Intelectuais e ativistas repudiam desmonte na Comissão de Anistia

 

 

A nota rechaça ainda a presença, na Comissão de Anistia, de membros desconectados à causa ou, mais grave, que possam ter colaborado com o regime militar, como apontou reportagem de O Globo. 

Na última sexta-feira (2), o governo Temer, por meio do Ministério da Justiça, anunciou a substituição de 19 dos 25 membros da Comissão de Anistia. Criado em 2002, o órgão tem como objetivo reparar moral e economicamente as vítimas de atos de exceção, arbítrio e violações aos direitos humanos praticados pela ditadura militar entre 1946 e 1988, conforme explica o site do governo federal.

“O governo Temer, com esta atitude arbitrária, comete um erro histórico que afeta a continuidade da agenda pendente do processo de transição democrática e, com isso, aprofunda as suas características de um governo ilegítimo, sem fundamento na soberania popular”, afirma a nota. 

Entre os nomes indicados para compor a comissão, está o do ex-sargento do Exército durante o regime militar e advogado e professor de direito em Natal (RN), Paulo Lopo Saraiva. De acordo com reportagem de O Globo, ele aparece em documentos do Serviço Nacional de Informação (SNI) como um militar que atuou como colaborador da ditadura. 

“Foi sargento do Exército e, na época em que servia no QG da antiga ID/7, desempenhou funções na 2ª seção, antes e depois da Revolução de 31 de março de 64, onde participou de ações contra a subversão”, diz o relato do SNI, reproduzido pelo jornal. 

Apesar de destacar que há registros contraditórios sobre Saraiva,O Globo afirma que, no livro “A maçonaria e a revolução de 64”, que publicou em 1976,o ex-sargento enaltece o golpe de 1964 e diz que “era mais uma página heroica que os militares escreviam na história da pátria, numa comprovação inconteste da autenticidade do seu gesto ao longo da vida brasileira”.

Na nota que repudia as mudanças na comissão, o movimento cita também que o novo vice-presidente do órgão, nomeado pelo governo Temer, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek, teria sido indicado para a corte pelo general João Figueiredo.

E destaca que alguns dos nomes anunciados para a comissão “são vinculados doutrinariamente ao polêmico professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conhecido teórico, defensor do golpe civil-militar”. 

“Os movimentos de direitos humanos e cidadãos abaixo assinados (…) denunciam o início da tentativa de desmonte destas políticas que marcam a nossa transição democrática e que são parte de obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Do mesmo modo denuncia o absurdo de ter entre os membros da nova Comissão nomes de pessoas que não possuem posição de oposição enfática de condenação à ditadura e aos crimes militares ou, pior, que possam ter sido colaboradores da Ditadura”, critica o documento.

A nota conta com a adesão, até então, de 50 entidades e mais de 400 pessoas. Entre os signatários, estão personalidades como o teólogo Leonardo Boff, o advogado Martín Almada (Prêmio Nobel Alternativo e membro do Comitê Executivo da Associação Americana de Juristas), a atriz Bete Mendes, os ex-ministros de Direitos Humanos Rogério Sottili e Maria do Rosário Nunes, o jornalista Juca Kfouri e a professora Ana Maria Araújo Freires, viúva do educador Paulo Freire, além de vários nomes de destaque na militância contra a ditadura. 

De acordo com o texto, a intervenção na comissão, criada durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), é inédita. As personalidades que assinam o documento destacam ainda que o órgão sempre foi composto por pessoas “com histórico de atuação na área dos direitos humanos, mantendo-se, ao longo do tempo, a integralidade dos seus membros e as composições integrais advindas dos governos anteriores”. Segundo eles, pela forma como a comissão era tratada, havia a compreensão de que a ela era vista “como um órgão de Estado e não de governo”. 

“Ao dispensar esse grupo de conselheiros, o governo Temer coloca a perder quase uma década de memória e de expertise na interpretação e aplicação da legislação de anistia no Brasil”, diz o texto, que resgata ainda as conquistas que resultaram do trabalho da comissão. Confira abaixo a íntegra da nota e, anexo, o texto com os nomes dos signatários. 

NOTA PÚBLICA DO MOVIMENTO POR VERDADE, MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO

O governo Temer anunciou hoje uma intervenção inédita na Comissão de Anistia, órgão do Estado brasileiro responsável pelas políticas de reparação e memória para as vítimas da ditadura civil-militar. Pela primeira vez se efetivou uma descontinuidade de sua composição histórica.

Desde a sua criação pelo governo FHC, a comissão é composta por conselheiros e conselheiras com grande histórico de atuação na área dos direitos humanos, mantendo-se, ao longo do tempo, a integralidade dos seus membros e as composições integrais advindas dos governos anteriores. Os eventuais desligamentos de conselheiros(as)sempre ocorreram por iniciativas pessoais dos próprios membros, sendo substituídos(as) gradativamente.

Essa característica sempre assegurou a pluralidade em seu formato que, até pouco tempo atrás, abrigava inclusive membros nomeados para sua primeira composição ainda no governo FHC em 2001. Isto reflete a compreensão da Comissão de Anistia como um órgão de Estado e não de governo.

Além disso, novas nomeações sempre foram precedidas por um processo de escuta aos movimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, de ex-presos políticos e exilados, além de organizações e coletivos de luta por verdade, justiça, memória e reparação.

Pela primeira vez na história da Comissão de Anistia foram nomeados novos membros sem nenhuma consulta à sociedade civil e pela primeira vez foram exonerados coletivamente membros que não solicitaram desligamento.

O Diário Oficial da União publicou duas portaria do Ministro Alexandre de Moraes, uma com a nomeação de 20 novos conselheiros e outra com a exoneração de 6 membros atuais que não haviam solicitado desligamento do órgão. Outros 10 atuais conselheiros foram mantidos. Não foram divulgados os critérios desta seletividade.

Os conselheiros desligados são Ana Guedes, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e ex-presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia na Bahia; José Carlos Moreira da Silva Filho, vice-presidente e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS; Virginius Lianza da Franca, ex-coordenador geral do Comitê Nacional para Refugiados; Manoel Moraes, membro da Comissão Estadual da Verdade de Pernambuco e ex-membro do GAJOP; Carol Melo, professora do núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Marcia Elayne Moraes, ex-membro do comitê estadual contra a tortura do RS.

Ao dispensar esse grupo de Conselheiros, o governo Temer coloca a perder quase uma década de memória e de expertise na interpretação e aplicação da legislação de anistia no Brasil.

Uma outra portaria nomeou no mesmo dia, de uma só vez, 20 novos conselheiros e conselheiras. Alguns dos nomes anunciados são vinculados doutrinariamente ao polêmico professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conhecido teórico, defensor do golpe civil-militar que instaurou a ditadura no Brasil em 1964 (golpe por ele denominado “Revolução de 1964”) e estes conselheiros(as) escreveram um livro em sua homenagem.

O jornal O Globo, por sua vez, trouxe uma outra grave denúncia de que pelo menos um dos novos membros são suspeitos de terem sido colaboradores da ditadura militar. Veja aqui: http://m.oglobo.globo.com/brasil/nomeado-para-comissao-da-anistia-aparece-como-colaborador-da-ditadura-20043410

Outro agravante é que o novo vice presidente nomeado pelo governo Temer foi ministro do STF indicado pelo Ditador Presidente General João Figueiredo. Veja aqui:
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/rezek-diz-que-deve-a-figueiredo-sua-indicacao-ao-stf/n1237632210095.html

Caso a nova composição da Comissão de Anistia reflita o pensamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e tenha entre seus membros simpatizantes ou colaboradores com a ditadura trata-se de uma desfuncionalidade e um sério risco à posição oficial do órgão sobre a devida responsabilização penal dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa-humanidade na ditadura.

A Comissão de Anistia tem estimulado, como parte dos compromissos internacionais do Brasil, o debate público nacional sobre o alcance da lei de anistia e possui uma posição clara e oficial pela imprescritibilidade e impossibilidade de lei de anistia para os crimes da ditadura, bem como defende o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Araguaia, sediada em São José da Costa Rica.

A atual composição da Comissão de Anistia foi responsável pela redução dos valores das indenizações milionárias concedidas no início da era FHC, ajustando-as a valores de mercado, e acelerou o julgamento dos pedidos de reparação, instituindo o pedido de desculpas às vítimas e as famílias.

A Comissão de Anistia também é conhecida internacionalmente por ter empreendido de maneira inovadora e sensível políticas públicas de memória e projetos vanguardistas como as Caravanas da Anistia, as Clínicas do Testemunho, o Projeto Marcas da Memória, e por ter iniciado a construção do Memorial da Anistia, realizado eventos e intercâmbios acadêmicos e culturais, alem de inúmeras publicações que aprofundam o sentido da Justiça de Transição no Brasil e na América Latina. Estes programas e projetos compõem hoje o Programa Brasileiro de Reparação Integral, reconhecido e celebrado internacionalmente, e fazem parte do rol dos direitos de todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção durante a ditadura civil-militar e aos seus familiares. Esses direitos devem ser preservados, sob pena de ruptura com o dever integral de reparação.

Os movimentos de direitos humanos e cidadãos abaixo assinados repudiam a arbitrariedade destas exonerações e nomeações na Comissão de Anistia e denunciam o início da tentativa de desmonte destas políticas que marcam a nossa transição democrática e que são parte de obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Do mesmo modo denuncia o absurdo de ter entre os membros da nova Comissão nomes de pessoas que não possuem posição de oposição enfática de condenação à ditadura e aos crimes militares ou, pior, que possam ter sido colaboradores da Ditadura.

O governo Temer com esta atitude arbitrária comete um erro histórico que afeta a continuidade da agenda pendente do processo de transição democrática, e com isso aprofunda as suas características de um governo ilegítimo, sem fundamento na soberania popular.

São iniciativas muito graves e unilaterais que sinalizam o início de um desmonte na Comissão de Anistia, conquista histórica da sociedade democrática brasileira, e uma ofensa aos direitos das vítimas da ditadura e os seus familiares.

Não aceitaremos retrocesso nas conquistas da Justiça de Transição no Brasil. Nem um direito a menos!
 

 Por Joana Rozowykwiat, do Portal Vermelho