O economista analisa a conjuntura política brasileira 44 anos após o Golpe Militar


Flávio Koutzii, economista e um dos fundadores do PT, comenta, nesta entrevista, o aniversário de 44 anos do Golpe Militar no Brasil. No dia primeiro de abril de 1964 o Brasil foi vítima de uma verdade que parecia mentira: torturas, negociações ilícitas com outros países resultaram numa tragédia sem medidas por todo o continente e numa mancha negra no passado do país e que possui resquícios presentes na política atual.

“Na década de 1960, a minha geração lutou contra a ditadura”, contou-nos Flávio Koutzii, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line (revista eletrônica do Instituto Humanitas da Universidade Unisinos). Resgatando a política e os acontecimentos de cinco décadas, Koutzii relembra os seus combates contra as ditaduras brasileira e argentina, o estouro dos regimes militares na América Latina, a redemocratização e a frustração ocorrida na década de 1980, o desenvolvimento do neoliberalismo e o fortalecimento do PT ao longo dos anos 1990. Nesta entrevista ele faz um paralelo contando como ele via a política durante os anos de chumbo e como é ocenário político atual no Brasil.

Flávio Koutzii é economista pela UFRGS. Participou da fundação do Partido Operário Comunista. A militância obrigou-o a deixar o Brasil em 1970, perseguido pela ditadura militar. Na Argentina, voltou a enfrentar a repressão e esteve preso de 1975 a 1979. Libertado graças a uma campanha internacional de solidariedade, exilou-se na França, de onde retornou para o Brasil em 1984. É um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Em 1998, foi eleito deputado estadual pela terceira vez, mandato que reassumiu somente em abril de 2002, depois de três anos como chefe da Casa Civil do governo de Olívio Dutra. Atualmente, está sem mandato, pois decidiu não mais concorrer a nenhum cargo público, embora continue participando da vida política. Nas recentes prévias do PT, em Porto Alegre, apoiou a candidatura de Miguel Rossetto.

Certa vez, o senhor falou que é pós-graduado em derrotas, por ter sido vítima das ditaduras brasileira e argentina e por ter visto a esquerda entrar em crise de ética. Como o senhor avalia a influência desses momentos em sua trajetória política?

Flávio Koutzii – Eu me referia, naquela oportunidade, ao fato de que a minha geração, que começou a militar nos anos 1960, viveu, cada um de um jeito, episódios que corresponderam a determinados ciclos históricos de diferentes países. Quando usei essa expressão, de que tinha vivido várias derrotas, eu me referia ao fato de que na década de 1960 a minha geração lutou contra a ditadura. Num período inicial, que coincide com 1969 e 1970, fomos derrotados e desorganizados quando utilizamos lutas que só foram bem-sucedidas a partir do final dos anos 1970, quando o movimento estudantil e dos trabalhadores forçaram os limites da ditadura e, finalmente, tivemos a redemocratização a partir dos anos 1980.

Mas eu quero dizer, me referindo aos anos 1960, quando eu saí do país, que tivemos aí um ciclo da luta pela liberdade, contra a ditadura e uma derrota que a vida mostrou ser provisória para aqueles que continuaram com a possibilidade de retomar seus compromissos. Infelizmente, isso não valeu para todos porque muitos companheiros e irmãos ficaram pelo caminho, seja porque foram mortos, seja porque sofreram tanto na prisão e na tortura que, embora vivos, perderam parte da sua energia. O segundo ciclo, que me toca particularmente, é o das ditaduras sangrentas vividas em outros países da América Latina. No Chile, por exemplo, inicialmente, tivemos a vitória de Allende (1), e logo depois aconteceu um golpe militar ultra-sangrento (2) em 11 de setembro de 1973. No meu caso, vivi na Argentina, onde militei ao longo dos anos 1970. Comecei a militar numa situação de ditadura. Em seguida, veio a redemocratização em 1973. Em 24 de março de 1976, houve o sangrento golpe militar argentino e, nesse momento, eu já era prisioneiro político. Terminamos ali, numa dimensão muito mais ampla e massiva, uma luta que avançou e que depois foi contida por um golpe de grande espectro de repressão social, quando aconteceu essa tragédia insuportável que resultou em trinta mil desaparecidos.

Felizmente, na década de 1980, tanto no Brasil quanto na Argentina, e mais adiante no Chile e também Uruguai, vimos e protagonizamos a decadência das ditaduras, a reestruturação do processo democrático e do Estado de direito. No nosso caso, vivemos singularmente com mais sucesso e maiores resultados, uma reconstrução do campo popular, democrático e de esquerda. E, dentro desse episódio, nasce o PT, em fevereiro de 1980, e seu sistemático, e não milagroso, crescimento. Este levou 20 anos para se consolidar como uma força política nacional, como um partido de massas – coisas que a esquerda dificilmente havia conseguido – e que nos deu essa possibilidade da redemocratização.

Mas, ao mesmo tempo, os anos 1980 também foram de frustração, porque se imagina que as redemocratizações viriam combinadas com certo grau de reformas. Então, a década de 1980, depois, foi para a literatura de sociologia, de história e de economia a década perdida. Isso não é pouco: houve redemocratização, sonhos de reformas mais do que desejáveis, que foram frustrados profundamente durante o governo Sarney (3). Este pretendia, afinal, construir uma nova república que não deu certo. Na quarta década, a de 1990,  vivemos um outro tipo de derrota, uma espécie de derrota política-ideológica que não destrói o projeto político que tínhamos no Brasil. Certamente, o PT conseguiu preservar-se e crescer e até mesmo depois capitalizar os limites desta operação. Porém, é a grande década da hegemonia neoliberal, com todos os componentes dessa doutrina e com todos os agentes que consistiam claramente em vender o patrimônio nacional, diminuir o tamanho do Estado, numa entrega quase completa de elementos de defesa do país, da nação e de um projeto nacional para um integração no mercado mundial. Isso é uma coisa relativamente inevitável, mas foi feita de uma forma que, mais do que integração, virou “entregação”, uma coisa subordinada e submissa, na qual os interesses nacionais são sacrificados no altar de uma suposta modernidade.

Então, são quatro décadas e nesse tempo aconteceram dois processos dramáticos na minha vida, que é a ditadura brasileira e a argentina. Depois, em outro grau, existiu ainda a frustração em relação às reformas que se esperava na redemocratização. Além disso, há ainda a derrota dos povos em função da introdução completa do deus do mercado e da globalização. E, agora, nos anos 2000, que começou muito enérgico e esperançoso para nós, vivemos, especialmente pensando no ano de 2005, a grande crise do PT, sustentada por ações que em partes são de sua plena responsabilidade, mas que a mídia aumentou. Isto no sentido de que quando a direita cometia erros parecidos eles não eram mostrados, ganhando uma dimensão maior quando o PT as cometeu também.

Na época do estouro do mensalão, o senhor disse que, a partir de então, gostaria de provocar certa perplexidade, um mal-estar e não seria candidato naquelas eleições, sugerindo que esse fosse um ato para registrar a sua inconformidade com aqueles acontecimentos. Como se sente hoje em relação ao governo Lula e ao posicionamento do PT?

Flávio Koutzii – Esse foi meu gesto. Eu o reivindico cada dia mais, pois acredito que foi importante. Encontrei muitas pessoas, algumas ligadas ao partido, outras não, que perceberam o seu significado. Isto é uma coisa importante porque, de certa forma, essa ação foi compreendida. Estou muito em paz com essa decisão e acredito que ela foi muito importante para minha consciência. O que eu penso é que, quanto mais passa o tempo, com mais nitidez percebo, e até me sinto com certa autoridade para fazê-lo, ser inaceitável uma discussão ou uma abordagem que só trate do PT. Me sinto com autoridade porque parece muito claro que eu registrei todos os problemas e as coisas que aconteceram. No entanto, não posso olhar este país e as coisas no presente ou no passado recente sem perceber a direita brasileira, sem perceber que, além daquilo pelo qual somos responsáveis, existe um ação sistemática, implacável, com o intuito – aproveitando isso que fizemos – de nos destruir.

Quando digo destruir, não é apenas o partido, mas o campo popular, a credibilidade social de um projeto mais progressista e mais popular. Então, é óbvio que a eleição de Lula, pela segunda vez, fez com que as políticas se acentuassem ocasionados por uma inflexão no sentido do desenvolvimento. Para comparar, vamos pensar o que existe no programa atual do DEM e do PSDB se não existir, a cada três meses, uma CPI com o objetivo de implodir o governo. São partidos sem propostas. A miséria do programa do campo da direita é clara. Inclusive, pode ser explicado pelo fato de que o Lula fez melhor e mais completo aquilo que eles faziam e, baseado no seu sucesso econômico, fez uma inflexão que eles jamais fariam porque nunca tiveram alguma dimensão social com a profundidade que esse governo conseguiu fazer. Isso é uma novidade. Passada a grande e trágica bruma de 2005 e 2006, os dois próximos anos repõem as coisas no Brasil.

Generalização é sempre algo complicado, mas eu desafio: qual é o projeto da direita para hoje e para depois? Na década de 1990, eles tinham um, que era aplicar um receituário neoliberal. Independente do fato de eu gostar ou não, eles tinham um projeto político com lógica econômica e que alterou a legislação brasileira para dar funcionalidade a esse programa e, portanto, se materializou um projeto em um programa. Inclusive, foi por causa desse programa que acabaram derrotados pelo Lula em 2002.

Hoje em dia, o debate não se dá em torno das boas e más idéias do Lula, do tucanato e dos novos democratas – que são os velhos da ditadura. Isso é um fato notável. Então, isso é uma novidade extremamente importante. Eu diria, para concluir, que há uma coisa paradoxal e interessante, ou seja, é mais fácil hoje defender o governo Lula, que, em minha opinião, é um governo PT-PMDB. O nosso terceiro congresso não trouxe uma análise mais profunda e uma revisão importante que o PT necessitava inexoravelmente para recuperar uma parte dos seus valores. Para mim, o balanço hoje tem essa ênfase. Não quero mais falar do PT sem falar da direita. Constato a indigência enorme da direita do ponto de vista das propostas e a potência enorme da direita do ponto de vista do controle das grandes centrais da direita, como a Veja, que virou um panfleto da política da direita, uma revista sem nenhum equilíbrio, sem o mínimo de isenção. A mesma coisa acontece com a Folha de S. Paulo e com os grandes impérios jornalísticos. Então, é óbvio que tem uma coisa esquizofrênica aqui, que desafia quem estuda, quem lê e tenta compreender a situação.

Como o senhor vê a atuação do PSOL na política atual e quais são as suas previsões para ele?

Flávio Koutzii – O PSOL é constituído por gente de muito valor. Eu compreendo as razões políticas que levaram alguns a romper com o PT para tentar construir um projeto pela esquerda do PT. De qualquer modo, acredito que cometeram muitos erros importantes no momento fundacional desse processo. A própria maneira como Heloisa Helena (4) se envolveu na eleição presidencial eu achei um desastre. Tanto que ela chegou a ter 2% das preferências dos votos e caiu mais da metade porque quando uma corrente que pretende ser mais combatente, mais radical, mais à esquerda de uma outra força, começa a viver de parasitar essas circunstâncias, dificilmente irá a algum lugar. O PSOL tinha um desafio maior do que o PT teve, ou seja, crescer como projeto político de esquerda de massas, numa conjuntura que estava completamente alterada dos 25 anos de indiferença daquela em que o PT apareceu. Era preciso, portanto, se dirigir de uma forma menos unilateralizada. Ali se perdeu muito a vitalidade e a credibilidade desse projeto.

Dos prováveis candidatos à prefeitura de Porto Alegre, há três mulheres politicamente fortes em relação a outros candidatos e ligadas a partidos de esquerda e extrema esquerda. Para o senhor, o que esse movimento significa?

Flávio Koutzii – Para mim, significa uma equação política compreensível e uma circunstância positiva, interessante e um pouco casual, mas o que me parece é que, embora sempre lutemos para uma unificação das forças progressistas, é legítimo que o PCdoB tenha uma candidata própria. É óbvio que o PSOL, pela sua orientação diferenciada, também tenha, como nós, um processo de dois turnos. São processos positivos que devem ser considerados e que provavelmente as coisas possam convergir no segundo turno contra um candidato não apenas de direita, mas com uma administração extremamente apática.

Por que o senhor mostrou-se contrário ao resultado das prévias do PT gaúcho, em que Maria do Rosário (5) venceu a Miguel Rossetto (6) como candidata à prefeitura de Porto Alegre?

Flávio Koutzii – Na verdade, considero que a candidatura do Miguel representava uma conjugação de posições que me parecem muito importante nos dias de hoje. Acreditava fortemente que ele, que foi o secretário do governo do Olívio – de quem estive ao lado na Casa Civil – o vendo atuar com enorme capacidade administrativa e de decisão, interessava muito mais para Porto Alegre enquanto cidade. Mas, como eu acredito que idéias se materializam em métodos, essa vitória representa um pouco o desenho do PT no Rio Grande do Sul e aguardamos uma mudança, que não é a que me agrada, e um novo padrão, um novo tipo de trabalho. Mas a poeira já está baixando e precisamos constituir um trabalho que se proponha unitário e solitário para levar nossa candidata a vitória.

E qual é a sua opinião sobre o governo Yeda?

Flávio Koutzii – A minha opinião sobre o governo Yeda é que ele não poderia ser pior. Além disso, ele é um governo que fecha escolas, que “baixa o cacete” mesmo. A forma como foram reprimidas as trabalhadoras rurais naquele episódio recente nunca aconteceu igual. É um padrão de “pega, mata e come” e que precisa ser cada vez mais denunciado. Uma semana depois, prenderam sete estudantes e algemaram uma professora: a foto está em todos os jornais. A nova forma de governar era apenas a racionalização das necessidades para equilibrar o dinheiro da caixa. Então, eu acredito que seja um governo muito ruim mesmo, no sentido de que ele não diz a que veio. Quando digo que é um governo ruim, vou fazer uma comparação com um momento que eu vivi muito bem. Eu podia não gostar do governo Britto (7) pela sua orientação e pelo seu modelo. No entanto, comparando com o governo atual, qual é a sua fórmula? Criar uma base industrial nova? Cuidar dos salários? Diminuir o espaço dos trabalhadores? Não há fórmula! Isso não é um governo, isso é uma lógica completamente incapaz de enfrentar os problemas que interessam à sociedade e quando o faz tem feito de maneira repressiva.

O sucesso do governo Lula garante a permanência do PT como alternativa para o Brasil?

Flávio Koutzii – Espero que sim. Ninguém seriamente deveria falar uma bravata porque há muitas coisas pelo caminho. O que eu penso é que há um fenômeno do lulismo. Ou seja, é muito importante a liderança do Lula como presidente num período histórico, com carisma, com grande capacidade de comunicação popular, com grande inflexão em algumas políticas públicas de bastante impacto, com uma enorme capacidade de consolidar todos os fundamentos econômicos do país, e, portanto, ativar espetacularmente o nível de emprego, o deslocamento de brasileiros para a classe média, a saída de outros milhões da absoluta pobreza. Isto garante que o Lula será um grande eleitor. Entretanto, é um pouco cedo para ter certeza de que fatalmente o candidato apoiado pelo Lula conseguirá a vitória. Porque não é só o que ele (fenômeno já autônomo do PT há muito tempo) representa, mas o que representa a sua obra.