Manifestação lava a alma das vítimas da "Ditabranda" da família Frias

Levantando cartazes com o nome de algumas das vítimas da ditadura entreguista que depôs…

CUT

Levantando cartazes com o nome de algumas das vítimas da ditadura entreguista que depôs o governo constitucional de João Goulart, que assassinou, torturou, mutilou, estuprou e pôs em prática as mais bárbaras e imundas sevícias, centenas de pessoas ocuparam a frente do jornal Folha de S. Paulo, para denunciar a "Ditabranda" e lavar a alma dos que imolaram sua vida em prol da democratização do país. Endurecidos, mas sem perder a ternura e o bom humor, os manifestantes fizeram trocadilho com a campanha do jornal que se dizia "de rabo preso com o leitor". "De rabo preso com o feitor", dizia a faixa, enquanto outra perguntava: "Ditabranda? No dos outros é refresco".

Coordenador da manifestação e do Movimento dos Sem Mídia, Eduardo Guimarães esclareceu que a manifestação representava um rechaço coletivo à tentativa do jornal de reescrever a história quando "afirmou que o regime dos generais-presidentes teria sido ‘brando’. Tal afirmativa constituiu-se em dolorosa bofetada nos rostos dos que sobreviveram, em verdadeiro deboche dessas vítimas expresso por meio do termo jocoso ‘ditabranda’, corruptela do único termo possível para identificar aquele regime, o termo ditadura".

Centenas de estudantes, bancários, metroviários, jornalistas, profissionais liberais e donas de casa deram as mãos aos presos políticos e seus familiares, e o microfone foi aberto aos que sobreviveram à violência fascista, ao cárcere e à tortura dos golpistas de 1964. Com emoção, foram lembrados muitos nomes de lideranças sindicais, estudantis e comunitárias que desapareceram ou foram mortos pela repressão, com o beneplácito covarde e macabro "das peruas C-14 do Grupo Folha" utilizadas no transporte de militantes para a morte. Nomes como Helenira Resende, José Arantes, Mário Prata e Iara Iavelberg, companheira do capitão Carlos Lamarca, eram lembrados com um sonoro: "Presente!"

 

"Os Frias além de colocarem os carros da Folha de S. Paulo à disposição das torturas, colocaram o jornal à disposição do Doi-Codi", relatou emocionado, o jornalista Ivan Seixas, que teve a sua irmã vítima de violência sexual e o pai, Joaquim Alencar de Seixas, assassinado na tortura. Conforme Ivan, que além da perda familiar, teve a casa saqueada e a costela quebrada, é sintomático que hoje os filhos de Frias repitam o mesmo termo utilizado pelo ditador chileno Augusto Pinochet para caracterizar o seu próprio desgoverno, "ditabranda", pois a Folha fazia o jogo sujo da ditadura anti-brasileira, "publicando antecipadamente  o nome de quem ia morrer". As relações entre Octávio Frias pai e a canalha entreguista, informou,  eram tão incestuosas que a segurança da família era feita pelo próprio Dops, quando o medo da resposta popular "fez com que Otavião tivesse que morar, protegido, no último andar da Folha". Passaram-se os anos, revelou, "e eu e Otávio Frias filho continuamos honrando os nossos pais. Eu, honro a história de um herói, ele daquele paizinho". Um mar de aplausos se seguiu ao depoimento.

 

Condenando "as mentiras e a manipulação da imprensa burguesa e elitista", o padre Júlio Lancelotti lembrou que este é o ano de comemoração do centenário de nascimento de Dom Hélder Câmara, sendo sintomático o silêncio midiático sobre a data de quem celebrava a defesa da vida, da liberdade e da verdade. Neste momento estamos aqui, juntos, ressaltou, pois "caiu a máscara da Folha de S. Paulo, da ditadura e dos que a defenderam e defendem. Hoje temos uma ditadura ideológica, dos meios de comunicação, e é preciso rediscutir a liberdade de imprensa, que não pode continuar sendo a liberdade dos jornalões falaram o que querem". "Mesmo que cortem nossos pés, vamos andar; mesmo que arranquem nossos olhos, vamos enxergar; mesmo que tirem nossas mãos, vamos construir e mesmo que nos calem, vamos falar: Abaixo a ditadura mentirosa da Folha!", sentenciou.

O secretário geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf/CUT), Carlos Alberto Cordeiro da Silva, falou do orgulho de pertencer à Igreja de Dom Hélder e do padre Júlio Lancelotti, expressões da defesa da verdade e do povo, e manifestou o compromisso com a história, impedindo que a deturpação e a falsificação apaguem o que significou aquele período de triste lembrança.  

Em nome do Sindicato dos Bancários de São Paulo, William Mendes sublinhou a importância da democratização da comunicação e a necessidade da construção de uma imprensa alternativa para fazer a disputa de hegemonia contra a mídia venal. Deu exemplos históricos do silêncio da Folha, sempre em favor do capital, como a não-cobertura de uma grande greve dos bancários ocorrida no final dos anos 80, em que cerca de cinco mil se concentraram em frente ao jornal para protestar, sem que uma única linha tivesse sido publicada. "Encobrem os crimes da Daniel Dantas enquanto criminalizam os movimentos sociais e o MST. Só dão mesmo voz à Fiesp e aos banqueiros", denunciou.
 

O presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, José Augusto Camargo (Guto), afirmou que "deturpar a história é um crime contra a cidadania" e criticando o "lamentável editorial da Folha", lembrou que "a esmagadora maioria dos profissionais de comunicação condenou o jornal, pois é ética e tem compromisso com a verdade e com as gerações futuras".

 

A secretária de Comunicação da União Nacional dos Estudantes (UNE), Luana Bonone lembrou que a Folha representava "um tentáculo, um instrumento da política de terrorismo de Estado que se abateu sobre o país com o golpe de 64". "O que a Folha entende por liberdade de imprensa é liberdade de empresa, é assim que este panfleto da direita conservadora comercializa a informação, comercializa a democracia e criminaliza os movimentos sociais", acrescentou.

 

O presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), Ismael Cardoso, recordou os 40 anos do Decreto 477, da ditadura, que determinou que todos os professores e alunos envolvidos em atividades subversivas deveriam ser expulsos. "Hoje, a FSP, que eu prefiro dizer que é a Frente Serra Presidente criminaliza o MST, a CUT, a UNE e a UBES, combatendo os que combatem a opressão das idéias como antes combatiam a opressão das armas", sublinhou Ismael.

 

De acordo com Eduardo Guimarães, "é no editorial publicado em 22 de setembro de 1971, no auge da ditadura, que transparecem as relações de então entre a mídia e o regime. Diz aquele editorial pretérito tão nefasto quanto o editorial mais recente, sendo ambos do grupo empresarial de comunicação da família Frias.

 

"Como o pior cego é o que não quer ver, o pior do terrorismo é não compreender que no Brasil não há lugar para ele. Nunca ouve. E de maneira especial não há hoje, quando um governo sério, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social – realidade que nenhum brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama. O país, enfim, de onde a subversão – que se alimenta do ódio e cultiva a violência – está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa, que reflete o sentimento deste." Octávio Frias de Oliveira, 22 de setembro de 1971".

 

Entre outros, compareceram ao ato representações do Coletivo Intervozes, do Centro Acadêmico de História da USP, do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios, além de leitores do jornal que se prontificaram a suspender imediatamente as assinaturas.

 

Veja abaixo a íntegra do manifesto assinado por Eduardo Guimarães.

Pela Justiça e pela Paz no Brasil
 

A Organização Não Governamental Movimento dos Sem Mídia – MSM, entidade de direito privado constituída juridicamente em 13 de outubro de 2007,  exorta a sociedade brasileira a repudiar a perniciosa e ameaçadora revisão histórica perpetrada recentemente por editorial do jornal Folha de São Paulo, texto que relativizou a gravidade de crimes cometidos pelo Estado brasileiro entre os anos de 1964 e 1985, período durante o qual a Nação brasileira sofreu usurpação de um golpe militar ilegal e inconstitucional que, por seu turno, gerou aos brasileiros conseqüências nefandas tais como censura à liberdade de pensamento e de expressão, prisões arbitrárias e crimes de tortura, de estupro e de morte, atos de terror que destruíram as vidas de milhões de brasileiros, muitos dos quais sobreviveram àquele terror e, assim, carregam até hoje seqüelas daquele período de trevas.

 

No âmbito desse repúdio, cumpre à nossa entidade tornar públicos os pontos daquele texto jornalístico que julgamos perniciosos e ofensivos às vítimas que tombaram e às que sobreviveram àquele regime de força, que suprimiu os princípios e mecanismos do Estado Democrático de Direito e as garantias, liberdades e direitos individuais e coletivos, somente restituídos ao povo brasileiro com a edição da vigente Constituição Federal de outubro de 1988.

 

O editorial do jornal Folha de São Paulo intitulado "Limites a Chávez" foi publicado em 17 de fevereiro deste ano. O veículo de comunicação exerceu um direito óbvio e que não se questiona, o direito de opinar. Criticar o resultado do plebiscito recente na Venezuela ou emitir qualquer outra opinião, portanto, jamais estimularia nossa Organização a protestar de forma tão solene e veemente se não fosse a tentativa de revisão histórica que afirmou que o regime dos generais-presidentes teria sido "brando", pois tal afirmativa constituiu-se em dolorosa bofetada nos rostos dos que sobreviveram, em verdadeiro deboche dessas vítimas expresso por meio do termo jocoso "ditabranda", corruptela do único termo possível para identificar aquele regime, o termo ditadura.

 

Em poucas palavras, o editorial da Folha de São Paulo criou teorias novas, como se verá em trecho a seguir. Disse a Folha de São Paulo: "As chamadas "ditabrandas" – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça".

 

O perigo e a afronta residem no eufemismo. Com efeito, o diabo está nos detalhes. Diga-se essa barbaridade de "acesso controlado à Justiça" aos que ficaram pelo caminho da máquina opressora do Estado brasileiro de então, aos que sofreram tudo que foi acima enumerado. Diga-se a eles que tiveram acesso "controlado" para buscarem reparação pelas violências que sofreram. Achem um só que tenha encontrado guarida e reparação na Justiça, à época, pelas violências que sofreu. E mais: diga-se isso aos que não sobreviveram às ações arbitrárias daquele Estado ditatorial e aos seus famliares.

 

No conceito de nossa Organização, conceito este amparado no melhor Direito Universal, o que fez o jornal em questão foi dizer "brandos" aqueles crimes, abrindo espaço para a proliferação de mentalidades que ainda defendem publicamente métodos excepcionais de "controle" da Cidadania e das próprias vidas dos cidadãos.

 

Dizem os defensores da usurpação do Estado Democrático de Direito que ocorreu naquele período obscuro de nossa história que havia então uma "guerra" no Brasil. Uma guerra em que tantos jovens idealistas, muitas vezes pouco mais do que imberbes, sucumbiram defendendo a Constituição, por sua vez violentada pelos desejos de poucos, que estupraram o desejo da maioria que delegou o Poder a um governo constitucional que a ditadura derrubou por meio de golpe de Estado.

 

O Brasil daquele 1964 tinha um governo eleito pelo voto. Não foi destituído por um processo democrático que se valeu dos mecanismos constitucionais que existiam e que poderiam ser usados se os que se opunham àquele governo acreditassem que tinham representatividade popular para fazer tais mecanismos prevalecerem. Não. Por não estarem amparados pela maioria dos brasileiros, os usurpadores do Poder de Estado legalmente constituído em eleições livres e democráticas trataram de usar a violência, a sedição e a ilegalidade para fazerem prevalecer suas visões, desejos e interesses minoritários, impondo-os sobre uma maioria que mais tarde seria amordaçada e ameaçada, de forma que não pudesse contestar a ruptura do Estado de Direito.

 

Equiparar o Estado àqueles que os defensores do regime de exceção diziam ser "terroristas", era, é e sempre será uma aberração jurídica, para economizar palavras. Não cabe no conceito de democracia, de Estado de Direito, a hipótese de agentes do Estado imporem suplícios físicos desumanos e criminosos àqueles dos quais desconfiavam de que não compartilhavam suas idéias totalitárias.

 

O que torna mais dramática essa revisão afrontosa daquele período da história é que o jornal Folha de São Paulo não se contentou só com ela. Diante dos protestos de dois dos expoentes mais respeitados da intelectualidade brasileira tanto no Brasil quanto no exterior, a professora Maria Victória Benevides e o professor Fábio Konder Comparato, o jornal tratou de insultá-los de forma virulenta, qualificando-os como "cínicos e mentirosos", claramente tripudiando da indignação dos justos ante absurdo tão rematado quanto o acima descrito.

 

Nem as poucas opiniões contrárias que o jornal permitiu que fossem vistas em suas páginas opinativas, sempre de forma tão "controlada" quanto afirmou antes que fazia a sua "ditabranda", puderam minorar a dor dos sobreviventes dos Anos de Chumbo, e tampouco fizeram a justiça necessária à memória das vítimas fatais da ditadura cruel que vigeu naquele período triste da história deste País.

 

Tanta injustiça, desrespeito, deboche talvez encontre "explicação" quando se analisa o papel exercido pelo jornal contra o qual protestamos durante boa parte do tempo em que a ditadura militar oprimiu esta Nação.

 

Em obra literária de autoria de um colaborador desse meio de comunicação, do jornalista Elio Gaspari, intitulada "A Ditadura Escancarada", figura acusação ao jornal Folha de São Paulo que este jamais rebateu de forma adequada e pública, a acusação de que cedeu veículos à sua "ditabranda" para o transporte de presos políticos.

 

Mas é em editorial desse grupo empresarial publicado em 22 de setembro de 1971, no auge da ditadura, que transparecem as relações de então entre a mídia e o regime. Diz aquele editorial pretérito tão nefasto quanto o editorial mais recente, sendo ambos do grupo empresarial de comunicação da família Frias:

 

"Como o pior cego é o que não quer ver, o pior do terrorismo é não compreender que no Brasil não há lugar para ele. Nunca ouve. E de maneira especial não há hoje, quando um governo sério, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social – realidade que nenhum brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama. O país, enfim, de onde a subversão – que se alimenta do ódio e cultiva a violência – está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa, que reflete o sentimento deste." Octávio Frias de Oliveira, 22 de setembro de 1971".

 

Apesar desse documento histórico com dia, mês e ano, e que pode ser encontrado nos arquivos desse grupo empresarial de comunicação, apesar desse documento que mostra faceta do jornal Folha de São Paulo que ele teima em não reconhecer e que certamente não quer ver conhecido por seu público atual talvez por ter vergonha de seu passado, sua alegação contemporânea é a de que "combateu" a ditadura que aquele editorial, assinado por seu proprietário de então, qualificava como "séria, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular".

 

Não se consegue entender como a Folha de São Paulo, então, media o "apoio popular" à ditadura, pois não havia eleições livres ou mesmo pesquisas sobre a popularidade dos ditadores. Era, pois, uma invenção a tese de que a ditadura estaria "levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social",  porque, à luz do conhecimento histórico daquele período, o que se sabe é que o que gerou foi concentração de renda, ou seja, empobrecimento dos mais pobres e enriquecimento dos mais ricos.

 

No dia em que o editorial profano mais recente foi lido pelos Sem Mídia, o que nos veio às mentes foram as palavras imortais do ativista negro norte-americano doutor Martin Luther King que pregaram, há tantas décadas, a conduta dos democratas diante dos violadores da democracia: "O que preocupa não são os gritos dos maus, mas o silêncio dos bons". E é por isso que estamos aqui hoje, porque a sociedade civil não aceita e não ficará inerte assistindo a defesa velada de uma ditadura e a tentativa de vender a tese de que ela foi menos do que ilegal, imoral e terrivelmente dura, tendo sido tudo, menos "branda".

 

Eduardo Guimarães

 

Presidente

 

 São Paulo, 7 de março de 2009