Infelizmente, os avanços relacionados à igualdade de gênero têm representado ainda mais trabalho para as mulheres
Vivemos uma situação paradoxal quando o assunto é igualdade de gênero e combate ao machismo. Na superfície da análise, uma reflexão primária nos levaria a afirmar que as mulheres têm imprimido grandes e céleres passos rumo a uma sociedade com mais presença feminina nos espaços de poder, com diversas formas de combate à violência de gênero e com mais equidade no mercado de trabalho.
Afinal, basta olhar como pipocam movimentos de mulheres e como suas pautas se propagam na sociedade. O tempo histórico avançou tão rápido que, hoje, o que se considera inadmissível ou mesmo o que é um incômodo coletivo, não passava de uma situação corriqueira no passado. Esse é o caso de mesas de debates compostas, exclusiva ou majoritariamente, por homens; formas jurídicas de cerceamento da liberdade individual em prol de autorizações do marido; discriminações públicas baseadas no sexo; piadas sexistas; e por aí segue uma extensa lista.
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Pois bem, onde estaria – então – o “paradoxo” do avanço? Está em que as responsabilidades não foram compartilhadas, o que significa que o avanço das mulheres está alicerçado sobre “mais trabalho”. O maior espaço para a participação das mulheres na política e/ou no mercado de trabalho não veio acompanhado de desafogo nas tarefas domésticas ligadas à reprodução social. Os homens – em geral – não passaram a se responsabilizar mais pelo cuidado da casa, dos filhos e dos enfermos para possibilitar que as mulheres ocupem os espaços públicos sociais, muito pelo contrário.
Frequentemente a mídia, os meios corporativos e até mesmo as organizações sociais endeusam a figura da mulher “guerreira”, associando-a com uma imagem positivada, bonita e glorificada: a mulher que dá conta sozinha da casa, do trabalho, que é mãe solteira e ainda é uma lutadora das causas sociais. Essa imagem mira na força das mulheres, mas acerta na desresponsabilização coletiva dos homens e no paradoxo de que as mulheres avançam enquanto os homens mantêm-se em um lugar de privilégio, seguindo desresponsabilizados dos cuidados domésticos e da paternidade integral.
Inclusive, um dos temas muito tratado no âmbito das políticas públicas nesse último 8 de março tem relação intrínseca com o não compartilhamento dos trabalhos reprodutivos entre homens e mulheres e, com isso, a manutenção de uma secular divisão sexual do trabalho. Trata-se da proposta de “salário igual para trabalho igual”. Quando esse tema entra em debate, é comum a afirmação de que as mulheres recebem, em média, apenas 80% do salário auferido pelos homens. É importante atentar, no entanto, que estamos falando de médias agregadas, portanto essa não é uma comparação individual. Dessa forma, o que ocorre com menor presença são homens e mulheres recebendo salários distintos pela execução do mesmo trabalho. Embora isso ainda exista, principalmente em cargos de elevada qualificação profissional, a diferença salarial agregada não se explica, na sua maior parte, por esse fenômeno. O que explica as diferenças de rendimentos entre homens e mulheres é que as mulheres se dedicam a trabalhos de tempo parcial: aqueles nos serviços, perto de casa; bicos; ou mesmo não acendem na carreira profissional porque os maridos não permitem viagens à trabalho; ou as tarefas de cuidado com a casa e os filhos as constrange para ocupações de elevada responsabilidade. Ou seja, ganham menos por diversos motivos, entre eles uma “opção”, com elevada carga histórica e de papéis sociais de gênero, de que sua tarefa principal é o cuidado da casa e dos filhos, enquanto o dos homens é a carreira profissional.
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Por fim, a maior responsabilização das mulheres não se concentra apenas na dupla jornada de trabalho, externada em conciliar os avanços na participação no mercado de trabalho com os limites na desresponsabilização exclusiva das tarefas domésticas. Há um outro ponto sensível.
O segundo paradoxo do “avanço/limite” das relações sociais de gênero é que toda a responsabilização pelo feminismo, ou seja, pela construção – no presente – de novas relações sociais baseada na não discriminação e na igualdade entre homens e mulheres, também segue sendo de exclusividade das mulheres. Nesse caso é como se houvesse uma tripla jornada de trabalho. As mulheres precisam ir ao mercado de trabalho e, diga-se de passagem, serem trabalhadoras muito bem qualificadas e competentes já que seu trabalho sempre está sob vigilância porque “são mulheres”; precisam cuidar da casa, dos filhos e de eventuais enfermos, incluindo o cuidado subjetivo e objetivo; precisam estudar, se formar, propagar o feminismo, formular políticas e orientações para as organizações sociais e, ainda por cima, serem vigilante com os homens, com muita pedagogia, carinho e paciência para que os mesmos tenham consciência das suas atitudes sexistas.
Percebem que, mais uma vez, é como se a maior participação das mulheres nos espaços relacionados ao mercado de trabalho e à participação política representasse sempre mais trabalho? Muito se tem debatido sobre o papel das mulheres e a importância de garantir iguais condições de participação na vida laboral e militante, mas não se complexifica o suficiente para problematizar soluções radicais!
A participação qualitativamente superior das mulheres no mercado de trabalho, condição para autonomia econômica, depende – sobretudo – do compartilhamento dos trabalhados reprodutivos. Parte deles deve ser passado à responsabilidade do Estado, tais como lavanderias públicas, creches, restaurantes comunitários… e parte substancial deve caber à educação de gênero, ao compartilhamento igualitário dos trabalhados domésticos entre homens e mulheres.
Na esteira disso, para avançar o feminismo na sociedade brasileira essa deve ser uma pauta de todos e não somente de mulheres. Embora o protagonismo da elaboração e de empunhar a sua bandeira deva ser das mulheres, essa afirmação não pode servir de premissa para a desresponsabilização dos homens. Quando um homem tiver uma atitude machista, não esperem que uma mulher diga algo. Isso cansa. Diga você mesmo! Os homens e as organizações políticas devem se responsabilizar pela pauta. Enquanto o feminismo for algo “nichado”, enquanto couber à secretaria de mulheres, ao coletivo de mulheres ou ao grupo de mulheres esse papel, o sobretrabalho será a marca das nossas vidas e a tão sonhada libertação será tão mais distante quando mais nos aproximamos da nossa pauta.