Um mundo em que o fim das leis trabalhistas protetoras combine com o Estado cada vez mais fraco, trabalhadores em relação individualizada com as empresas, somado ao contexto da era digital com diminuição contínua do emprego. Analisar o cenário do “futuro do trabalho” deve ser o assunto da ordem do dia para o mundo sindical. Ao menos essa foi a visão do professor brasileiro João Felício, presidente da Confederação Sindical Internacional (CSI), durante debate nesta quarta-feira (14) no Fórum Social Mundial, em Salvador.
Proposto pela CUT e pela Fundação Friedrich Ebert, o tema da mesa era “o controle do capital na revolução científica e tecnológica e os impactos no mundo do trabalho”. João Felício iniciou sua análise lembrando que antes uma empresa podia ter uma grande plataforma de produção com 10 mil funcionários num único turno, algo que hoje está mudando com a diminuição da presença de trabalhadores no local de trabalho, ao mesmo tempo em que aumenta a individualização da prestação de serviço, com muitas pessoas “colaborando” de suas casas para várias empresas ao mesmo tempo.
“É um mundo completamente diferente daquilo que conhecemos nas últimas décadas”, ponderou o presidente da CSI. Para ele, a partir da 3ª Revolução Industrial se iniciou um processo de extinção de determinadas funções, um fator que agora aumenta com a nova revolução industrial, a da era digital.
Apesar de o fim de determinados postos de trabalho já estar em curso há algum tempo, João Felício destacou que durante a 3ª Revolução Industrial ainda se viviam Estados de bem-estar social em vários países e legislações de cobertura aos direitos trabalhistas. Agora, vive-se um “desmoronamento” de tudo isso.
Revoluções tecnológicas
As chamadas “revoluções industriais” têm em comum o fato de empregarem descobertas tecnológicas em intensidade capaz de aprimorar a capacidade humana de produzir bens e serviços e transformar assim, o funcionamento da economia. A primeira ocorreu a partir na segunda metade do século 18. A segunda vai de meados dos anos 1800 até meados do século 20. A terceira coincide com o processo de “reconstrução” das economias intensificado após a Segunda Guerra Mundial. A quarta estaria em pleno vigor, desencadeada pelo aprofundamento das tecnologias da era digital e sua capacidade de promover condições de descartar em larga escala a intervenção humana na produção de bens, serviços e conhecimentos
“É uma aliança perversa. Ao mesmo tempo em que diminui a legislação do trabalho, no mundo todo, não só no Brasil, essa relação perversa vem junto com as mudanças causadas pela digitalização”, afirmou. “Essa relação perversa nunca tinha ocorrido em décadas passadas, e é uma situação que estamos vivenciando hoje.”
O Estado
Para Felício, antes o Estado tinha mais força política do que atualmente, sendo que em determinados países, conseguia prestar bons serviços públicos à população. Hoje o poder do Estado é menor. “Como enfrentar um mundo com redução de direitos, ao mesmo tempo em que tem a revolução industrial da era digital, com um Estado fraco?”, questionou.
Sem rodeios, disse não acreditar que na 4ª Revolução Industrial haverá emprego para todos, por maiores que possam ser as mudanças causadas pela revolução tecnológica. A mudança que ocorre no capitalismo, segundo ele, não vai suprir a perda de empregos nem a extinção de profissões.
No futuro, ele acredita, a soma do trabalhador precarizado, com o desempregado, e com aquele que não consegue se adaptar a mudanças tecnológicas será maior do que a dos trabalhadores da economia formal, algo que já ocorre em alguns países. Segundo Felício, é justamente neste cenário que o Estado deve ser presente para atenuar o problema. “O capital não vai resolver”, afirmou. E tampouco o Estado enfraquecido.
O presidente da CSI lembrou de experiência recente, na Califórnia, de um projeto de renda mínima, sonho antigo do hoje vereador e ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Uma experiência que também ocorre na Finlândia, Suíça e Canadá como forma de o Estado atenuar os impactos do desemprego. “Não é um problema do Terceiro Mundo apenas, é de países desenvolvidos também.”
Porém, para que projetos semelhantes possam ser testados, João Felício acredita que isso só é possível com um Estado forte. “Não é uma decisão somente dos partidos políticos, da academia. Nós, sindicalistas, temos de debater qual país queremos, qual Estado queremos para resolver o problema da exclusão no futuro”, afirmou, citando os países escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia) como exemplos de Estado forte e protetor. “Lá a pessoa nasce e sabe que vai ter escola pública de qualidade, ao mesmo tempo em que vai ter trabalho e aposentadoria digna. Temos de saber se queremos transformar a América Latina e a África numa grande Escandinávia ou numa república de bananas.”
Felício elogiou as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como importantes para a existência de um trabalho mais humano. “É uma luta contra o capital. O capital não quer fortalecer as normas da OIT, ao contrário, quer extinguir”, observa.
A comunicação
Com Estado frágil, normas da OIT desrespeitadas e legislação que não protege o trabalho, quem mais sofre? A pergunta feita pelo presidente da CSI foi logo respondida por ele mesmo: a mulher, o negro e o jovem. “Nós, do movimento sindical, sabemos quem está sendo mais afetado, e temos de agir. Estamos ficando velhos…se não trouxermos a juventude para o nosso lado, o capital, com discurso agressivo e cativante, acaba conquistando a mente da juventude.”
Ao se aproximar do fim da sua análise sobre o futuro do trabalho, Felício foi crítico com o movimento sindical. Para ele, o movimento não pode mais achar que, sozinho numa pauta de reivindicação trabalhista, resolverá os problemas de toda uma categoria profissional sem fazer relação com a realidade do mundo atual. “Muitas vezes o ‘mundo sindical’ se dedica a uma pauta imediatista, curta, e não faz uma disputa de projeto na sociedade. Temos de debater projeto de país, projeto de humanidade, no futuro que queremos deixar para nossos filhos e no agora para nossos idosos.”
A comunicação é tema recorrente. A diferença, dessa vez, de acordo com João Felício, é como o movimento sindical fará sua comunicação com os trabalhadores, considerando a realidade em que o cidadão presta serviço individualizado para a empresa, muitas vezes de casa.
“Qual veículo de comunicação devo utilizar para que o trabalhador venha pro meu lado e não pro lado do capital?”, questionou, criticando o hábito antigo de se comunicar com a base por meio de boletins com “fotografias horrorosas” do presidente do sindicato em reuniões. “Não que eu seja contra boletim, mas me desculpe, estamos na era do fordismo, lá atrás, achando que vamos nos comunicar com uma massa que está com ouvido aberto para as redes sociais e propenso a receber outras formas de comunicação. Somos extremamente conservadores na comunicação com nossa base.”
Por fim, disse ser preciso repensar a organização do sindicalismo para alcançar o trabalhador que presta serviço individualizado para várias empresas ao mesmo tempo. E então, fez a provocação final ao dizer que, muitas vezes, não se pode falar em luta de classe no meio sindical.
“Parece que você é um bolchevique, e não é. O outro lado tem a clareza absoluta do que isso significa, e por isso se apodera do Estado, se apodera da democracia, dos governos”, afirmou. “Se o socialismo real não resolveu os problemas, e não resolveu, tampouco será o capitalismo. Não é o capitalismo que vai resolver a massa de excluídos que já existe hoje e vai continuar existindo.”
[Via CUT]