“Está em curso um retrocesso social em cascata”, alerta o economista, professor da Unicamp

waldir quadros

 

A ascensão da classe C nos últimos dez anos, também denominada por alguns de a nova classe média, iniciou um processo de “empobrecimento” em 2013, informa Waldir Quadros, em entrevista publicada originalmente na Revista IHU On-Line, após analisar os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad 2014, referente ao desenvolvimento socioeconômico da população brasileira.

“A mobilidade social diminuiu ou reverteu: agora não temos uma ascensão social, mas um rebaixamento das camadas populares. Em 2013 a baixa classe média continuou crescendo, representava 43% da população e subiu para 44,2%. Mas ela cresceu porque houve uma queda na alta e, principalmente, na média classe média. Assim, houve uma mobilidade social descendente, principalmente na média classe média, que caiu para baixo. A baixa classe média cresceu porque a média classe média diminuiu; então, esse não é um dado positivo”, esclarece.

Na avaliação do economista, os dados da Pnad indicam que “um processo de retrocesso social está em curso. Se em 2013 foi assim, em 2014, com o baixo crescimento, esse cenário vai se reproduzir. Em 2015 a situação é mais grave ainda, porque em cima dessa situação se tem uma recessão”. Quadros pontua ainda que a causa do retrocesso social. “Em 2011, 2012, embora a economia estivesse crescendo pouco, ainda tinha um impulso do crescimento de 2010. (…) O que estava impulsionando a melhora de vida era o crescimento econômico e a melhoria do salário mínimo. Agora, sem crescimento econômico, o mercado de trabalho começará a dar sinais preocupantes”.

Waldir José de Quadros possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e mestrado e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.

Confira a entrevista.

Foto: www.unicamp.br

 Pode nos explicar em que consiste sua metodologia de dividir a população brasileira em cinco estratos sociais para entender que parte da população corresponde à classe C?

A minha metodologia combina o critério de renda com um critério de sociologia do trabalho, da estrutura ocupacional, porque no fundo toda a discussão acerca da renda diz respeito à linha de corte, ou seja, o pesquisador estabelece uma linha de corte para definir as camadas da população. Por exemplo, os ortodoxos trabalham com um critério estatístico e estabelecem uma linha mediana, dividindo a população em duas partes, e estabelecem um intervalo em torno da mediana, a qual eles denominam de classe média. Mas essa metodologia rebaixa a linha de corte e pessoas que são praticamente miseráveis viram classe média; mas esses dados são distorcidos. Eles são trabalhados por Marcelo Neri e pelo pessoal da Secretaria de Assuntos Estratégicos. A classe média considerada por eles é muito grande justamente porque a linha de corte que utilizam é rebaixada. A discussão não é se devemos ou não usar a renda como um critério de estratificação. Na verdade, se usarmos os dados do IBGE, Pnad e Censo, não tem outra forma, ou todas as outras formas são equivalentes.

A tese do meu orientado Alexandre Gori Maia demonstrou que todas as variáveis qualitativas que constam da Pnad e do Censo, e que poderiam servir para fazer uma estratificação, estão relacionadas com a renda. Então, é muito melhor usar os dados de renda, mas isso não quer dizer que se use a renda para definir classes sociais. A estratificação social é uma coisa, e o conceito de classe social é uma referência analítica teórica distante, é importante para não fazer bobagem com os dados, mas não dá para sair do conceito de classe social e começar a montar números com isso.

Por isso, não trabalho com o conceito de classe social; tenho o cuidado de trabalhar com o conceito de padrão de vida. Então, a minha estratificação chega a cinco padrões de vida e um deles é típico da baixa classe média, ou da classe C, como alguns denominam. Para eu chegar na baixa classe média, analiso quais são as ocupações dessa baixa classe média, mas começo meu processo de investigação a partir das ocupações da classe média alta, que são os profissionais de nível universitário, gerentes, médicos, economistas, professores. Avalio qual é a renda que capta esse pessoal e a partir daí estabeleço a linha de corte. No caso da baixa classe média (classe C), as ocupações típicas são professor primário, balconista, auxiliar de escritório. Aí eu vejo qual é a renda declarada desses profissionais e defino um intervalo de renda que capta esses profissionais, que a priori e analiticamente eu disse que são da baixa classe média. Mas quando estabeleço essa linha de corte, considero todas as pessoas que têm rendimentos nessa faixa: operário, autônomo, pequenos empresários. Por isso que eu chamo de padrão de vida: são trabalhadores educados que têm um padrão de vida de baixa classe média.

Quais são as evidências de que houve um empobrecimento da baixa classe média? Quais as causas desse empobrecimento e desde quando ele vem acontecendo, a partir da sua análise dos dados da Pnad?

 A tabela 1 da Pnad mostra que de 2004 a 2012 houve um progresso na estrutura social e na mobilidade da baixa classe média, mas a partir de 2013 tem início um empobrecimento. Eu também fiquei surpreso com esses dados. Mas, antes de tudo, é importante explicar que a chamada baixa classe média, chamada por alguns de nova classe média, não é uma nova classe média, porque ela já existia, e só cresceu. O que provocou esse crescimento foi a ascensão dos de baixa renda. O fenômeno importante que aconteceu foi a mobilidade social nas camadas populares que chegaram até a baixa classe média.

Foi uma ascensão quantitativa ou qualitativa?

Quantitativa em decorrência da melhora salarial, porque houve uma melhoria dos salários populares, pelo aumento do salário mínimo e do emprego. Até 2012 houve melhora. Mas a grande novidade da Pnad 2014, correspondente aos dados de 2013, é que a mobilidade social diminuiu ou reverteu: agora não temos uma ascensão social, mas um rebaixamento das camadas populares. Em 2013 a baixa classe média continuou crescendo, representava 43% da população e subiu para 44,2%. Mas ela cresceu porque houve uma queda na alta e, principalmente, na média classe média. Assim, houve uma mobilidade social descendente, principalmente na média classe média, que caiu para baixo. A baixa classe média cresceu porque a média classe média diminuiu; então, esse não é um dado positivo. Cresce também pela primeira vez a classe dos miseráveis. Isso significa que vai havendo uma queda em cascata: da alta cai para média, da média cai para a baixa, da baixa cai para a massa trabalhadora, e da massa trabalhadora cai para os miseráveis. O fenômeno ocorreu em 2013, segundo dados do Pnad, e isso é muito grave, porque é um sinal de que pode ocorrer um processo de retrocesso social que está em curso. Se em 2013 foi assim, em 2014, com o baixo crescimento, esse cenário vai se reproduzir. Em 2015 a situação é mais grave ainda, porque em cima dessa situação se tem uma recessão.

O que pode significar que a situação pode voltar para o que era antes, ou seja, se o quadro de 2013 retroceder para o quadro de 2010, o rebaixamento será assustador.

As causas desse processo é a paralisia econômica. Em 2011, 2012, embora a economia estivesse crescendo pouco, ainda tinha um impulso do crescimento de 2010. Agora, esse modelo se esgotou e em 2013 começou um falecimento, que tem se manifestado em 2014, e em 2015 terá um cenário mais grave. O que estava impulsionando a melhora de vida era o crescimento econômico e a melhoria do salário mínimo. Agora, sem crescimento econômico, o mercado de trabalho começará a dar sinais preocupantes.

O que isso demonstra sobre a gestão do Estado?

A grande lacuna do governo do ex-presidente Lula é que ele não aproveitou a fase excepcional de crescimento para promover reformas estruturantes, porque ele tinha que reindustrializar o país. Nas questões estruturais não foi feito nada. A política econômica, até 2008, era continuidade do que vinha antes. A principal iniciativa industrializante é o pré-sal, porque aumentou o conteúdo nacional de fornecedores, sondas, plataformas. Agora, o câmbio e os juros continuam desfavoráveis, e a indústria foi arrasada. Faltou uma política industrial. E a Dilma também não fez essa mudança e não conseguiu fazer os investimentos deslancharem. A grande causa desse processo está no desenvolvimento econômico, que parou. O grande problema é que se perdeu uma oportunidade histórica.

O que foi feito de política social, além das políticas compensatórias de distribuição de renda — que nem se gasta tanto com isso? O resto foi o salário mínimo e aumento do emprego. Fora o salário mínimo não teve nenhuma política social: na saúde, o que foi feito? Na educação, o que foi feito? Não tem política industrial, não tem política de inovação e desenvolvimento.

Quais foram os ganhos da classe C nos últimos anos e o que a classe C tende a perder daqui para frente?

O principal progresso que ocorreu foi a mobilidade ascendente causada pela melhora dos salários. Junto com isso teve a explosão do consumo e a melhora no padrão de vida. A classe C comprou muitos itens importantes para sua vida: freezer, geladeira, televisão, famílias trocaram de carro, alguns conseguiram comprar a casa própria. Houve uma melhora na qualidade de vida pelo aspecto do consumo, mas permaneceram intocadas as políticas sociais de saúde, educação, segurança, saneamento e mesmo em habitação, porque poucas pessoas saíram da periferia com os programas de habitação. A classe C continuou precária por conta da falta de reformas estruturais. Se a classe C perder as melhorias oriundas do consumo e do emprego, voltará para a situação de desemprego e ainda viverá nas mesmas condições estruturais precárias.

Outra melhora foi o acesso à educação para amplas camadas de jovens através do ProUni e do Fies, mas o Fies está sendo arrochado e esse é um prejuízo para a classe C.

A estratégia do governo foi equivocada em relação ao Fies no sentido de não ter feito uma política que pudesse ser sustentável?

Sim, o governo deixou crescer sem critérios e agora fala que precisa de um critério. O corte agora tem como objetivo fundamentalmente cortar o orçamento. O governo não pode jogar na rua uma massa de estudantes que, caso o Fies seja cortado, não terá como estudar. Algumas faculdades em São Paulo demitiram cerca de 30% dos professores porque perderam clientela. É claro que há situações que precisam ser consertadas, como ocorre em relação ao seguro desemprego, mas fazer esses ajustes somente para cortar gastos não tem sentido.

Por que as críticas em relação ao Fies só estão sendo feitas agora, inclusive em relação à revisão das regras? Ao longo dos últimos anos, essa foi vista como uma política positiva.

Estava se vendo somente o aspecto da expansão do acesso de mais pessoas à universidade, mas quem tinha de controlar as regras era o Ministério da Educação. De fato, ninguém nunca falou nada sobre o Fies. De repente o programa desaba por inadequações, mas isso poderia ter sido visto.

Quais são os impactos dos ajustes anunciados pela presidente para a classe C, como aumento da conta de energia, gasolina? Como os ajustes impactam a classe C?

O principal impacto será o conteúdo recessivo que vai prejudicar toda a sociedade e não somente a classe C. O Brasil sabe muito bem o que é recessão; não precisa olhar para a Grécia, é só olhar para o Brasil dos anos 1990. Como foi o desempenho do Brasil nesse período? Teve uma política de contenção de gastos, queda do PIB, redução do crescimento. Isso é retrocesso social, as ascensões sociais podem dar um passo atrás.

A Dilma perdeu apoio justamente porque a população votou nela para evitar um tratamento recessivo e ela vem e aplica um tratamento recessivo. É uma situação bastante difícil.

O empobrecimento tende a aumentar daqui para frente? Como fica a situação da classe C a partir de agora, nesse momento de crise econômica e ajustes anunciados pelo governo?

Aumentou o número de miseráveis e em 2013 já começou o processo de empobrecimento. Isso ajuda a explicar o forte descontentamento que existe na sociedade. Esse descontentamento não é somente fomentado pela mídia, pela televisão; há uma base real para o descontentamento. Claro que a mídia e a oposição trabalham em cima disso, mas veja que quando a situação das pessoas estava melhorando, as estratégias da mídia não funcionavam. Por que agora é diferente? Porque a situação está difícil e a perspectiva é pior ainda. É um quadro preocupante.

Como o senhor analisou as manifestações que ocorreram nos dias 13 e 15 de março? Estavam presentes representantes da classe C?

Teve de tudo: classe C, classe média, classe alta. É claro que teve uma forte participação da classe média, especialmente em São Paulo, porque as manifestações de modo geral aconteceram em regiões centrais. Mas isso não quer dizer que a periferia está contente. Até onde percebo, a periferia está descontente, mas ela não se sente representada pelas manifestações da paulista. Agora, isso não quer dizer que a periferia está contente. Basta ver que as pesquisas de opinião mostram uma insatisfação majoritária, inclusive no Nordeste. Há um descontentamento geral porque a situação piorou.

Em relação às manifestações do dia 13 de março, quem não era contra a Dilma, foi pedir que ela barrasse o reajuste. Mas a manifestação feita na terça-feira passada foi contra uma medida parlamentar referente à terceirização. Então, quem era a favor do governo, agora está sendo contra. Quem pode defender o que a Dilma está fazendo? Ninguém. A CUT, os trabalhadores e os movimentos que não são contra o governo também estão descontentes. Tanto que a pauta não é a favor ou contra a Dilma, mas no sentido de barrar a terceirização, a diminuição dos direitos, é contra as medidas que o governo quer adotar, inclusive contra o grande esforço do Lula. Ele é o grande motivador dessas medidas, porque ele acredita que fazendo ajustes o país voltará a crescer. Basta olhar para a Europa para ver que isso não funciona.