O cientista poítico fala sobre o desenvolvimento do Brasil e das mudanças políticas internas e externas







O futuro social e político do Brasil passa pela continuidade de um modelo de desenvolvimento marcado pela distribuição de renda e por um mercado interno voltado ao consumo popular. E a importância dessa discussão é central nas eleições presidenciais de outubro. No entanto, é preciso estar atento e ler nas palavras (e nos silêncios) de cada candidato qual a sua real posição nas questões de desenvolvimento e justiça social. Quem faz esses alertas é Emir Sader, sociólogo, cientista político e um dos principais intelectuais de esquerda do Brasil.

Emir Sader é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em filosofia política e doutor em ciência política. Atuou também como professor da USP e da Unicamp, ministrando cadeiras de ciência política e filosofia, e foi um dos grandes mentores intelectuais do Fórum Social Mundial. Seu blog é uma grande referência política na blogosfera brasileira. Exerceu atividades como pesquisador do Centro de Estudos Sócio Econômicos da Universidade do Chile, e presidiu a Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) no período de 1997 e 1999. Atualmente, é Secretário Geral do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e dirige o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Em entrevista concedida originalmente ao Observatório Social, durante as atividades da 10ª Conferência Pesquisa & Ação Sindical , que teve como tema "Modelos de Desenvolvimento: Rumo à Sustentabilidade", Emir Sader falou sobre o protagonismo político brasileiro na América Latina, além de discutir o atual modelo brasileiro de desenvolvimento e os desafios que ele enfrenta para sua consolidação e expansão.

Como o senhor descreveria as movimentações do governo brasileiro no sentido de assumir o protagonismo político na América Latina?

Essa foi a primeira grande mudança do governo FHC para o governo Lula. O governo Fernando Henrique estava levando o Brasil e toda a América Latina a assinar a Área Livre Comércio das Américas (ALCA). Se isso tivesse ocorrido, nós estaríamos hoje na mesma situação do México, com 90% de nosso comércio atrelado aos EUA, regressão econômica de 7% no ano passado, tendo que recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e assinar a Carta de Intenções. A posição brasileira, a partir da mudança de governo, acabou sendo de rejeitar a ALCA, uma decisão que foi fruto de uma imensa mobilização continental. Isso resultou em uma grande reinserção do Brasil no mundo, assumindo a dianteira em um panorama que privilegia a integração regional.

A política externa, aqui no Brasil, tem a ver com política interna. Nós nos tornamos soberanos politicamente e pudemos desenvolver uma política interna mais de acordo com as nossas pretensões, incentivando o mercado interno e o consumo popular e retomando o papel do Estado como indutor do crescimento econômico. Essa política interna nos permitiu sair da crise mais rapidamente, já que diversificamos nosso comércio internacional. A China é nosso grande parceiro, bem como a América do Sul de modo geral, em países como Argentina, Equador, Bolívia e Uruguai. E durante a crise, ao contrário de situações anteriores, diminuiu-se a taxa de juros, se recompôs o nível de emprego rapidamente, houve aumento de salários acima da inflação… Foi soprar contra a tempestade, e deu certo. E tudo isso porque temos uma política interna ajustada com nossa soberania externa.

Os dois mandatos de Lula marcaram uma mudança significativa no modelo de desenvolvimento, em relação ao que tínhamos no governo anterior de Fernando Henrique Cardoso. Qual a sua avaliação sobre esse processo?

Nós viemos de um patamar muito baixo, já que o desenvolvimento havia desaparecido como tema em nome da estabilidade monetária. O Estado passou a ter órgãos de controle, de bloqueio e não de execução – era o mercado que executava. Então, nesse modelo, o papel desses órgãos não era o de vigiar a execução e sim de impedi-la. Nos últimos anos, o Estado voltou a ser um instrumento de indução de crescimento econômico e o desenvolvimento passou a ser um tema central. Mas não o desenvolvimento, simplesmente: um desenvolvimento articulado com distribuição de renda, com justiça social, com um mercado interno de consumo popular. Acredito que esse seja a grande novidade – a retomada do desenvolvimento, mas com uma articulação voltada para o âmbito social.

Não há dúvida de que a discussão sobre modelos de desenvolvimento estará muito presente na campanha eleitoral de 2010. E é igualmente claro que cada candidato representa diferentes visões a esse respeito. Como o senhor avaliaria a posição dos principais candidatos à presidência quanto a esse assunto?

A Dilma (Roussef), por ser a candidata governista, está fundamentalmente comprometida com a manutenção e o aprofundamento do atual modelo de desenvolvimento. No caso do (José) Serra, creio que o mais significativo está nos silêncios. Ele não toca nesses assuntos, não há menção ao mercado interno de consumo popular. A preocupação dele é com a taxa de juros, embora o governo do qual ele fez parte (FHC) tenha aumentado a taxa de juros a 48% ao ano. Há uma aparente preocupação com o grande empresariado industrial, mas não há preocupação com nível salarial, com emprego… Esse lado do desenvolvimento não está presente. Na verdade, seria a retomada de um modelo de desenvolvimento coxo, de um pé só. Ele não toca no tema do pré-sal… Então, temos silêncios que são muito significativos, que dão o que pensar. O que ele explicita no seu discurso é a plataforma histórica da direita que todos conhecemos: menos impostos e valorização da segurança pública.

E para a manutenção dos progressos obtidos com essa mudança de modelo? Quais seriam as medidas necessárias?

Acho que nós avançamos em muitas coisas no que podemos chamar de "linha de menor resistência". Para quem propunha tratados de livre comércio, que é algo com uma fragilidade enorme, nós procuramos integração regional. Para quem falava em ajuste fiscal e equilibro monetário, trouxemos políticas sociais. Mas temos alguns temas pendentes. Primeiro, a hegemonia do capital financeiro. Esse modelo está enfraquecido, mas ainda é hegemônico. E a nossa alta taxa de juros atrai o pior capital, que é o capital especulativo que não gera bem e não gera emprego. É preciso quebrar essa hegemonia, que se estende inclusive na autonomia de fato do Banco Central.

Segundo lugar, o modelo de agronegócios. Esse não é fácil de resolver, uma vez que a soja transgênica já está em muitas pequenas e médias empresas. Temos que fortalecer estruturalmente e tornar dominante no campo a produção de alimentos para o mercado interno, bem como difundir a ideia de segurança alimentar. Não tem sentido o Brasil, tendo a maior quantidade de áreas cultiváveis do mundo, ser importador de alimentos. Quem gera empregos e alimento para o mercado interno é a pequena e média propriedade. Então é preciso dar uma significativa virada nisso, no peso que se dá a esse tipo de empreendimento.

Mas tivemos avanços no campo, não?

Acho que tivemos avanços, mas o ritmo no qual avança a soja transgênica, que é devastadora do ponto de vista da integração de renda e utilização da terra, ainda está na nossa frente. Isso tem que ser equilibrado com uma forte política de segurança alimentar, de geração de empregos no campo e de acesso à terra, priorizando as pequenas empresas e cooperativas.

Em entrevistas recentes a outros veículos, o senhor referiu-se muitas vezes à necessidade de construirmos não apenas uma cidadania social, mas também uma cidadania política…

Acho que a grande mudança dos últimos anos no Brasil foi a diminuição das desigualdades sociais. Todo o resto é instrumento para alcançar esse objetivo. O Brasil ainda é o país mais desigual do continente mais desigual do mundo, então essa luta não pode esperar. Agora, essa massa toda está chegando ao direito de consumo elementar, mas não tem a cidadania política no sentido de organização, de defender seus interesses. O bloco majoritário no país é o dos pobres, e até o momento não conseguimos ajudá-los a conquistar uma organização própria. Essas pessoas vão votar na candidata do Lula, mas ainda não têm organicidade para lançar os seus candidatos ou para se fazerem representar em candidatos para a Câmara ou o Senado. Essa é a mudança política mais importante para o Brasil: criar cidadania política para a massa pobre da população. Não é o governo, porque o governo faz sua própria política; é uma tarefa para os movimentos sociais e para os partidos do campo popular. E não se trata de fazer o serviço no lugar deles, e sim de auxiliar e oferecer meios para que eles encontrem sua própria voz.