Este texto é a continuação do segundo da série A TRANSFORMAÇÃO MUNDIAL e a implosão europeia (II)
Por José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultor do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas para o Setor de Óleo e Gás (GEEP/FUP)
Está cada vez mais claro que a crise europeia deste início de século XXI faz parte de uma transformação do sistema internacional que está em pleno curso e cujo futuro é inteiramente imprevisível. Mas apesar desta incerteza sobre seu futuro, é possível identificar alguns acontecimentos mais importantes que estão na origem dessa transformação, que começou por volta da década de 70 do século passado. Destacam-se, nesta trajetória, pelos seus efeitos de longo prazo e por ordem cronológica:
i) a multiplicação do número dos Estados-membros do sistema mundial, que passou, em apenas 40 anos, de 60 para 200 Estados nacionais soberanos, como consequência dos processos de descolonização da África e da Ásia, e da desconstrução da União Soviética;
ii) a “abertura” chinesa da década de 70 e sua plena incorporação no Sistema de Westphalia, como um Estado nacional que possui um quinto da população mundial e, ao mesmo tempo, é o depositário de uma civilização milenar;
iii) a “revolução iraniana” que derrubou a monarquia pró-ocidental do Xá Reza Pahlavi e criou, em 1979, uma república islâmica teocrática, fora do controle dos EUA, inimiga de Israel e competidora direta da Arábia Saudita, na luta pela hegemonia do Golfo Pérsico;
iv) o “fim” da URSS e do Pacto de Varsóvia, na década de 90, e a volta da Rússia à Europa e ao sistema no início do século XXI, na condição de grande potência regional e mundial, graças ao seu “poder energético” e ao seu armamento atômico, de alcance global;
v) a “reunificação” da Alemanha, em 1993, e seu retorno à condição de maior Estado e principal economia da União Europeia, mesmo sem contar com as condições militares, energéticas e alimentares próprias de uma grande potência.
vi) o “afastamento” progressivo e cada vez mais acentuado da Turquia, da Unidade Europeia e da própria OTAN, depois do golpe de estado de 2016, e sua aproximação da Rússia, do Iran e do Grupo de Cooperação de Apoio de Shangai, liderado pela China;
vii) a perda da “excepcionalidade” e da “hegemonia moral” dos EUA, por conta das ambiguidades e do fracasso da estratégia americana do “Grande Médio Oriente”.
Todos esses acontecimentos influenciaram, de uma forma ou de outra, a crise europeia. Mas não há dúvida de que a própria crise europeia constitui um dos elementos cruciais dessa transformação mundial, provocando verdadeiras ondas destrutivas em várias direções, a começar pelo chamado “mundo mediterrâneo”. Já vimos, em artigo anterior, que depois de 1991 e do fim da União Soviética, a OTAN passou por uma verdadeira “crise de identidade” e expandiu-se para o Leste, incorporando os países da Europa Central e envolvendo-se diretamente nas guerras da Bósnia e do Kosovo, durante a década de 90. Dez anos depois, entretanto, a OTAN foi mais longe ainda e criou um projeto de segurança coletiva para o Oriente Médio, que denominou de “Iniciativa de Cooperação de Istambul” (ICI), uma espécie de “guarda-chuva” que a autorizou a levar suas tropas até a Ásia Central, interferindo na Guerra do Afeganistão, e depois nas guerras do Iraque e da Líbia, ao lado de Estados Unidos, Grã Bretanha e França. Já vimos, também, como foi que esta expansão do território e do escopo inicial da OTAN acabou atingindo sua própria unidade e coesão interna. Mas, além disso, as intervenções militares da OTAN a transformaram num braço a mais do “imperialismo ocidental”, aos olhos do mundo árabe e de todo o “universo islâmico”. Mais do que isto, transformaram os países europeus em sócios inseparáveis e corresponsáveis por um dos maiores fracassos de toda a história da política externa norte-americana.
São quase 25 anos de guerra contínua sem obter nenhum dos objetivos políticos fundamentais que motivaram essas intervenções e bombardeios sem fim e que são os principais responsáveis pelo aumento do “terrorismo difuso” e pela onda de refugiados que assustam o nacionalismo xenófobo dos europeus. Não é uma mera coincidência que este processo de crise e destruição se manifeste – ainda que de formas diferentes – nos dois lados do Mar Mediterâneo. Nesse sentido se pode afirmar, com certeza, que a desintegração do projeto de unificação da Europa vem se projetando sobre o mundo islâmico e provocando um processo de retroalimentação destrutiva dentro deste mesmo universo que conquistou e moldou em conjunto o mundo moderno. O que foi uma relação conflituosa e criativa, através da história do último milênio, está se transformando num “abraço de morte”.1 Mas, ao mesmo tempo, é das cinzas desta destruição que já estão nascendo e se manifestando as forças que deverão moldar o futuro desse universo que já foi romano, mas também foi persa e otomano. E quais serão estas novas forças? Com toda certeza elas incluirão, como novidades, o Irã, que é herdeiro da civilização persa, e a Turquia, que é a herdeira otomana. Mas também deverão incluir, do outro lado das águas, a Rússia, herdeira do mundo bizantino e do cristianismo ortodoxo oriental.
Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve um Acordo de Paz que estabelecesse as perdas da URSS e definisse claramente as regras da nova ordem mundial, imposta pelos vitoriosos, como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. Mas as potências ocidentais se autoconvenceram da vitória de sua “Ordem Liberal” na economia e no campo das relações internacionais. A URSS não foi atacada, seu exército não foi destruído e seus governantes não foram punidos, mas, na década de 90, os EUA e as demais potências ocidentais patrocinaram ativamente o desmembramento do território russo. Apesar disso, a Rússia manteve seu arsenal atômico e, depois do ano 2001, como vimos noutro momento, o governo russo centralizou seu poder interno, seu Estado e sua economia. Retomou seu caminho de volta à condição de grande potência, a partir de sua primeira intervenção militar na Guerra da Geórgia, em 2008 e, sobretudo, depois de sua intervenção vitoriosa na Guerra da Síria, feita de forma autônoma, mas ao lado da “cruzada ocidental” e da causa comum contra o Estado Islâmico. Naquele momento, de um só golpe, a Rússia se solidarizou e desmoralizou a coalisão euro-americana e sua ambiguidade na Guerra da Síria. Desde então, tem crescido o papel da Rússia nas negociações políticas e militares dentro do Oriente Médio, e dentro da própria Europa dividida frente às sanções impostas, pelo Congresso Americano, à Rússia, em julho de 2017. Ou seja, a divisão da Europa frente à Rússia já criou uma fissura entre os europeus e os norte-americanos, e essa fissura pode se transformar no médio prazo numa ruptura estratégica entre as potências do Atlântico Norte. Na verdade, 25 anos depois da grande derrota soviética e da vitória da “ordem liberal euro-americana”, os russos já não estão questionando apenas essa “ordem eurocêntrica”; estão se propondo a reconstruí-la a partir do Leste e de sua própria liderança ou hegemonia, dentro do Velho Continente.
Por fim, não se pode pensar no impacto da crise europeia sobre o futuro do sistema mundial sem confrontá-la com o fenômeno do deslocamento da economia mundial na direção da Ásia, e com o processo de expansão da influência mundial da China. Depois das duas “Guerras do Ópio”, em 1839-42 e 1856-60, a China foi submetida a um século de humilhações por parte das potências europeias fundadoras do Sistema de Westphalia, e de suas duas regras fundamentais: a das “soberanias nacionais” e da guerra como forma regular de resolução dos conflitos entre seus Estados nacionais. Na segunda metade do século XX, entretanto, a China expulsou seus invasores e adotou a forma de um Estado nacional, incorporando o modo de produção capitalista como instrumento de acumulação de poder, entrando num período de crescimento econômico contínuo e de projeção cada vez maior do seu poder e prestígio internacionais. Aos poucos, a China vem reconstruindo também seu antigo “sistema hierárquico tributário”, dentro e fora de sua região imediata de influência histórica.
Muitos analistas já estão prevendo um grande confronto milenar entre o sistema chinês de organização de suas zonas de influência ou dominação “hierárquico-tributária”, e o “sistema de Westphalia”, criado pelos europeus e imposto ao resto do mundo, com base na ideia da igualdade entre a soberania de seus Estados nacionais. Mas o mais provável é que não ocorra nada disto, e que o sistema mundial atravesse um prolongado período de grandes turbulências e guerras provocadas por mudanças súbitas e inesperadas, e por alianças cada vez mais instáveis, como se todo mundo estivesse reproduzindo agora, e em escala planetária, o que foi a história passada de formação da própria Europa. Uma espécie de castigo ou maldição da Velha Europa, contra sua própria criatura.