O Titanic era tão grande e incontrolável, e o excesso de confiança por ele gerado era tanto, que o navio ia acabar mesmo batendo num iceberg e afundando. E a combinação dos dois, tamanho e excesso de confiança, produziu uma situação que não houve lugar para todos nos escaleres de emergência. A análise é de Flávio Aguiar.
Agora, um século depois do acidente e tantos anos depois dos vários filmes sobre o tema, é possível fazer uma profecia a contrapelo sobre o Titanic. Aquele troço era tão grande e incontrolável, e o excesso de confiança por ele gerado era tanto, que o navio ia acabar mesmo batendo num iceberg e afundando. E a combinação dos dois, tamanho e excesso de confiança, produziu uma situação que não houve lugar para todos nos escaleres de emergência.
Há algo desse complexo de sentimentos (mais do que reflexões) no modo como críticos e acríticos do sistema capitalista e da orgia financeira promovida nos últimos anos reagem diante do afundamento do sistema imobiliário norte-americano e de sua repercussão nos bancos, fundos de investimento, caixas de poupança, bolsas de valores e assemelhados pelo mundo afora.
Do lado de muitos críticos, como apontou Emir Sader dias atrás aqui mesmo na Carta Maior, há um lado ao mesmo tempo catastrófico e triunfalista de “eu não disse?”. Do lado dos muitos acríticos, para não dizer entusiastas do sistema capitalista, há uma mistura paradoxal de conformismo e ansiedade. O conformismo se manifesta numa certeza de que “a vida é assim mesmo”, os “ineptos”, sejam pobres ou ricos, sobrarão nesse reordenamento de investidores e vítimas do sistema financeiro. Esse sentimento é reforçado pela notícia divulgada dias atrás em publicações como The Economist, de que alguns dos altos executivos das instituições financeiras que quebraram ou foram adquiridas por outras para não quebrarem perderam fortunas, tanto quanto pequenos investidores estão perdendo magras e sofridas economias. A ansiedade decorre da pressa em afirmar a necessidade de “salvar o sistema”, isto é, a atual estrutura do mercado financeiro, sem visualizar com ou sem nitidez as tragédias e dramas pessoais que se espraiam pelo mundo todo.
De qualquer modo, esses entusiastas ou conformados admiradores do sistema capitalista têm razão num ponto: os mais pobres, os mais fracos, é que pagarão mais pela crise, seja através do dinheiro de impostos que será empregado no “calçamento” do sistema financeiro, seja através das perdas conseqüentes. Também sairão perdendo pela explicação que se consolida cada vez mais nos círculos ortodoxos, de que o problema causador da crise foi o sistema “subprime” de financiamento imobiliário nos EUA.
O sistema subprime é um subsistema do financiamento do setor, que cobra juros mais lucrativos para financiar clientes de baixa renda, endividados, inadimplentes, numa palavra mais pobres. Esse sistema gerou uma cadeia não virtuosa de endividamentos e compromissos, pois os papéis decorrentes desses empréstimos, que cresceram muito nos últimos anos, foram negociados com outros investidores também a juros mais compensadores, porque de maior risco. Quando os clientes endividados ou pobres deixaram de pagar seus compromissos e hipotecas, veio o efeito dominó, chegando até as grandes instituições financeiras cujos executivos tinham mergulhado nessa ciranda que tinha um condimento de ilusão que, infelizmente para muitos, se revelou o lado mais real de tudo.
Conclusão implícita para os crentes no sistema: emprestar para pobre é mesmo um entojo para a economia; emprestar para pobre não é “investimento”, é “gasto” de fato.
Foi um amálgama desses sentimentos confusos com ambições ou medos políticos imediatos que levou a Câmara norte-americana a rejeitar o pacote de 700 bilhões de dólares para “calçar”o sistema financeiro. O resultado dessa decisão (que mal ou bem pode ser comparada àquela de rejeitar a CPMF no Brasil, de tempos atrás) foi desastroso para o mundo: do Japão à Islândia, passando pela Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, França, Grã-Bretanha, etc., não só as bolsas despencaram, como houve uma dupla corrida a bancos: de um lado, correntistas retirando dinheiro, do outro, governos e bancos centrais nacionalizando (leia-se, estatizando) instituições financeiras ou seus ativos, ou injetando nelas bilhões das respectivas moedas em ajuda financeira.
Culpar o sistema subprime pela quebradeira é parte da verdade, e como soe acontecer nessas situações, a meia-verdade ajuda a ocultar a verdade inteira. A expansão do sistema imobiliário norte-americano veio calcada numa total desregulamentação do setor, destinada a potencializar lucros, que é a pedra-de-toque da gestão neo-liberal, junto com a permanência da política econômica de Bush e Cia. que comprimiu cada vez mais a vida dos remediados e mais pobres. Ou seja, liberaram-se os gambás no galinheiro das penosas cada vez mais depenadas, essa é a questão. O problema não é apenas uma implosão do sistema subprime, mas se baseia na ausência de uma política social adequada. Essa ausência pode impulsionar tanto a crise atual como catástrofes do tipo do furacão que se abateu sobre Nova Orleães anos atrás.
Entretanto essa compressão dos mais empobrecidos não assegura nenhum triunfalismo à esquerda. Tradicionalmente as grandes crises do sistema capitalista, além de provocarem imediatamente uma brutal reconcentração de ativos e de liquidez, deságuam ou numa renovação do tipo New Deal (quem sabe alguma talvez possível renovação trazida por Barack Obama) ou numa renovação endurecida de políticas de direita (agora, no caso, a eleição de McCain, cujo programa agora se cobre de novas incertezas).
Na Europa o clima de crise, que vem se manifestando já há algum tempo, tem provocado reações pelos extremos. Na Alemanha, o surgimento do novo partido Die Linke (A Esquerda) é sinal disso, bem como o reforço de partidos de extrema-direita nas eleições parlamentares do último domingo em torno de Berlim, que agora parece uma cidadela de esquerda sitiada num mar encapelado onde a direita cresce. Ao mesmo tempo o partido conservador CSU perdeu a hegemonia de 40 anos na Baviera, mas o partido social-democrata, o SPD, não parece apto a beneficiar-se disso, imerso numa disputa interna entre correntes mais e menos conservadoras.
Na Áustria houve reforço de tendências conservadoras no mesmo domingo; não se sabe ainda como serão as inclinações no futuro imediato em outros países, onde predomina um clima de indecisão movido pelo complexo do Titanic: em caso de acidente, não haverá lugar para todos nos escaleres da salvação.
Em todo caso, registre-se uma curiosidade lateral: a situação da presente crise vem, até o momento pelo menos, confirmando uma previsão afirmada por jornais mais e menos conservadores em maio/junho deste ano, quando da realização das cúpulas e encontros para discutir o papel da especulação financeira no aumento dos preços dos alimentos em escala mundial. Diante da crise que já galopava em campo aberto, previa-se que, entre as grandes e médias economias do mundo, as mais protegidas, ou menos expostas, seriam as de Brasil, China, Rússia e Índia.