Por Conceição Lemes, do blog Vi o mundo
17 de abril de 1996. Cerca de 1.500 famílias de trabalhadores rurais sem-terra estão acampadas há mais de um mês no município de Eldorado dos Carajás, sul do Pará. Reivindicam a desapropriação de terras, principalmente as da Fazenda Macaxeira.
Como não são atendidas, em 10 de abril, iniciam a “Caminhada pela Reforma Agrária”, rumo a Belém, a capital, para sensibilizar as autoridades. No dia 16, montam acampamento próximo à cidade de Eldorado dos Carajás, interditam a estrada (no km 96 da rodovia PA-150) e exigem alimentos e transporte. Às 20h, o major que negocia com lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) garante que as reivindicações seriam levadas às autoridades estaduais e federais competentes. Um acordo é fechado.
Mas no dia 17, às 11h, um tenente da Polícia Militar (PM) comunica uma contra-ordem: nenhuma reivindicação seria atendida, nem a mesmo a doação de alimentos. Duas tropas fortemente armadas da PM – uma vinda de Marabá, outra de Paraupebas –, ocupam a estrada e iniciam a desobstrução, descarregando revólveres, metralhadoras e fuzis sobre os trabalhadores sem-terra, que se defendem com paus, pedras, foices e os tiros de um único revólver. O resultado da operação é o Massacre de Eldorados dos Carajás: 19 sem-terra barbaramente assassinados e 69 feridos. Os feridos tiveram de ser aposentados por incapacidade para o trabalho agrícola; dois deles faleceram meses depois em consequência dos ferimentos.
A partir daí, a Via Campesina Internacional instituiu o 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa. No Brasil, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, tornou a mesma data Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. Desde então, acontecem manifestações camponesas no Brasil e no restante da América Latina.
Este ano, não é diferente. Desde o dia 17, o MST está mobilizado em todo o país, realizando a Jornada Nacional de Lutas pela reforma agrária. “O objetivo é dar visibilidade à nossa luta, até porque, até hoje, nenhum dos policiais e políticos responsáveis pelo Massacre de Carajás foi punido”, afirma João Pedro Stedile, da Direção Nacional do MST.
“O papel do nosso movimento é organizar os trabalhadores do campo pobres para que lutem por seus direitos, melhorem de condições de vida e tenham terra para trabalhar.”
A mídia corporativa, que frequentemente criminaliza o MST, já está em campanha contra o “Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária” de 2010. O editorial “O vermelho de abril” publicado no Estadão do dia 4 de abril é uma mostra do que está por vir.
Leia abaixo a íntegra da entrevista de João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST, ao blog Vi o Mundo:
O editorial do Estadão do último domingo dissemina medo em relação ao MST. Ao mesmo tempo, torce veladamente para que o abril de 2010 seja mais vermelho – leia-se violento, sangramento — e respingue na candidatura da ex-ministra Dilma Rousseff (PT). Essa é a sua leitura do editorial?
Nós estamos acostumados com as declarações ideológicas desse jornal. Ficamos impressionados com a clareza com que defendem os interesses do latifúndio, da minoria privilegiada. O Estado de S. Paulo é o principal porta-voz das oligarquias rurais e dos setores mais atrasados da burguesia brasileira. Não aceitam qualquer mudança social. Há mais de 100 anos defendem a ferro e fogo os privilégios da classe dominante.
Assim como antigamente faziam anúncios de venda de trabalhadores escravos, agora se colocam contra a reforma agrária. Qualquer movimento de trabalhadores organizados é um problema. Por isso, tratam o nosso movimento como uma ameaça à toda a sociedade, que deve ser acompanhado com preocupação e combatido por parlamentares, juízes, órgãos de inteligência e formadores de opinião.
Para isso, o jornal tenta construir um clima de terror e medo, colocar um movimento de trabalhadores sem-terra como uma sombra na sociedade, criando uma paranóia que só convence aqueles que não conhecem a realidade do campo. A reforma agrária é uma ameaça, de fato, somente aos 50 mil proprietários com mais de 1.000 hectares que concentram 146 milhões de hectares (43% das terras agricultáveis). Eles representam 1% dos proprietários e devem se preocupar…
Já a Folha tenta jogar o MST contra o governo federal. É isso mesmo?
João Pedro Stedile – O estilo da Folha é mais fofoqueiro e costuma se dedicar à pequena política. São fofocas de salão. Acredita que pode alterar a luta de classes com factoides. Investe em fofocas para tentar criar contradições vazias entre o nosso movimento e o governo federal, ignorando a situação dos trabalhadores rurais e a lentidão para a criação de assentamentos. Na atualidade, prioriza a criação de factoides em defesa da candidatura de José Serra a presidente e da continuidade dos tucanos à frente do governo do estado de São Paulo. O sonho do seu proprietário é ser um intelectual respeitado, mas não passa de um pequeno-burguês lambe botas dos grandes interesses da burguesia.
Como caracterizaria o comportamento dos outros veículos da chamada grande imprensa?
Os mais perniciosos são os veículos das Organizações Globo. O Globo e o Jornal Nacional são manipuladores contumazes. Conseguem unir com genialidade a ideologia burguesa com os seus interesses particulares para ganhar dinheiro sustentando ideologicamente a desigualdade da nossa sociedade. Espero que o projeto de banda larga popular e gratuita enfraqueça o poder de manipulação da televisão aberta e enterre o papel da Globo na sociedade brasileira.
Já li uma entrevista sua onde coloca o governo Lula e o FHC em pé de igualdade. Acha que são iguais mesmo?
Na forma de tratamento dos movimentos sociais, não são iguais, não. FHC tentou cooptar, isolar e criou condições para a repressão física, que resultou nos massacres de Corumbiara e Carajás. Já no governo Lula há mais diálogo. Nunca houve repressão por parte do governo federal.
Infelizmente, em ambos os governos, não houve desconcentração da propriedade da terra, o que é o fundamental. A reforma agrária é uma política governamental, executada pelo Estado em nome da sociedade, que visa desapropriar grandes propriedades de terra que não cumprem a função social. É uma bandeira republicana, que se insere nos direitos democráticos. Para isso, procura democratizar o acesso à terra e desconcentrar a propriedade fundiária. Dentro desse conceito, durante os governos FHC e Lula, os latifundiários aumentaram o controle das terras.
Está em curso um movimento de contra-reforma agrária, realizado pela lógica do capital de empresas transnacionais e do mercado financeiro. De acordo com o censo de 2006, 15 mil fazendeiros com mais de 2 mil hectares controlavam nada menos que 98 milhões de hectares. Também houve uma maior desnacionalização das terras, com a ofensiva do capital estrangeiro. Somente no setor sucroalcooleiro, em apenas três anos, o capital estrangeiro se apropriou de 27% de todo setor, segundo o jornal Valor Econômico.
Apesar disso, reitero as diferenças. O governo FHC era o legítimo representante da aliança entre uma parcela da burguesia brasileira subordinada aos interesses do capital internacional e financeiro. Já o governo Lula representa um outro tipo de alianças. É um governo de conciliação de classes, que juntou dentro dele setores da burguesia brasileira e setores da classe trabalhadora. E por isso é um governo mais progressista do que o governo FHC.
Em agosto de 2009, o MST acampou durante duas semanas em Brasília, além ter feito marchas e protestos por todo o país. Na ocasião, apresentou uma pauta de reivindicações e estabeleceu uma negociação ampla com o governo federal para a retomada da reforma agrária. Como está essa agenda?
Nas negociações, o governo se comprometeu a assinar a portaria que revisa os índices de produtividade e investir mais 460 milhões para as desapropriações de latifúndios, além de demandas para resolver problemas nos estados. Infelizmente, não houve ainda atualização da portaria dos índices de produtividade nem aporte de recursos para reforma agrária.
Esperamos que o governo cumpra a sua palavra. Dessa forma, poderão, pelo menos, resolver problemas pontuais e conflitos que se somam nos estados. Há mais de dois anos processos assinados para desapropriação de fazendas estão parados por falta de recursos do Incra. O governo precisa investir, no mínimo, 1 bilhão de reais para zerar o passivo de fazendas, que estão em processo final de desapropriação. O orçamento previsto para o ano é apenas 460 milhões de reais.
Este ano teremos eleições presidenciais. Eu sei que oficialmente o MST não apóia este ou aquele candidato. Mas a base assim como a direção tem suas preferências. Em que candidato não votariam de modo algum?
Nós fizemos um debate com os movimentos sociais que se articulam na Via Campesina Brasil. Há um sentimento de que devemos colocar energias para impedir que o Serra ganhe as eleições. Não se trata de julgamento pessoal ou partidário, mas de uma avaliação do tipo de projeto e de forças sociais que ele representa.
Em que candidatos poderiam votar?
Em toda a nossa trajetória, o MST nunca tirou deliberações sobre nomes para votar nas eleições. Mas naturalmente a militância tem consciência política de votar – em todos os níveis – em candidatos que sejam comprometidos com a reforma agrária e com as mudanças necessárias para o Brasil. A partir disso, cada um, de acordo com a sua consciência, faz a escolha. O voto é uma manifestação da liberdade política individual, que deve se expressar em torno de projetos de sociedade.
Nas eleições deste ano, o jogo será muito sujo. Como vocês pretendem agir neste contexto, já que as forças conservadoras tentarão queimar a candidatura Dilma, valendo-se do MST?
Realmente, a campanha eleitoral deste ano será muito disputada e dura. As elites e seus meios de comunicação já fizeram diversas reuniões para se articular e se organizar, numa verdadeira guerra ideológica. Eles farão de tudo para manipular fatos e criar factoides para favorecer o Serra. Ao mesmo tempo, caso não tenham condições de ganhar, tentarão fazer com que uma vitória da Dilma esteja condicionada e comprometida em não fazer mudanças. Para isso, vão atacar sistematicamente todas as lutas sociais e movimentos populares, para evitar que atuem como força social nas eleições e discutam projetos de sociedade. Ou seja, vão sobretudo criminalizar a luta social. Esse é o jogo.
Nós estamos acostumados a ele e, independentemente de candidaturas, continuaremos fazendo o nosso papel, ou seja: organizar os trabalhadores do campo para que lutem por seus direitos e melhorem as suas condições de vida. Até os intelectuais dos tucanos sabem que nunca houve em toda a história da humanidade mudanças sociais a favor do povo e dos mais pobres sem que eles se organizassem, lutassem e conquistassem.
No fundo, o que a grande mídia teme é a força organizada dos trabalhadores. Por isso, tentam criar um clima de desânimo, contrário às lutas sociais, para evitar uma nova ascensão do movimento de massas que altere a correlação de forças na sociedade. A força da classe dominante está no poder econômico e na mídia, com o controle da ideologia. A força dos trabalhadores está na sua capacidade de mobilizar as maiorias. Para quem não acredita em luta de classes, podem esperar cenas cotidianas desse confronto.
Muita gente defende realmente a reforma agrária, mas discorda de ocupações que consideram violentas. O senhor concorda com esse tipo de ocupação? O que diria a essas pessoas?
O MST já usou todas as formas de luta possíveis e legítimas na luta pela democratização da terra: abaixo-assinados, 800 mil se cadastraram nos Correios (nos tempos do FHC), marchas de mais de 1.500 quilômetros, manifestações de rua e também ocupações de terras. Se houvesse vontade política e força social suficiente, não precisaríamos fazer ocupações de terra. Isso representa um enorme sacrifício para as famílias. As famílias não fazem ocupações porque gostam. A história de dominação do latifúndio é que fez com que as ocupações se transformassem na principal forma de luta dos camponeses.
As pessoas que criticam as ocupações de terra deveriam saber que todos os assentamentos que existem foram frutos de ocupações e pressão de acampamentos. Ao mesmo tempo, deveriam saber também que a maioria dos grandes proprietários não obteve suas terras por meio do trabalho, mas se apropriou ilegalmente de terras publicas por meio da apropriação indébita. O que as pessoas dizem quando o banqueiro Daniel Dantas usa recursos de origem desconhecida para comprar 56 fazendas com mais de 400 mil hectares no sul do Pará? Algumas delas são griladas de terras públicas e portanto nem sequer escritura têm.
E a ocupação da Cutrale?
Todo mundo criticou a nossa ocupação na Cutrale, porque os companheiros numa atitude desesperada derrubaram pés de laranja. No entanto, não ouvimos críticas na mesma altura pelo fato de a Cutrale se apropriar de mais de 5 mil hectares de terras públicas, registradas como propriedade da União, e que o Incra move um processo para despejá-la. Os trabalhadores são condenados por destruir menos de um hectare de pés de laranjas, mas a Cutrale pode grilar terras, criar um cartel no setor do suco e, com isso, nos últimos dez anos, segundo o IBGE, levar à falência mais de 20 mil pequenos e médios citricultores, que foram obrigados a destruir mais de 200 mil hectares de laranja no estado de São Paulo!!!
O MST não receia perder o apoio de parte da sociedade em função das ocupações de terra?
É possível que determinados momentos setores da sociedade se deixem influenciar pela campanha sistemática da imprensa. Mas quando isso não tem base real e verdadeira, as pessoas se dão conta de que há manipulação. A mídia burguesa já fez muita campanha contra o Lula, mas a população continua dando apoio ao seu governo.
Na base social, entre os pobres, entre os trabalhadores, o MST continua tendo muito apoio. Eu diria até que o MST nunca teve tanto apoio entre os setores organizados e conscientes da nossa sociedade. Esses setores se deram conta que as elites não querem abrir mão da concentração da propriedade e, por isso, nos atacam com tanta veemência.
Se fosse pela vontade das elites, nós e os demais movimentos sociais já tinham desaparecido. Estão nos perseguindo no Congresso Nacional: em oito anos, criaram três CPIs contra o MST. Não há registros na história do Brasil de perseguição desse tipo contra nenhum movimento social ou partido político. No entanto, continuamos firmes, porque a causa da reforma agrária é justa e necessária para o país.
No fundo, todo mundo é a favor da reforma agrária e contra o latifúndio. Chegará o dia em que a verdade será maior do que a manipulação.
Mas o apoio da sociedade civil à reforma agrária é importante, concorda?
Com certeza. Infelizmente, vivemos um momento de refluxo do movimento de massas em geral. E isso diminui a força daqueles que defendem mudanças no campo e nas cidades.
Veja a dificuldade para aprovar a lei que reduz 44 para 40 horas a jornada de trabalho, já em vigor em todo o mundo industrializado. Veja a dificuldade para aprovar o projeto de lei que determina a desapropiaçao de fazendas com trabalho escravo. Veja a greve dos professores do Estado de São Paulo.
A sociedade não fez ainda ações concretas para apoiar demandas tão justas. As organizações populares e progressistas não têm tido força para fazer as mudanças. Pelas mãos do agronegócio, o Brasil se transformou no maior consumidor mundial de venenos agrícolas (são 720 milhões de litros por safra, que agridem o meio ambiente, destroem o solo, as águas e vão para seu estômago dentro dos alimentos) e a sociedade não reage! Mas isso é temporário. Outro ciclo virá com o reascenso dos movimentos de massas e de maior mobilização das forças populares. Aí, teremos as mudanças necessárias, como a reforma agrária. Não se pode pensar em reforma agrária separada das demais mudanças que a sociedade brasileira precisa.