neste início de ano com uma revolta popular que derrubou o ditador Hosni Mubarak. Em entrevista à agência Carta Maior, o embaixador fala sobre a situação no Egito e na região, defende uma transição política que respeite as liberdades civis da população e realize eleições para escolher um governo capaz de enfrentar os graves problemas sociais do país. Além disso, destaca a oportunidade que se abre para o Brasil na região.
“Considerando os problemas sociais e econômicos que estão na base dos protestos, imagino que os novos governos de países como o Egito e a Tunísia terão interesse nos programas sociais brasileiros. Há uma grande demanda social para isso e o Brasil pode ser um parceiro importante uma vez que já tem uma valiosa experiência nesta área”, diz Cesário Melantonio Neto.
Qual a sua avaliação sobre os protestos das últimas semanas no Egito e sobre sua consequência principal que foi a queda do presidente Hosni Mubarak?
Como praticamente todos os embaixadores que estão no Egito, acompanhei esses acontecimentos com enorme interesse, sobretudo porque estou já há um longo período no Oriente Médio. Foram três anos como embaixador no Irã, três anos e meio na Turquia e, agora, mais de três anos no Egito. Posso garantir que sentimento geral dos embaixadores é de muita esperança com essa transição política. Esperança de que ela seja de fato uma transição de seis meses, que respeite as liberdades civis da população. Essa é, inclusive, a posição do Brasil.
Além do respeito às liberdades civis da população, outra prioridade importante agora é a restauração da ordem econômica do país. É preciso ter em mente que a economia do Egito foi muito atingida pelos protestos das últimas semanas. Os prejuízos estimados variam entre 9 e 10 bilhões de dólares, em um país cujo Produto Nacional Bruto é de aproximadamente 200 bilhões de dólares. Essa revolução aconteceu exatamente no período de maior afluxo de turistas, quando a temperatura não é tão quente. Calcula-se que mais de um milhão de turistas foram embora, o que representa uma perda de aproximadamente 11% da riqueza nacional. Além disso, muitas empresas cancelaram ou adiaram investimentos que estavam planejados.
Um dos grandes motores dos protestos foi a grande presença de jovens na rua, jovens na sua maioria sem emprego. Cerca de 90% deles está nesta situação. A distribuição de renda também é muito ruim no Egito. Cerca de 40% da população vive com um ou dois dólares por dia. Nos últimos anos não houve nenhuma reforma social. Uma grande massa da população foi extremamente impactada pelo aumento da inflação (15% em 2010), particularmente grave no caso dos produtos alimentícios. A classe média, embora pequena, também foi se pauperizando, o que explica porque também saiu às ruas, solidarizando-se com os jovens e os setores mais pobres da população. Foi a conjunção destes fatores que levou milhões às ruas.
Como está a situação no país após a queda de Mubarak? Já é possível perceber algum tipo de mudança significativa?
Há duas prioridades que estão sendo enfrentadas agora. Há um movimento institucional que é a convocação de uma comissão especial que vai emendar os artigos mais importantes da Constituição em vigor (de 1977), que é muito autoritária. Esse novo texto constitucional será submetido a um referendo popular em um prazo de sessenta dias. Se aprovado, teremos mais sessenta dias até a realização das eleições parlamentares. Ou seja, o novo parlamento deve ser eleito no final de junho. E, no início de setembro, será realizada a eleição presidencial.
A outra prioridade é restaurar a ordem econômica, o comércio, os bancos. Mubarak bloqueou a internet durante uma semana. Imagine o impacto que isso tem na economia de um país hoje em dia. A Bolsa de Valores está suspensa há duas semanas. Além disso, há várias categorias profissionais em greve. Temos dois movimentos na oposição que conduziu os protestos. Um deles é de caráter político mais amplo e preocupado com o futuro governo do país. O outro é composto pelas reivindicações de diferentes setores que estavam completamente represadas. O salário médio dos servidores públicos varia entre 50 e 100 dólares mensais. E o país tem cerca de 8 milhões de funcionários públicos, entre civis e militares. Eles estão saindo às ruas para pedir aumento salarial. Abriu a caixa de Pandora.
Há também um aspecto externo que ainda será definido. Como será a nova política externa em um novo governo? Será que manterá a mesma atitude em relação a Israel e à Palestina, por exemplo, ou será mais independente?
O debate sobre a eleição presidencial já está nas ruas? Há nomes sendo apontados como possíveis candidatos? Há algum favorito despontando?
Sim, já há vários nomes surgindo: o ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, Mohamed El Baradei, o secretário geral da Liga Árabe, Amr Moussa, e o líder do partido El Ghad (Partido do Futuro, liberal, centrista), Aymar Nour, que chegou a ser preso político no governo Mubarak. Haverá outros partidos disputando a eleição. Os jovens que participaram ativamente dos protestos querem criar um partido político. A Irmandade Muçulmana também vai criar um partido, mas já anunciou que pretende participar apenas das eleições parlamentares.
Na sua opinião, o que deve acontecer agora no curto prazo? O exemplo do Egito pode se propagar para outros países da região?
Há uma série de demandas políticas, econômicas e salariais que ainda não foram atendidas. Os sindicatos estão muito ativos e, como eu disse, a caixa de Pandora foi aberta. No que diz respeito a uma possível propagação, não sou muito adepto da teoria do dominó. Os países do Oriente Médio são muito diferentes. Costumo comparar com a percepção que se tem em relação à América Latina. Muita gente, que olha de longe, acha que os países e os povos são muito parecidos. Sabemos que não são. Aqui é a mesma coisa. É normal, mas errado pensar isso do Oriente Médio. Os iranianos são persas, os turcos são otomanos, uns são sunitas, outros são xiitas. Os 22 países da Liga Árabe têm uma diversidade muito grande. O Egito e a Turquia, por exemplo, são repúblicas. Vários outros países são monarquias. Isso significa que é preciso analisar caso a caso antes de fazer previsões.
Do ponto de vista da política externa brasileira, quais são as possíveis consequências dessa turbulência no Oriente Médio?
Creio que o que está acontecendo abre um espaço maior para a política externa brasileira na região. Considerando os problemas sociais e econômicos que estão na base dos protestos, imagino que os novos governos de países como o Egito e a Tunísia terão interesse nos programas sociais brasileiros. Há uma grande demanda social para isso e o Brasil pode ser um parceiro importante uma vez que já tem uma valiosa experiência nesta área.
O sentimento é, sobretudo, de esperança. As classes sociais que saíram para as ruas no Egito têm uma expectativa muito grande de que a vida vai melhorar. É um país com mais de 80 milhões de habitantes, com muitos jovens e que vem ganhando cerca de 2,5 milhões de habitantes a cada ano. Esses números indicam a grande responsabilidade que recai sobre o governo de transição e, depois, sobre o futuro governo.