Por Norian Segatto, jornalista e escritor, editor da Editora Limiar e assessor de Comunicação do Sindipetro Unificado de São Paulo
Neste 3 de outubro acontece a primeira grande atividade de rua da Frente Brasil Popular, que congrega entidades dos movimentos sociais, populares e sindicais. A FBP foi criada no dia 5 de setembro durante a Conferência Nacional Popular realizada em Belo Horizonte. Os atos deste sábado, que ocorrem em várias cidades do país, irão se posicionar em defesa da democracia, da Petrobrás e contra o ajuste fiscal proposto pelo governo. Em São Paulo, a concentração ocorre a partir das 14h em frente ao prédio da Petrobrás, na avenida Paulista.
A data escolhida não é aleatória. Em 3 de outubro, a maior companhia brasileira completa 62 anos de uma história que se confunde com a do país.
O petróleo sempre foi alvo de disputas. No Brasil, mesmo antes da criação da Petrobrás, a busca pelo chamado ouro negro já atiçava ânimos dos mais variados matizes. Em 1941, o nacionalista escritor Monteiro Lobato chegou a ser preso por escrever cartas ao presidente da República, Getúlio Vargas, demonstrando sua indignação pela política subserviente aos interesses estrangeiros na questão do petróleo. Na luta popular que se travou pela criação da Petrobrás, alguns pagaram seu idealismo com a vida, como o ensacador da doca de Santos, Deoclécio Santana, morto em choque com a polícia em 1949.
Frente à mobilização popular na campanha O petróleo é nosso, em 1951 Vargas encaminhou para o Congresso projeto de lei propondo a criação da Petróleo Brasileiro S.A. Em outubro de 1953, finalmente foi sancionada a lei 2004, que deu origem à Petrobrás.
A empresa nasceu e cresceu sob a égide dessas disputas. Getúlio a cita em sua carta testamento: “Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma”. Getúlio se suicidou, mas a empresa fundada em seu governo continuou a prosperar e ser o epicentro de interesses e crises. Um dos últimos atos do ex-presidente João Goulart, antes do golpe militar (1964), foi a encampação das refinarias privadas no país: a União S.A. (atual Recap, em Mauá), a Copam (atual Reman, em Manaus), a Ipiranga (RS) e a de Manguinhos (RJ). Logo após o golpe, o ditador general Castelo Branco reprivatizou as refinarias, demitiu centenas de trabalhadores e fechou sindicatos, como o dos petroleiros de Mauá (hoje Sindipetro Unificado de São Paulo).
Crise política
Que ninguém se engane, a atual crise econômica por que passa a Petrobrás tem na política a sua gênese. O mau desempenho do atual governo brasileiro se entrelaça a um emaranhado de conspirações internacionais dignas dos mais inventivos filmes de 007. Nesse enredo atuam os Estados Unidos, China, Brics, Oriente Médio, PSDB, conflitos bélicos e disputa por posições hegemônicas no tabuleiro internacional.
Todos conhecem importância estratégica do petróleo. Combustível responsável por 93% do transporte mundial, está presente em mais de três mil produtos. Derivados do petróleo entram na fabricação de remédios, componentes eletrônicos, lentes, fibras sintéticas, detergentes, câmeras fotográficas, cosméticos, tintas, lubrificantes, pneus, fertilizantes agrícolas, asfalto, móveis, xampus, pasta de dente, telefones celulares, canetas, componentes de automóveis entre muitos outros. Em seu nome travam-se guerras, atacam governos e promovem massacres de populações.
Geopolítica mundial
Relatório da Agência Internacional de Energia (AIE), sediada em Paris, aponta os EUA como os maiores consumidores de petróleo do planeta. Dos cerca de 90 milhões de barris diários consumidos no mundo em 2013, 18,5 milhões (19,8%) foram para abastecer o mercado norte-americano; com uma população quatro vezes maior do que a estadunidense, a China vem em segundo lugar, com 11,7%; o Brasil é o sexto da lista, com o consumo de 3,1 milhões de barris\dia.
Para suprir sua crescente necessidade de petróleo, desde o final dos anos 50 os EUA priorizaram o controle geopolítico do Oriente Médio. As duas intervenções militares no Iraque (1991 e 2003) são exemplos dessa política.
A partir do início do século XXI, no entanto, outros (f)atores passaram a ter relevância. O avanço tecnológico permitiu aos Estados Unidos extrair petróleo de xisto por meio de um procedimento conhecido como fracking, o que o tornou auto suficiente e exportador da riqueza. Por outro lado, sua hegemonia mundial começou a ser ameaçada pelo crescimento da China e sua aliança com os demais Brics (Brasil, Rússia, Índia e África do Sul). O terceiro elemento foi a crise financeira deflagrada em 2008, cujo epicentro foi Wall Street. Essa combinação explosiva alterou o cenário mundial, com fortes implicações para o Brasil.
O jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, resume assim o atual impasse estadunidense: “A Casa Branca tem claro que não pode realizar simultaneamente duas grandes guerras [Oriente Médio e China). Por esta razão Obama retirou a quase totalidade das tropas norte-americanas do Iraque e Afeganistão”.
Como resposta ao crescimento da produção dos EUA, a Arábia Saudita passou a acelerar sua produção de petróleo, fazendo o preço do barril despencar de mais de 120 dólares, em 2013, para cerca de US$ 50 no final de 2014. Ao custo de extração de US$ 40, o petróleo de xisto torna-se inviável economicamente e a produção dos Estados Unidos começa a declinar, apesar de ser atualmente o maior produtor mundial.
A queda do preço do barril do petróleo afetou todas as companhias petrolíferas no mundo e a Petrobrás não foi exceção. Reside aí, segundo especialistas, a raiz dos problemas financeiros atuais da empresa.
O Brasil e a Petrobrás
No final do governo Fernando Henrique, em 2002, a Petrobrás era uma companhia decadente, com menos de 35 mil funcionários, um histórico recente de acidentes (como o afundamento da Plataforma P-36, que causou a morte de 11 pessoas) e com o mais baixo valor da sua história: US$ 15 bilhões. O governo seguinte recuperou a empresa, a transformou em uma gigante internacional, com mais de 85 mil empregados próprios, responsável por 13% do PIB brasileiro.
Em 2008, após investir mais de R$ 200 milhões em pesquisas, a companhia descobriu as reservas de pré-sal, um imenso mar de petróleo de altíssima qualidade, que pode tornar o país um dos cinco maiores produtores do mundo. Para ter uma ideia, nos 60 anos existência da Petrobrás, as reservas de petróleo acumularam 14,2 bilhões de barris; apenas no campo de Libra, do pré-sal, é estimada uma reserva de 15 bilhões e as descobertas já feitas nos demais campos elevam para 60 bilhões de barris o potencial do pré-sal. Ao preço atual de US$ 50 o barril, o que já foi descoberto representa algo em torno de 3 trilhões de dólares.
Junto com a descoberta do pré-sal, o Estado brasileiro promoveu, em 2010, a mudança da legislação, estabelecendo a Lei de Partilha e concedendo à Petrobrás a primazia da exploração dos campos do pré-sal. Ao anúncio, o governo estadunidense e suas companhias de petróleo ficaram com o pelo mais eriçado que gato encurralado.
Seguiu-se uma série de iniciativas para contingenciar (ou destruir) o poderio internacional que a descoberta e sua posse pelo governo brasileiro poderiam trazer, como demonstram diversos telegramas trocados entre personalidades brasileiras e estrangeiras publicados pelo Wikileaks. Carla Lacerda, diretora da Exxon-Mobil, se ressentia de que o controle da Petrobrás pudesse prejudicar fornecedores norte-americanos. Patrícia Padral, diretora da Chevron no Brasil, foi além: “A estratégia das petroleiras para barrar o novo marco regulatório do pré-sal é fazer um forte lobby no Senado por meio do IBP, da Onip e da Fiesp”.
Como resposta às preocupações da Chevron, o então candidato à Presidência da República, José Serra (PSDB) enviou, segundo o Wikileaks, uma mensagem a Padral: “Deixa esses caras (do PT) fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer e aí nós vamos mostrar que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”, teria dito o agora senador, que cinco anos depois cumpre seu compromisso com a multinacional ao apresentar o Projeto de Lei do Senado (PLS) 131, que tira a Petrobrás como operadora única da exploração do pré-sal.
Outros dois projetos em tramitação na Câmara Federal, o PL 4973/13, de Raul Henry (PMDB-PE) e o PL 600/15, de Jutahy Magalhães (PSDB-BA), atacam diretamente a Lei de Partilha e propõem a volta ao modelo de concessão, menina dos olhos das multinacionais.
Os ataques não param por aí. Em maio de 2013, o vice presidente dos EUA, Joe Biden, durante visita ao Brasil, tentou fazer com que a presidente Dilma se comprometesse em rever a Lei de Partilha. Pouco depois veio a público que o governo brasileiro e a Petrobrás eram espionados pelos Estados Unidos; concomitantemente, começou uma série de protestos para acuar a presidente e seu governo.
No bojo das investigações da Lava Jato, a Petrobrás ficou sob auditoria da PricewaterhouseCoopers (PWC), que, no final de 2014, recolheu os HDs de mais de três mil computadores que continham informações estratégicas sobre os campos de pré-sal entre outros dados sigilosos da companhia. As informações foram levadas diretamente para a sede da PWC em Nova Iorque.
Para o estrategista norte-americano William Engdahl, “a razão para Washington querer a saída de Rousseff é clara. Ela é uma das cinco cabeças do Brics, que assinaram a formação do Banco de Desenvolvimento Brics, com reservas de US$ 200 bilhões; ela também apoia a criação uma nova moeda internacional para complementar e, eventualmente, substituir o dólar”.
Não é o fim da corrupção, a melhoria das contas públicas ou a queda da inflação que movem políticos e empresários conservadores e parte da mídia brasileira na arquitetura da queda do governo. Há uma disputa mundial em curso e o pré-sal é peça importante desse tabuleiro. É com essa compreensão que a Frente Brasil Popular conclama a população a defender a Petrobrás e a soberania energética da nação.