Em defesa de espaços para o fortalecimento da democracia

Por Jacy Afonso de Melo, secretário nacional de Organização Sindical da CUT

O decreto presidencial n° 8.243/14 sobre a Política Nacional de Participação Social trouxe a polêmica em seu bojo. O motivo da discórdia, desta vez, é a instituição de conselhos populares para assessorar a formulação de políticas públicas pelo governo que, segundopretexto dos partidos de oposição,conservadores e de direita, invade competências do Congresso Nacional. Setoresempresariais e neoliberais alegam, falsa e exageradamente, que a medida seria um aparelhamento ideológico pelos movimentos sociais e sindicais.

Para o governo e segmentos progressistas, a democracia no Brasil está consolidada, mas precisa avançar. E a melhor forma de garanti-la é pela participação popular, ampliando a presença de todos os atores sociais na definição das políticas públicas importantes para os cidadãos brasileiros. A valorização dos sentimentos, das necessidades e das sugestões da população passaria a ser um método de gestão.

Participação e controle social

No Brasil, especialmente durante a ditadura militar, experimentamos o controle social como o exercício do Estado nas suas funções clássicas de dominação e nos roubaram o revés desse conceito: o controle social que se refere à participação social na elaboração e fiscalização de políticas públicas em contextos democráticos. Assim, não experimentamos na prática esse conceito nem mesmo após a ditadura.

Ele começou a se desenhar a partir da eleição do presidente Lula e continua em construção, pois participação, controle social, democracia, direitos, ainda hoje são palavras mais escritas do que exercidas. Trazemos conosco os reflexos do contexto autoritário, onde havia a drástica redução da participação e o aumento de mecanismos de controle. No regime democrático, o processo se inverte e nossa sociedade não sabe bem como lidar com isso.

A participação é um processo no qual homens e mulheres são sujeitos políticos com uma prática diretamente relacionada ao exercício de cidadania, às possibilidades de contribuir com mudanças e conquistas. A professora Rodriane de Oliveira Souza (autora do livro Participação e controle social – Cortez, 2004) afirma que “aparticipação é requisito de realização do próprio ser humano e para seu desenvolvimento social requer participação nas definições e decisões da vida social”.

Em nossa história recente podemos citar como exemplos de participação social, a luta contra a ditadura militar, pelas eleições diretas, pelo impeachment de Collor, pela reforma agrária, por melhores salários e condições de trabalho e de vida para todos.

A participação da sociedade organizada ocorreu em todos os níveis de pressão por liberdade e democracia. Nas manifestações de rua, na organização de agrupamentos sociais, nas eleições, na organização dos trabalhadores urbanos e rurais, na organização e luta das mulheres contra a discriminação e pela conquista de direitos, dos negros, dos homossexuais, dos estudantes.

No Brasil, apenas com a Constituição de 1988 é assegurada juridicamente a participação e o controle social como mecanismos de democratização dos direitos civis e políticos, tornando o termo controle social e articulado com a democracia representativa e assegurando mecanismos de participação da população na formulação, deliberação e fiscalização das políticas públicas. Mesas de Diálogo, conferências e Conselhos, por exemplo, são formas de participação social e mecanismos conquistados para exercer o controle social.

Condições para a participação e o controle social

Marx e Engels, em “A ideologia alemã”, apontam: “O primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens e mulheres devem estar em condições de viver para poder fazer história. E para viver é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais.”

Para a maior parte da população excluída brasileira, essas condições mínimas de viver com dignidade foram se dando a conhecer a partir da eleição do presidente Lula, quando se iniciou um processo de institucionalização de políticas de resgate dessas pessoas cujo destino até então era a miséria, a falta de possibilidades de comer, estudar, ter acesso à saúde e a direitos mínimos de cidadania. Programas como Brasil Sem Miséria, Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Mais Educação, Fundo de Amparo ao Trabalhador, Pronaf, Pronatec, Mais Médicos e Ciência sem Fronteiras, por exemplo, possibilitaram a milhares de brasileiros oportunidades jamaisofertadas em qualquer tempo.

Melhores condições de vida e acesso a direitos “novos” apontam para a construção da cidadania, para a necessidade de superar a crença de que participação política é apenasvotar, trazendo a consciência de que é preciso cobrar atuação e construir, juntos, um país melhor. É sim responsabilidade dos governantes buscarem o bem comum, porém é indispensável a participação concreta do povo. Hoje, para além de reclamar dentro de nossas casa e locais de trabalho é exigida a opinião, a presença, a construção coletiva de políticas que concretizem os direitos dos cidadãos e das cidadãs do nosso país. Direitos esses garantidos com a promulgação da atual Constituição que garante mecanismosinstitucionais de participação e de representação e a criação de órgãos com esta finalidade, que não são mais mecanismos de fiscalização e promoção de direitos, mas sãonormativos, definidores de parâmetros e deliberadores de políticas. E mais, afirma que"todo poder emana do povo, que o exerce indiretamente, por representantes eleitos, ou diretamente nos termos desta Constituição".

Fortalecimento da democracia

Nas três décadas de democracia no Brasil, vivenciamos melhorias na vida das brasileiras e dos brasileiros, com importante redução da desigualdade social. A partir de 2003, com Lula, o abismo entre ricos e pobres diminuiu e a política de combate à miséria, levada adiantepela presidenta Dilma, tornou-se referência mundial. O Brasil cresceu, começou a distribuirrenda e tornou-se menos injusto.

Desde que os brasileiros passaram a escolher seus representantes, os primeiros governos democráticos e populares passaram a instituir orçamentos participativos e a população passou a definir suas prioridades. Com Lula, os espaços de participação existentes foram ampliados e novas formas criadas: conferências,conselhos de direitos, fóruns de debate nos diversos setores das políticas públicas.

Desde 2002, os espaços institucionais para tratar da Política e do Sistema Nacional de Participação Social vêm sendo construídos. O Fórum Governamental de Participação Social possui 80 integrantes, representando diversos ministérios e empresas estatais. Funciona desde 2003 com o objetivo de elaborar recomendações de aprimoramento e articulação dos espaços e mecanismos de participação social.

Em outubro de 2011 o Governo Federal promoveu o Seminário Nacional de Participação Social, realizando um balanço das experiências dessa prática e debateu as iniciativas, perspectivas e estratégias orientadoras das ações governamentais. O evento reuniu 400 pessoas, representantes das mais diversas organizações sociais de todo o país e, além do diagnóstico sobre iniciativas de participação social em diferentes esferas da sociedade avaliou a efetividade alcançada pelas ações. Esse momento foi importante também para que o governo federal recolhesse inúmeras propostas trazidas pelas instituições e amadurecidas durante os debates para que servissem para nortear o trabalho da Secretaria Nacional de Articulação Social, vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República.

Na Conferência de Abertura John Gaventa (sociólogo, pesquisador, educador e militante da sociedade civil) afirmou que os modelos de participação gestados e desenvolvidos pelo e no Brasil têm gerado efeitos que extrapolam as fronteiras nacionais, inspirando outros países e seus governos e disseminando-se ao redor do mundo. Diz ele ainda que a idéia de participação cidadã foi afetada por um certo tipo de dualidade: ao mesmo tempo que existem aqueles que defendem a participação dos excluídos, outros insistem numa forma de participação que entende o indivíduo como cliente, beneficiário ou usuário do serviço do governo, isto é, a partir de uma concepção neoliberal. E determina: a participação é a luta dos cidadãos por seus direitos.

E são exatamente essas duas naturezas, esses dois conceitos de participação que saltam aos olhos nesse momento histórico no Brasil.

Quem tem medo da participação social?

A experiência de participação social é prática recorrente no Brasil, efetivada especialmentenos quase 40 conselhos nacionais que, compostos por representantes da sociedade civil e governamentais, pautam, debatem, definem e sugerem políticas públicas de interesse social. Nesses locais de representação foi gestado um conjunto de programas, ações e atividades a serem desenvolvidas pelo Estado.

O decreto 8243/2014, assinado em maio pela presidente Dilma, cria a Política Nacional de Participação Social, estimulando a participação dos conselhos, movimentos sociais e da população em medidas do governo. O objetivo da lei é promover a participação social na formulação, acompanhamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas, além de prever canais de articulação da sociedade com as três instâncias de governo: federal, estadual e municipal. A proposta explicita que somente com a participação da sociedade a democracia avança, criando solo fértil para o amadurecimento responsável da nação. A participação da sociedade civil organizada somente se dá com a institucionalização de canais que propiciem a interação dessa sociedade com as decisões governamentais. É o diálogo direto, franco e de mútuo respeitocom a sociedade organizada que qualifica e legitima as ações do governo.

Isso é ruim para a sociedade brasileira? Evidente que não. A real polêmica provocadapelo decreto está para além das expressões de invasão de competências de poderes. Afirma Pedro Pontual, educador popular, articulador social e diretor do Departamento de Participação Social da Secretaria Geral da Presidência da República, que “discutir direito e cidadania requer rever o papel do Estado”. E o pavor daqueles que sempre manipularam decisões, definindo ao seu bel prazer as prioridades de seus governos e de seus mandatos, é exatamente a democracia. Não conhecem as raízes, as definições, as práticasda democracia. Ficam assustados e disseminam verdadeiros absurdos, somente comparáveis aos argumentos utilizados pelos militares para justificar o golpe de 1964.

Esses setores que se opõem ao decreto, sabedores do enraizamento popular de partedos governantes brasileiros a partir de 2002, das inúmeras organizações atuantes na sociedade brasileira, intrinsecamenterelacionadas ao povo, capazes de propor políticas públicas fundamentais para esse povo, ficam em pânico, pois não sabem lidar com isso, não estão acostumados a isso. Sabem apenas definir e impor ações conforme suas ideologias que, em geral, defendemprivilégios, manutenção de desigualdades sociais e políticas, interesses contrários aos da população.

Ao inovar com a proposição de medidas concretas para garantir o diálogo com todos os segmentos sociais, a presidenta Dilma prioriza a participação da sociedade e recebe apoio da CUT, das forças progressistas e das entidades que sempre defenderam a reforma política, o aperfeiçoamento da democracia e a justiça social. E somente os conservadores, a elite com interesses completamente descolados da sociedade brasileira se colocam contrários ao avanço da democracia. Exemplos de apoio foram a nota oficial da CUT e o Manifesto dejuristas, acadêmicos, intelectuais e movimentos sociais em favor da Política Nacional de Participação Social. Este último documento afirma que o decreto traduz o espírito republicano da Constituição Brasileira ao reconhecer mecanismos e espaços de participação direta da sociedade na gestão pública federal e contribui para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais, sem restrição ou privilégios de qualquer ordem, reconhecendo, inclusive, novas formas de participação social em rede

Essas personalidades e instituições extremamente respeitáveis entendem que o decreto não é antidemocrático já que não submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado; destacam que, ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo.

É referência para os dias de hoje a história contada por Geraldo Vandré, em Disparada, do boiadeiro que já foi boi e um dia despertou,porque suas percepções do mundo foram clareando e ele foi tomando consciência de si mesmo até gritar aos nossos ouvidos que“gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”.

Não há democracia sem povo. É a participação social que aproxima as políticas públicas dos anseios da população. Por isso, a CUT e suas mais de 3.800 entidades filiadas, que representam uma base de 24 milhões de trabalhadores e trabalhadoras no país, apóiam o decreto e conclamam a população a defender mais este instrumento de participação social. Para a Central, o decreto e sua efetivação na prática não são uma panacéia nem um ato milagroso que resolverá todas as injustiças num passe de mágica. É necessário, contudo, que todos os dirigentes sindicais e militantesocupem os espaços democráticos, indicandorepresentantes para levar as demandas dos trabalhadores aos conselhos, na tentativa deinfluenciar na construção de políticas públicas que indiquem a busca de uma sociedade justa, igualitária e democrática. Os avanços só virão com uma combinação que associe essa participação com mobilização e organização popular.