De jardim dos barões a chão do povo: projeto Samba na Praça completa 7 anos e cresce com patrocínio do Sindipetro-NF

Foto: Gabriela Fonseca/Sindipetro NF

[Por Vitor Menezes, da Imprensa do Sindipetro NF | Fotos: Gabriela Fonseca]

A imponência do prédio que abriga a Câmara de Vereadores, a beleza da Casa de Cultura Villa Maria e a riqueza arquitetônica do Liceu de Humanidades se rendem à majestade do samba a cada terceiro domingo do mês. Diante das suas fachadas, no quadrilátero histórico de Campos dos Goytacazes, a Praça Barão do Rio Branco (Jardim do Liceu), mais conhecida como Praça do Liceu, recebe o povo que construiu estes entre outros patrimônios no passado e continua a construir no presente.

No domingo, 21/08, não foi diferente. O Projeto Samba na Praça, que tem patrocínio do Sindipetro-NF (Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense), completou 7 anos com uma edição que mereceu decoração especial marcada pelo azul e branco e roteiro solene de falas e agradecimentos em meio aos maiores clássicos do samba de raiz. Tudo sob uma luz nublada que driblava as copas das árvores e uma temperatura amena que dava tons ainda mais bucólicos ao jardim destinado a uma área de praça em 1860 (que ganhou a arquitetura que conserva até hoje após uma reforma em 1914).

Mas, para a festa, não apenas os músicos que se preparam. Na véspera, por exemplo, o dia foi agitado numa certa casa do bairro Jardim Carioca, onde Edimeia Alves Barreto, 57 anos, começou cortar, temperar e embalar os 100 espetinhos de churrasco que, junto com as filhas Roberta Barreto de Souza, 36 anos, e Sabrina Alves de Souza, 18 anos, e o genro Luiz Claudio Batista, 37 anos, vendem desde as primeiras edições do evento.

“Minha mãe prepara tudo. Adianta no dia anterior a parte das carnes e, às cinco da manhã do próprio domingo, cozinha os acompanhamentos [arroz, feijão tropeiro, farofa e vinagrete]. Tomamos muito cuidado com a higiene e todo mundo elogia. No início eram só os espetinhos, depois o pessoal começou a pedir refeição também e deu certo”, explica Roberta, uma manicure que afirma “contar os dias” para o terceiro domingo do mês chegar.

Roberta e sua família estão entre os primeiros a perceberem o potencial do Projeto Samba na Praça não apenas para produzir cultura e lavar a alma de um povo sofrido, mas também para produzir uma renda adicional, quando não única, especialmente nestes últimos anos de um quadro difícil do país. Elas estão entre os primeiros, mas primeiro mesmo foi o ambulante Francisco Ignácio Miranda, que completou 56 anos no dia do evento. Junto com a esposa Salete Azevedo Ribeiro, que vaidosamente não revela a idade, estão no ramo de bebidas e se armaram com oito fardos de latões de cerveja para aquele domingo.

Roberta e sua família estão entre os primeiros a perceberem o potencial do Projeto Samba na Praça não apenas para produzir cultura e lavar a alma de um povo sofrido, mas também para produzir uma renda adicional, quando não única, especialmente nestes últimos anos de um quadro difícil do país. Elas estão entre os primeiros, mas primeiro mesmo foi o ambulante Francisco Ignácio Miranda, que completou 56 anos no dia do evento. Junto com a esposa Salete Azevedo Ribeiro, que vaidosamente não revela a idade, estão no ramo de bebidas e se armaram com oito fardos de latões de cerveja para aquele domingo.

E assim tem sido para dezenas de trabalhadores, entre eles um bastante conhecido da categoria petroleira, Júnior Osmar Quintanilha, 39 anos, que assim como Roberta vende espetinhos no projeto desde o início mas, nos últimos dois anos, também estaciona o seu food truck no Heliporto do Farol de São Thomé.

Mas a praça é democrática e quem não quiser comprar no local também pode levar de casa. É o que preferem fazer Carlos Vitor Silva, 43 anos, e a esposa Jane Viana de Sá, 42 anos, com a filha Caroline Viana Silva, 24 anos, e a amiga Kedna Barreto, 37. Eles chegaram cedo, posicionaram mesa, cadeiras, cooler e churrasqueira, e fizeram a própria área vip para curtir o samba de camarote. Pela primeira vez no evento, eles consideram que o projeto traz uma alternativa cultural e de lazer “que nem sempre está acessível às famílias”. “Acho ótimo, música boa é atemporal. É bom para todas as gerações”, celebra Carlos Vitor.

Ação social do projeto Flor do Cajueiro/Foto: Gabriela Fonseca/Sindipetro NF]

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Um compromisso marcante do projeto é a associação entre música e ajuda ao próximo, como preconiza o slogan “é mais que um samba, é uma festa de cultura e solidariedade”. Os frequentadores são estimulados a levar doações destinadas a instituições que prestam assistência aos mais diversos públicos no município. As entidades beneficiadas se alternam, para que o máximo de iniciativas sejam contempladas, e a deste domingo foi a Associação Flor do Cajueiro, um projeto social que, entre outras frentes solidárias, arrecada produtos, monta e entrega cestas de alimentos a 60 famílias nas chamadas “casinhas ocupadas de Donana”.

“O projeto começou na pandemia. A comunidade é muito carente, não tem luz, água, esgoto. E tudo ficou mais difícil. Mas há também histórias que nos emocionam muito, como a de uma senhora que mesmo tendo seis filhos, ajuda a outras duas crianças e cria mais quatro sobrinhos. Eles dividem o que quase não têm”, conta Luiz Franco, 58 anos, chef de cozinha e um dos participantes do projeto social.

Malandros Maneiros

Outra marca é a fidelidade do público e o envolvimento com o samba. É comum encontrar frequentadores com adereços de agremiações carnavalescas e chapéus de bamba. Ostentando com orgulho uma camisa da Mocidade Independente de Padre Miguel, o trabalhador offshore aposentado, Nelson Honorato Fernandes, 64 anos, que atuou até março de 2020 como marinheiro de convés na empresa CBO, que presta serviço à Petrobrás, conta que frequenta o projeto desde o começo e percebeu a grande mudança na estrutura. “Frequento desde a primeira edição e vejo que cresceu e melhorou muito. Virou um marco para a cultura local, não tem como não amar”, afirma, lamentando apenas que as doações poderiam ser maiores: “as pessoas chegam com as mãos abanando, curtem o samba, bebem, e saem abanando o corpo todo”, brinca, enquanto dá o recado sério.

Outro habitante permanente do mundo do samba que não perde uma edição do projeto é o pintor imobiliário Cristiano Gomes, 50 anos, que prefere ser chamado pelo nome artístico de Cristian Jhow. “Todo mundo me conhece assim, como o Cristian Jhow que está sempre vestido com as cores do Flamengo”, conta. E desse “todo mundo” faz parte nada menos do que a Comunidade do Morrinho, onde vive, um dos berços do samba no município. Junto à esposa Claudia Maria Bento, 52 anos, ele curtia o projeto enquanto contava que “já nasceu pronto” para o Flamengo e para o samba, se orgulhando de ter sido mestre-sala da escola de samba Psicodélicos.

Ao povo em forma de arte

Bida Leão, designer que atua com cultura e marketing cultural desde os anos 1990 e se define como “apenas mais um nessa grande família do Samba na Praça”, conta que o projeto começou em 2015 “com a necessidade e o desejo de um grupo de aficionados por samba se reunirem em um momento de lazer nas manhãs de domingo, com familiares e amigos, para cantar e falar sobre esse ritmo que é o maior representante cultural do Brasil”. Ele estima que cerca de 35 mil pessoas já passaram pela Praça do Liceu nos domingos de samba.

“Nossa cidade não proporciona momentos de lazer para as famílias, quando digo famílias estou incluindo das crianças até a turma da melhor idade, com qualidade, segurança, levando cultura popular e de forma gratuita, principalmente nas manhãs de domingo. Em Campos o movimento de cultura em torno do samba é muito grande, e em todos os finais de semana acontecem dezenas de eventos, nas quadras, bares e casas de shows, alguns trazendo sambistas de expressão nacional, geram renda, empregos e movimentam a economia, só que por não serem gratuitos, em praça pública e basicamente para adultos nos diferencia de todos”, avalia Leão.

Ele também destaca o caráter social do projeto, mas concorda que as doações poderiam ser maiores: “embora a quantidade de público tenha sido muito grande nesses anos, não conseguimos ainda fazer com que todos os nossos frequentadores entendam que o gesto de doar de ajudar ao próximo, de ser solidário, ter empatia, é algo inerente à cultura do samba”, lamenta.

Bum bum paticumbum prucurundum

Os músicos que fazem o povo sambar cantam e tocam em uma mesa com 15 integrantes unidos pela paixão pelo ritmo. “Menos da metade são músicos profissionais, o restante tem suas profissões e com o passar dos anos foram se fixando na nossa roda e hoje fazem parte da família Samba na Praça. Tínhamos uma base no Grupo Cadência do Samba e os demais foram chegando e ficando, o principal requisito é ter paixão pelo samba e compromisso com o projeto”, explica o produtor.

Além do próprio Bida, que é “aquele cara dos bastidores” que “às vezes arrisca na mesa”, estão na roda Nilson Athayde, Fabio ‘Cadência’, Irene Rufino, Alba Valéria, Júlio Cavaco, J. Gomes, Leozinho, Tico Floriano, Glauber, Thiago, Joel, Edu, Leno e Bruno. O grupo faz questão ainda de citar, em “agradecimento especial”, o radialista Wellington MHZ, que também foi um dos idealizadores do projeto.

Acreditar

Além da paixão e da garra para levar o projeto adiante, o Samba na Praça conta com apoiadores e patrocinadores. “Até o final de 2020 não tínhamos um patrocinador oficial, e não foi por falta de buscar, o que nós vemos é que a iniciativa privada não acredita em um projeto de cultura popular, desconhecem o retorno que poderia ter em patrocinar, não só o nosso como todos que com certeza já bateram em suas portas pedindo ajuda. Tratam como custo o que na verdade é um excelente investimento”, explica.

Bida afirma que foi muito difícil manter o projeto, que precisa custear banheiros, som, tenda, mesas e músicos. “Sem um patrocinador, todos os meses íamos para praça na incerteza. Quem nos dava uma certa tranquilidade era o nosso público que, no final do evento, comparecia na passagem do chapéu, e os nossos fiéis vendedores ambulantes que estão conosco desde o início e que sempre contribuíram”.

O produtor também lembra a importância de o Samba na Praça ter sido incluído no calendário de eventos do município por meio do projeto de lei número 0130, apresentado pelo ex-vereador Abu Azevedo (PPS) em 2018. A previsão legal permite à Prefeitura de Campos fornecer apoio logístico ao evento — com a segurança da Guarda Municipal, disponibilização de ambulância e atuação da postura para ordenamento da ocupação do espaço.

“Hoje temos o Sindipetro-NF como nosso patrocinador que nos acolheu, que como diz um dos nossos componentes “comprou nosso barulho”, acreditou, entendeu e investe no projeto e acredita na cultura como ferramenta para gerar trabalho, emprego, renda e contribuir para o desenvolvimento econômico e social do município e do país”, complementa Leão.

Do Mesmo Chão

A força popular do samba em Campos dos Goytacazes tem raízes históricas. Outro produtor cultural campista, Wellington Cordeiro é um colecionador de vinis e pesquisador que identifica que o município pode ser considerado “um berço de bambas” em razão “da forte herança afro-descendente, já que Campos concentrava o maior contingente de escravos da província do Rio de Janeiro: 60% da população era escrava e maioria dos escravos que chegavam vinha da região de Luanda (Angola) para trabalhar nos engenhos de açúcar da região”.

“Num registro histórico dos grandes artistas deste gênero musical que destaca a cidade de Campos dos Goytacazes como um berço do samba, temos os que ganharam destaque nacional e internacional, como Wilson Batista, Roberto Ribeiro [que tem alguns dos seus títulos de música como intertítulos desta reportagem], Delcio Carvalho, Jurandir da Mangueira, Sebastião Mota, Ataíde Dias, Zezé Mota, Joel Teixeira, Jurema, Zé Ramos, Aluisio Machado e Rogério Bicudo.

Há ainda os que saíram de Campos e até conquistaram sucessos em outros centros, mas que retornaram e marcaram sua vida musical na própria terra goitacá, como Eli Miranda, Jardel do Cavaco e Helena Rangel. Merecem destaque também, lembra Cordeiro, os bambas Geraldo Gamboa, Jorge Chinês, Manoel Tancredo, Celinho Capão, Neguinho, Ivo do Cavaco e Toninho Shita.

Ginga, Angola

O pesquisador explica que “na árvore genealógica do samba, podemos descrever na raiz a Masemba, que é uma dança tradicional de Angola. A Masemba significa umbigada e em Angola deu origem ao semba, que se tornou muito popular em Luanda. Posteriormente ao semba surgiu o Kuduro, que se aproxima do funk brasileiro. A Masemba foi trazida pelos escravizados para o Brasil principalmente para a região sudeste, dando origem ao jongo, à umbigada, ao caxambu, a outras danças derivadas do jongo e, posteriormente, deu origem ao samba”.

Naquele domingo, mais uma vez, a ancestralidade e a força da cultura negra estavam no ar e nos corpos: nas mãos que faziam vibrar os instrumentos, nas centenas de pés que sambavam nas pedras brancas do chão e no alto do coreto tombado pelo patrimônio histórico, onde o casal Jaqueline Andrade, uma enfermeira de 40 anos, e Naldo Brito, 44 anos, professor de dança, deslizavam em passos tão leves quanto precisos. Todo mundo na cadência do samba enquanto também fazia história.