Em entrevista de fundo ao Brasil 247, o ex-ministro Aloizio Mercadante analisa os dois anos do golpe de 2016, que afastou a presidenta Dilma Rousseff do cargo sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade. Mercadante aponta os retrocessos econômicos e sociais de governo Temer e defende a liberdade e a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como principal caminho para a retomada da estabilidade econômica, do crescimento e da distribuição de renda no país. Para Mercadante, “é Lula lá e para os golpistas restará a lata de lixo da história”. Confira a íntegra da entrevista:
Em artigo no jornal Folha de São Paulo, desta terça-feira (15/05), Michel Temer comemora o que ele classifica como dois anos de avanços de seu governo. Também está programado para hoje evento, que chegou a ser divulgado com o mote “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, no Palácio do Planalto, para celebrar os dois anos de governo Temer. Qual sua avaliação?
É impressionante que, depois de tudo que fizeram, eles, ainda, tenham tentado fazer algum tipo de analogia entre esses dois anos de retrocessos do governo Temer e o plano de metas do JK e seus 50 anos em cinco. Só pode ter sido uma espécie de sincericídio freudiano de um governo que perdeu completamente o contato com a realidade do povo brasileiro. O que de fato o golpe representa é um retrocesso de 20 anos, um atraso democrático e um fracasso econômico, social e político.
Para trazer de volta a verdade dos fatos, nada melhor do que retomarmos os números da pesquisa CNT, divulgada ontem. O governo Temer teve avaliação negativa de 71% dos entrevistados. Além disso, o desempenho pessoal do presidente ilegítimo é reprovado por 82,5%. Com base nesses números, que comprovam o governo Temer como sendo o mais impopular da história recente do país, devemos nos perguntar de que Brasil eles estão falando?
Em dois anos, Temer e o condomínio golpista desmontaram políticas essenciais de inclusão social e distribuição de renda dos governos Lula e Dilma. Retiraram direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, precarizando as relações de trabalho e implementaram uma ortodoxia fiscal permanente e uma agenda neoliberal internacionalmente fracassada. Perdemos nossa credibilidade, nosso protagonismo no cenário internacional e nossa soberania. O Brasil saiu do mapa da diplomacia internacional e está voltado para o mapa da fome da ONU.
A vida dos brasileiros e das brasileiras, especialmente os mais pobres, está muito mais difícil. Há, ainda, um clima de pessimismo generalizado que tomou conta do país. Por isso tudo, não há o que se comemorar nesses dois anos de retrocessos e de desgoverno de Temer: foram 20 anos de retrocessos em dois de golpe.
O senhor poderia aprofundar um pouco a análise a respeito dos retrocessos desses dois anos de governo Temer?
Primeiro é preciso lembrar que, do ponto de vista econômico, o discurso do condomínio golpista era de que a saída da presidenta Dilma geraria um choque de confiança no mercado de tal ordem, que ele por si só seria capaz de reestabelecer a credibilidade do governo e retomar, imediatamente, o crescimento. Isso não aconteceu. Muito em razão de que a crise econômica é indissociável da crise política.
Para efetivar o golpe, eles fizeram o jogo do “quanto pior melhor”, bloquearam o governo Dilma no parlamento, com grande cumplicidade do oligopólio midiático, e precisaram aprofundar a crise econômica, mergulhado o país em uma situação de incerteza e de caos. Tudo isso somado a um cenário já difícil de queda dos preços das commodities internacionais, de desaceleração da economia chinesa, de mudança na política monetária dos EUA e da pior seca dos últimos 80 anos, que somada a desvalorização do real pressionaram os preços da energia e alimentos, acelerando a inflação em 2015. Se a retomada já estava difícil para um governo reeleito com mais de 54 milhões de votos, o que dizer de um governo ilegítimo, marcado pela traição e sem qualquer credibilidade internacional?
Tudo bem, mas essa foi a estratégia política e econômico para a realização do golpe. O que veio depois?
Mercadante: Sem qualquer respaldo popular, o governo Temer teve que se subordinar integralmente as forças do mercado financeiro. Foi aquilo que eu chamei, na época, de paradoxo Temer, ou seja, quanto mais impopular o governo era, mais impopular ele precisava ser para se manter. Isso ocorreu na medida em que Temer impôs ao país uma agenda neoliberal tardia e uma ortodoxia fiscal permanente, derrotada nas últimas quatro eleições presidenciais, que passou pela retirada de direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, pelo desmonte e diminuição de estratégicos programas sociais, pela entrega da soberania nacional e pela retomada de um realinhamento geopolítico do país, em uma relação de submissão aos chamados países do eixo norte.
Com a aprovação da PEC 95, que impõem um teto declinante para os gastos públicos pelos próximos 20 anos e com o esvaziamento dos bancos públicos, o Estado perdeu o protagonismo como agente estratégico indutor da economia. Essa medida impôs uma série de cortes no orçamento da União, sendo os investimentos públicos tiveram o pior patamar dos últimos 50 anos e os programas sociais foram duramente atingidos.
Ontem, li uma matéria no Valo Econômico que retrata bem os impactos desse austercídio fiscal para o país. Pelo que diz a matéria, o número de óbitos evitáveis de crianças entre um e quatro anos, aumentou, tanto em taxa quanto em valores absolutos, após 13 anos em queda. A retomada dessa realidade dramática está, evidentemente, ligada aos cortes nos orçamentos voltados para os cuidados com maternidade e com a primeira infância.
Para se ter uma ideia, a lei orçamentária de 2017 previu R$ 5 bilhões para a Ciência, Tecnologia e Inovação, o que representou uma brutal redução de investimentos, se comparados aos R$ 8,4 bilhões de 2015. Com os cortes sofridos ao longo do ano, o orçamento chegou ao final de 2017 com o montante final de R$ 3,2 bilhões. No orçamento 2018, cortes adicionais foram na ordem 40%. Tivemos, inclusive, uma carta de 23 cientistas renomados e agraciados com o Prêmio Nobel alertando para a gravidade desse retrocesso.
O Ciências Sem Fronteiras e o Pronatec acabaram. O número de novos contratos do Fies, firmados no ano passado, é o menor dos últimos sete anos. O Bolsa Família sofreu um corte de R$ 1 bilhão e foram excluídas do programa cerca de 900 mil famílias. O programa Minha Casa Minha Vida teve R$ 1,2 bilhão retirados no orçamento para 2018 e está, praticamente, paralisado para as casas da faixa 1, que engloba as famílias de mais baixa renda. O salário mínimo perdeu poder de compra nos dois últimos anos, e, agora, em 2018, teve o pior reajuste dos últimos 25 anos. O que quero dizer com esses exemplos é que o governo Temer tem atuado, sistematicamente, para desmontar programas sociais estratégicos, que representaram inclusão social, e para esvaziar áreas essenciais para que o Brasil seja competitivo na sociedade do conhecimento.
Mas essas ações fazem parte do discurso de colocar ordem na casa e de que o Estado brasileiro estava muito grande nos governos do PT, não?
Mercadante – Deixa eu te falar uma coisa, a trajetória fiscal dos governos do PT foi bastante sólida, com superávits primários elevados, de 2003 a 2013. Houve também uma trajetória declinante das dívidas públicas, tanto a líquida quanto a bruta, e o pagamento de juros foi reduzido e manteve-se relativamente controlado. Acumulamos reserva cambiais na ordem de US$ 370 bilhões. Os três primeiros anos do primeiro mandato da presidenta Dilma foram, certamente, os três anos em que o Brasil teve a menor dívida pública líquida da sua história, desde o final dos anos 1970.
Nos nossos governos, o país que era a 13ª economia mundial chegou a ser a 6ª economia. O salário mínimo cresceu, em termos reais, 77% em 12 anos e foram gerados 23 milhões de empregos formais. Além disso, 36 milhões de brasileiros deixaram a pobreza extrema e outros 42 milhões ascenderam socialmente. Foi nos nossos governos que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU/FAO. E o que temos agora?
Eu que pergunto ao senhor, e, agora, o que temos?
Vamos deixar claro uma coisa, a partir de 2014, os resultados fiscais apresentaram uma trajetória divergente da tendência positiva observada no período anterior. Essa piora no resultado primário de 2014 é explicada essencialmente pela forte queda no ritmo de crescimento da arrecadação e não pelo descontrole do gasto público. E esse processo se deve a uma mudança importante no cenário internacional e também, essencialmente, a crise política deflagrada por uma oposição golpista, que não aceitou a quarta derrota eleitoral consecutiva.
Prova disso é que o governo Temer radicaliza nos cortes do orçamento público, desmontando os programas sociais e de distribuição de renda e, mesmo assim, não resolveu a questão. Em março, o déficit do setor público bateu recorde e atingiu a marca de R$ 25,1 bilhões. Não se faz uma consolidação fiscal sem a retomada do crescimento econômico.
Eles partem, agora, para a privatização da Eletrobras, para o desmonte de estruturas fundamentais da Petrobrás e querem entregar a Embraer, a mais importante empresa tecnológica do Brasil, para a Boeing. No que se refere ao setor de gás e petróleo, mudaram o sistema de partilha para o sistema de concessão dos poços do Pré-Sal, eliminando exigências de compra de conteúdo local da indústria nacional, flexibilizando exigências ambientais e isentando grandes multinacionais de petróleo do pagamento de impostos, com perdas que foram projetadas em até R$1 trilhão.
Além disso, apesar do desmonte da CLT, que enfraqueceu sindicatos e a justiça trabalhista e fragilizou as relações de trabalho, e da aprovação da Lei da terceirização irrestrita, o desemprego continua em alto. Na última PNAD Contínua, o índice de desemprego no Brasil atingiu 12,6% no primeiro trimestre de 2018, ou seja, 13,1 milhões de brasileiros e de brasileiras estão desempregados. Precarizaram o mercado de trabalho e aumentaram o desemprego. É isso que os golpistas querem comemorar em dois anos de governo?
Não posso deixar de citar a gasolina que atingiu o proibitivo preço médio de R$ 4,257 e do preço do gás de cozinha que explodiu, passando de R$ 70 em algumas cidades, no fim do ano passado. Com isso, voltamos a ver, principalmente no Nordeste, o aumento do número de vítimas de queimaduras, em razão de família pobres que passaram a utilizaram lenha e álcool para cozinhar por não terem dinheiro para comprar gás. Nesse quesito, o Brasil não voltou 20 anos em dois, mas uns 50 anos em dois.
Saindo um pouco da economia, o senhor tem sempre se posicionado sobre a educação, justamente por ser ex-ministro da pasta. Quer fazer algum comentário sobre o governo Temer na área? O que o governo tem apresentado como principais resultados na área são a reforma do ensino médio e a publicação da Base Nacional Comum Curricular. Qual sua avaliação?
Bom, não preciso dizer que, na educação, o governo Temer é um desastre completo. Antes do golpe, o orçamento da pasta vinha em forte crescimento. Nos governos Lula e Dilma, sofreu um incremento de 206% em termos reais. Se considerarmos apenas os governos da presidenta legítima, foram investidos, em educação, R$ 54 bilhões acima do piso constitucional obrigatório.
Em razão da ortodoxia fiscal, imposta pela PEC 95, as nossas universidades públicas passaram a conviver, novamente, com uma realidade de asfixia financeira e de sucateamento, como era nos tempos do governo do PSDB. Diversas instituições, em razão da asfixia orçamentária, tiveram comprometidos serviços como energia, vigilância, limpeza e, até mesmo, o funcionamento de restaurantes universitários. Para piorar o cenário, em 2018, o Ministério da Educação controlará 50% dos valores de investimento liberados para as universidades federais.
A expansão universitária está paralisada e o Fies e o ProUni sofrem com cortes pesados. Além disso, em razão da falta de legitimidade, o governo golpista tem se negado a nomear os reitores mais votados nas eleições e nos processos eletivos internos das nossas universidades: um retrocesso inaceitável.
Até a liberdade de cátedra a e autonomia universidade, conquistas seculares das nossas instituições, foram ameaçadas pelo condomínio golpista. Eles ameaçaram acionar órgãos de controle para investigar o curso “O Golpe de 2016 e o futuro da Democracia no Brasil”, idealizado pelo professor Luis Felipe Miguel da Universidade de Brasília (UnB), gerando forte reação de universidades e docentes, não só no Brasil, como em outros países do mundo.
Até mesmo um grupo de professores das universidades mais importantes dos EUA, entre elas Brown, Harvard, Princeton e Yale, assinaram uma carta de repúdio ao que entendem como tentativa do governo brasileiro de “tolher a liberdade de expressão nas universidades” do país, um vexame internacional para o Brasil na educação.
Mas e a questão da reforma do ensino médio e a publicação da Base Nacional Comum Curricular?
Mercadante – A reforma do ensino médio foi editada por medida provisória, de forma autoritária e arbitrária, sem qualquer participação da sociedade e tentou acabar com as disciplinas de filosofia, artes, educação e sociologia. Além disso, e ainda mais grave, não fixava os conteúdos obrigatórios mínimos que deveriam ser oferecidos a todos os estudantes como dever do Estado, transferindo tal obrigação para as redes a oferta dos itinerários formativos e para a escolha de disciplinas opcionais pelo estudante, institucionalizando o apartheid educacional no país.
Precisamos lembrar que a resistência de estudantes, que se posicionaram contra a reforma autoritária do ensino médio, ocupou mais de mil escolas e universidades. A derrota parcial da proposta autoritária de reforma do ensino médio do governo se deu no Congresso Nacional. Com a apresentação de um projeto de conversão, foi recuperado parcialmente o histórico de discussões sobre o tema na a Câmara dos Deputados, com a flexibilização do currículo, a abertura de espaços para a educação profissional e técnica, entre outros.
E a Base Comum?
Quanto à Base Nacional Comum Curricular, os golpistas apresentaram uma nova versão do documento para o a educação infantil e para ensino fundamental. Como são comprometidos com o retrógrado movimento do Escola Sem Partido, retiram do documento as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”, contribuindo para o aprofundamento do preconceito e a violência, patrocinados pela homofobia, nas escolas brasileiras. Na verdade, publicaram uma Base Comum para o ensino fundamental fortemente contaminada por uma visão obscurantista e ultrapassada em sociedade contemporânea, que deve ter uma escola acolhedora e que respeite as diferenças e a diversidade.
Quanto ao ensino médio, criamos no nosso governo democrático um amplo processo de discussões sobre uma nova Base Nacional Comum Curricular, que recebeu mais de 12 milhões de comentários e sugestões e que previa 70% do currículo com o mesmo direito de aprendizagem e 30% para itinerários formativos optativos. A nossa proposta previa, ainda, uma Comissão Nacional e Representativa que acompanharia e definiria os parâmetros comuns para a implantação do novo currículo, incluindo os itinerários formativos optativos, fazendo os ajustes necessários.
Com a equipe do golpe, a proposta é que essa competência seja uma exclusividade das redes regionais, sem mediação e monitoramento, o que pode levar a distorções e desequilíbrios no interior das redes ou entre elas, porque as redes são muito heterogêneas e as escolas também.
Todo nosso esforço era implantar a escola em tempo integral, no sentido de aumentar o tempo dos alunos e melhorar a qualidade da aprendizagem. Por isso, criamos o ensino Médio Inovador, que disponibilizava apoio técnico e financeiro a propostas curriculares criativas, possibilitando uma ampliação da jornada escolar para 07h diárias.
A proposta do governo Temer de permitir, na grade curricular do ensino médio, 40% do ensino médio à distância é um imenso retrocesso. Não adianta eles negarem que a ideia era essa, tentaram aprovar no Conselho Nacional de Educação e seguem tentando implementar uma proposta que vai contra todas as iniciativas de fortalecer a escola de tempo integral.
Na prática, a jornada obrigatória do currículo, que é de 2,4 mil horas, será reduzida para 1,8 mil horas, um uma redução maior do que estava prevista na proposta anterior da Base Comum. Além disso, as únicas disciplinas obrigatórias são o português e a matemática. A mudança proposta pelo governo Temer reduz os direitos de aprendizagem dos estudantes ao que couber nas 1,8 mil horas.
A proposta do golpe é uma precarização do ensino médio público, acompanhada pela possibilidade dos empresários da educação se apropriarem de até 40% do Fundeb do ensino médio, com a oferta de um ensino à distância sem qualquer controle de qualidade.
A entrevista já está ficando muito longa. Para fechar, qual o caminho para sairmos dessa situação, então?
O golpe instalou uma democracia tutelada e um estado de exceção seletivo. Como já é perceptível para a esmagadora maioria da população brasileira, Temer é o que há de pior na política. O golpe nunca foi para combater a corrupção, ou então, as ruas estariam lotadas nas duas vezes em que Temer comprou parte do Congresso Nacional, por meio da liberação de emendas parlamentares e de verbas por dentro dos Ministérios, para se livrar de processos de impeachment, em que há gravações pessoais comprometedoras e até filmagens de malas de dinheiro sendo carregadas a céu aberto.
Para além dos retrocessos do governo Temer, dentre as grandes sequelas desse processo, podemos citar a crise de representação política e a criminalização dos partidos e da classe política, com a instalação de um estado de exceção seletivo, que atua, cotidianamente, contra as forças progressistas, especialmente o PT. A único caminho para sairmos desta situação é um banho de democracia popular, com eleições limpas e livres.
A esperança e a vontade do povo estão encarceradas em uma cela de 15 m2, em Curitiba. As pesquisas não mentem. O povo quer Lula de novo. Temos 16 pré-candidatos à presidente que apoiaram o golpe e quatro que o enfrentaram. Para recuperar a democracia e a legitimidade das urnas, as forças progressistas precisam se unir em torno da bandeira da liberdade de Lula e da realização de eleições limpas, em que Lula possa participar. Ele é o caminho para o Brasil retomar sua autoestima, sua credibilidade e o crescimento econômico, combinando estabilidade, distribuição de renda e soberania nacional. É Lula lá e para os golpistas restará a lata de lixo da história.
[Via Brasil 247]