Maria Luisa Mendonça*
Se alguém entrasse em sono profundo em outubro de 2014, durante as eleições presidenciais no Brasil, e acordasse hoje pensaria que estamos em outro país. Realmente não ocorreu nenhum fato específico que justificasse uma mudança drástica na política econômica, especialmente o desmonte da legislação trabalhista e do sistema de seguridade social.
O discurso oficial para justificar tais medidas de “austeridade fiscal” não apresenta nenhum dado concreto e se parece com um jargão religioso: cortes de direitos sociais são necessários e ponto. Quem discorda do fundamentalismo ortodoxo neoliberal simplesmente não tem fé nas promessas de vida após a morte. Ou, como diriam os neokeynesianos, o receituário neoliberal se parece com um remédio que promete curar, mas acaba por matar o paciente.
No caso brasileiro a confusão ideológica e política é agravada pelo fato de não haver clareza de objetivos nas oscilações entre o liberalismo heterodoxo e o neoliberalismo. O governo Lula adotou medidas de incentivo ao mercado interno, como o programa Bolsa Família, que exerceu um papel importante para estimular a circulação de bens de primeira necessidade. Tal política teve um efeito multiplicador em nível nacional e foi fundamental para a economia das pequenas cidades. Porém, o recurso do Bolsa Família é insignificante se comparado ao montante designado para a manutenção do superavit primário.
Outras medidas consideradas “neodesenvolvimentistas” tiveram papel duvidoso em termos de sua eficácia econômica no longo prazo. O programa Minha Casa Minha Vida foi entregue a grandes empreiteiras acusadas de violações de direitos trabalhistas e de construir imóveis com infraestrutura deficiente. Estas mesmas empreiteiras foram as principais beneficiadas com obras faraônicas, como a usina hidroelétrica de Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco, que provavelmente nunca terão utilidade produtiva comprovada, mas que deixam um enorme passivo ambiental, econômico e social.
Uma política econômica desenvolvimentista ou keynesiana teria que priorizar investimentos produtivos e de longo prazo, como setores industriais estratégicos, saneamento, tecnologia e educação. Tal modelo deveria ser acompanhado do fortalecimento dos sistemas de seguridade social, saúde e previdência. Outro elemento central seria a implementação de projetos de proteção ambiental, no sentido de garantir produtividade e qualidade de vida no futuro.
A crise hídrica só aparece como surpresa na atualidade porque o Brasil ainda alimenta a antiga crença nas suas supostas “vantagens naturais”—teoria já contestada na década de 1950 pelo pensamento cepalino. Obviamente, quando um estado como São Paulo utiliza 70% de sua área agrícola com monocultivo de cana-de-açúcar e a população sofre com falta d`água, a teoria das vantagens comparativas cai por terra.
Os mesmos limites serão encontrados em novos projetos predatórios baseados na mineração e exportação de produtos primários, como prevê o recente acordo com a China. Mesmo que o Brasil receba alguma vantagem em relação à produção industrial, ainda estará na base da pirâmide das cadeias produtivas.
O cenário que se apresenta demonstra os limites de uma política que contribui com a criação das chamadas “bolhas de infraestrutura”. Porém, os alvos escolhidos que sofrerão cortes, de acordo com a proposta de “ajuste fiscal”, são justamente aqueles setores que poderiam garantir maior estabilidade econômica e social, como educação e direitos trabalhistas.
O Brasil não está em crise. O que ocorre é uma espécie de “ataque” especulativo em razão de sua vulnerabilidade em relação ao mercado financeiro. O momento atual é consequência do processo de liberalização na década de 1990, que tornou possível a conversão das dívidas externas dos Estados nacionais em títulos de dívidas públicas negociáveis em mercados secundários. Este mecanismo é utilizado por todos os países, sendo que os Estados Unidos possuem a maior dívida pública do mundo, mas com a garantia do seu poder político, da predominância do dólar nas trocas internacionais, além de ter a China como maior detentora destes papéis.
A mudança de rumo do governo brasileiro pode fomentar a ideologia da extrema direita, que manipula o discurso fácil do tipo “está tudo errado”. O pior dos mundos seria deixar o extremismo da direita alimentar a fé cega neoliberal. Neste cenário, sim, poderia se instalar uma grave crise no Brasil.
* Maria Luisa Mendonça é doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Fonte: RBA