Debate sobre a Previdência expõe contradições do governo

 

 

No seminário Previdência Social: reformar ou destruir?, a professora de economia na UFRJ, Denise Gentil, apontou as contradições no discurso do governo em relação às medidas de ajuste fiscal. De acordo com ela, a gestão propõe um corte de gastos que afetará os mais pobres, mas protege empresários e rentistas.

A professora destacou que um governo que, em um ano, gasta R$ 501,7 bilhões em juros da dívida e abre mão de R$ 281 bilhões de reais em receitas, fruto de desonerações, não pode querer fazer uma reforma da Previdência que achatará a renda do trabalhador, alegando excesso de gastos.

“Os pobres vão pagar a conta, enquanto os agentes financeiros estão nadando em renda proporcionada pelo mesmo Estado que quer fazer o ajuste fiscal? Não dá”, disse, durante o seminário, que aconteceu nesta segunda-feira (21), em São Paulo. 

De acordo com ela, momentos de desaceleração econômica, como o atual, são utilizados para promover “os ataques mais hostis” aos direitos sociais. Isso porque, com a recessão, a arrecadação cai e, por outro lado, gastos com saúde, seguro desemprego e segurança pública costumam subir. O resultado é um déficit primário, que é usado como justificativa para medidas de ajuste, como a reforma da Previdência. 

Política econômica contra a Previdência

Denise avalia que o debate atual sobre equilíbrio fiscal omite vários aspectos sobre o sistema previdenciário. O primeiro deles seria o fato de que a própria política macroeconômica praticada no país atinge a previdência social.

“Não são parâmetros como idade de aposentadoria e tempo de contribuição que prejudicam o resultado financeiro da previdência, mas a política macroeconômica do governo, que é recessiva”, defendeu. 

Ela destacou que a manutenção de taxas de juros muito elevadas, o corte do crédito e a contenção do investimento público provocam uma desaceleração na economia, que resulta em queda na arrecadação e consequente redução das receitas da seguridade social.

Bolsa empresário

A professora criticou ainda a decisão de conceder o que ela chamou de uma “brutal” desoneração a setores empresariais, algo levado adiante nos últimos 10 anos, mas que se acentuou de 2011 a 2014. “Em 2015, as desonerações alcançaram um patamar de R$ 281 bilhões. Desses, 55% foram em cima de receitas que financiam a seguridade social”, informou.

O governo alega que, em 2015, a previdência social acumulou um déficit de R$ 85 bilhões, que, somado à expectativa de envelhecimento da população, tornaria o sistema insustentável. Denise, contudo, contesta a afirmação. Segundo ela, o sistema, na verdade, fez um superávit de R$ 16 bilhões. 

Seu argumento é o mesmo de outros economistas, que rejeitam a tese de que há déficit na previdência. Eles apontam que a Constituição prevê que a seguridade social deve ser financiada por contribuições do empregador, dos trabalhadores e do Estado. Mas a União isola a previdência da seguridade e, em seguida, calcula o resultado da previdência levando em consideração apenas a contribuição de empregadores e trabalhadores, deixando de computar a parcela que caberia ao Estado. 

Para Denise, o discurso do governo de que há déficit na previdência é contraditório com a política de desonerações. “É uma narrativa que não tem lógica. Porque se o sistema tem um déficit de 85 bilhões, como dizem, como se pratica a desoneração de R$ 281 bilhões, sendo que 55% são de receitas da assistência? Não faz sentido”, reiterou. 

A professora acrescentou que, para piorar a situação, tais renúncias tributárias – que acertaram em cheio as receitas da previdência – foram concedidas sem nenhuma exigência de contrapartida. “Aconteceu sem se exigir das empresas que fizessem investimentos, que gerassem emprego, cumprissem legislação previdenciária e trabalhista e ambiental ou que tivessem um conteúdo nacional em seus produtos”, condenou. 

Intenção não é equilibrar sistema

De acordo com ela, o valor do qual o país abriu mão com as desonerações é superior à soma dos gastos realizados com saúde, educação, assistência social, transporte e ciência e tecnologia no mesmo ano. 

“Não dá para entender como o governo pode dizer para nós, depois de fazer esse volume de renúncia de receitas, que temos que aceitar uma proposta de reforma da previdência que implique no achatamento de rendas, quando o próprio governo pratica uma política fiscal de total subserviência para as empresas”, disparou.

Na avaliação da pesquisadora, outro ponto de ataque à previdência se refere à falta de cobrança da dívida ativa previdência, que são os créditos que o governo tem para receber de empresários que praticaram sonegação, elisão fiscal ou deixaram de contribuir no prazo correto, por exemplo. 

“Essa dívida atingiu quase R$ 400 bilhões em dezembro de 2015. E o governo só conseguiu recuperar 0,3%. Quer dizer, esse é um governo que não está nem apto nem desejoso de perseguir os sonegadores da previdência, mas está empenhado em rebaixar a renda dos trabalhadores.

Quem não corre atrás dos créditos que tem na praça e pratica uma renúncia violenta de receita, desculpa, mas não tem a intenção de fazer esse sistema se equilibrar. A intenção é fazer reforma”, criticou. 

Segurança para rentistas

A economista mencionou ainda os recursos que o governo detém na conta única do tesouro nacional, hoje calculados em R$ 881,9 bilhões. Segundo explicou, trata-se do acúmulo de superávit primários de vários anos. Além disso, completou, o governo lança títulos públicos para diminuir a liquidez do mercado interbancário e esses recursos ficam acumulados na conta única do tesouro nacional, que é utilizada referência pelo mercado financeiro. 

“Quanto mais recursos tiver ali, mais seguro o mercado se sente com relação à possibilidade de trocarem portfólio de títulos para moeda. Os recursos da conta única fazem o papel de transmitir segurança ao mercado financeiro, porque não basta ter a mais elevada taxa de juros reais do mundo, ela precisa ser crível, precisa se legitimar junto ao mercado financeiro. E, para fazer isso, o governo precisa manter um colchão de liquidez na conta única do tesouro nacional”, afirmou.

Denise defendeu que se tratam de recursos “absolutamente esterilizados”, porque nem se transformam em bens e serviços para atender às necessidades coletivas, nem geram emprego e renda. “O governo que retém essa quantidade de recursos na conta única é o mesmo que olha para a população e diz, ‘olha, vamos fazer uma reforma da previdência porque há excesso de gastos’”. 

Para a pesquisadora, o governo centra seu discurso na necessidade de cortar gastos e ignora o lado da receita. “Ninguém discute como fazer para manter esses benefícios, que já são precários. Ninguém discute que poderíamos tributar a distribuição de lucros e dividendos. Vários economistas já mostraram que conseguiríamos arrecadar cerca de R$43 bilhões de reais no primeiro ano que isso fosse instituído”, disse. 

A quem interessa a reforma?

Denise questionou a quem interessa a reforma da Previdência proposta pelo presidente Michel Temer. Segundo ela, não é à coletividade, aos trabalhadores e pessoas de baixa e média rendas. 

Para a professora há quatro setores que se beneficiariam da reforma. O primeiro seriam os bancos – que, diante do discurso de que a previdência social estaria quebrada, ampliam a venda de planos de previdência complementar. Em seguida, estariam os proprietários de títulos públicos – entre os quais estão os próprios bancos, fundos de pensão, estrangeiros e pessoas físicas de renda elevada. 

“Eles desejam que a taxa de juros seja a mais alta possível e, para isso, o governo tem que tornar a taxa de juros crível e isso significa redução dos demais gastos – aquela tal liquidez que tem que ficar na conta única, para que o setor financeiro entenda que a taxa de juros é confiável”, explicou, acrescentando que os detentores de títulos, então, “reverberam para a sociedade a necessidade de ajuste e, particularmente, de fazer a reforma da previdência”. 

Os terceiros interessados seriam os burocratas da máquina estatal. “Quanto mais eles defenderem a reforma da previdência, maior a possibilidade de acessarem um cargo em comissão”, disse. Por último, estariam os próprios congressistas. “Imagina a negociação de uma reforma da previdência, os lobbies dentro daquele Congresso”, colocou.

Déficit primário não é alto; juros são o vilão 

Assim como outros economistas, Denise defendeu que o problema fiscal brasileiro, ao contrário do que diz o governo, não está nos gastos do governo, mas na queda da arrecadação. “É a queda da receita que produz o déficit, não o aumento do gasto. E a queda é fruto da grande recessão e das desonerações”, acusou.

De acordo com ela, apesar do alarde feito pelo governo atual, o déficit primário do país não é preocupante, mas muito parecido com o déficit de muitas outras economias no mundo e é inferior aos resultados negativos de países europeus, por exemplo. “No entanto, a população absorve com muita facilidade o discurso de que o nosso déficit é estratosférico. Não é, coisa nenhuma. Não tem nada errado com um déficit de 2% do PIB, num momento em que a economia mundial está em recessão”, disse. 

Para a professora, o grande problema da economia brasileira são os gastos com juros, algo que não entra no debate da previdência. “Os gastos com juros atingiram patamares imorais para uma sociedade como a nossa. Gastamos, em 2015, R$501,7 bilhões de reais com juros – 8,5% do PIB”, citou.

A economista destacou que se trata de um gasto eminentemente financeiro, usado para construir uma dívida financeira. Ou seja, recursos que não foram utilizados para investir em estradas, escolas, portos ou ferrovias, mas para rolar uma dívida que já existia.

Desses R$ 501,7 bilhões gastos com juros, R$89,7 foram com swap cambiais, detalhou a economista. “São papéis que o governo vende ao mercado, que funcionam como uma espécie de hedge, de proteção, para as empresas que têm passivos em dólar e para os que querem se proteger da desvalorização cambial”, explicou. Então o Banco Central lança o papel no mercado e, se a desvalorização cambial for maior que a taxa de juros, o Banco Central perde e paga a desvalorização para o proprietário do papel, completou. 

“Ou seja, o nosso BC é capaz de proteger com R$90 bilhões de reais a insegurança com o dólar dos agentes do mercado financeiro. Mas não é capaz de aceitar um suposto déficit da previdência de R$ 85 bilhões. Ao mercado financeiro, toda a segurança. Qual a reforma que tinha que estar na pauta? A da previdência ou a reforma da política monetária? ”, provocou.

Projeções equivocadas

Denise Gentil antecipou alguns dados de um trabalho que diversos economistas estão preparando para subsidiar o debate sobre a previdência. Segundo ela, pesquisadores da UFPA comprovaram erros nas projeções do Ministério da Previdência, que sempre mostra uma explosão de déficits em suas tabelas.

“A capacidade de projeção dos modelos da previdência é ridícula. A subestimação da receita é algo frontal. O resultado que era para ser superavitário, dá em déficit. E, quando eles foram buscar a razão do erro, chegaram à seguinte conclusão: o ministério considerava um valor fixo referente à Pnad de 2009 para taxa de urbanização, participação da força de trabalho, desemprego, salário médio. Na prática, esse conjunto de equações, que deveria ser variável, é tido como constante, o que faz com que o modelo colapse (…) É com base nessas projeções que se decide a vida dos brasileiros”, disse.

De acordo com os pesquisadores citados por Denise, “as projeções são sistematicamente tendenciosas no curto prazo e apresentam erros tão consideráveis que as tornam sem significado no longo prazo. (…) Houve enorme desproporcionalidade entre as projeções de receitas e despesas. Enquanto as receitas são fortemente impactadas pelos parâmetros de mercado, tomados como constantes, as despesas são fortemente impactas pela demografia que é projetada pelo IBGE, visando realmente representar o futuro”. 

O mesmo estudo desmontou a tese de que é preciso desvincular os benefícios previdenciários do reajuste do salário mínimo, mostrou a professora. De acordo com ela, os pesquisadores constataram que o impacto do crescimento real do salário é muito maior sobre a receita que sobre as despesas.

O jovem de hoje versus o idoso de amanhã

No final de sua apresentação, Denise chamou a atenção para os números da violência no Rio de Janeiro, onde mora. “O assunto no Congresso é o corte de gastos com a PEC 55, com a Reforma da previdência. Mas qual foi o número de homicídios no Rio em abril? 453 homicídios, 33% a mais que no mesmo mês de 2015”, disse, comparando os dados de assassinatos no estado ao daqueles que morreram durante a guerra civil na Síria. 

“Isso é extremamente grave. Ao invés de estar discutindo o que será do jovem agora, no curto prazo, o que ofereceremos para os jovens – porque quem morre é a população jovem e negra -, estamos discutindo corte de gastos com previdência, congelamento de gastos. O que estamos oferecendo de trabalho, educação para o jovem? O olhar está na direção errada. O olhar não é sobre os idosos do futuro, o olhar tem que estar sobre o jovem do presente”, encerrou. 

O seminário Previdência Social: reformar ou destruir? foi organizado pelo Le Monde Diplomatique e Plataforma Política e Social. Também participaram do debate os economistas André Calixtre, do Ipea, e Eduardo Fagnani, da Unicamp. 


Do Portal Vermelho