Das mortes e das dores fluminenses: os conceitos ambientalistas de José Bonifácio

Leia o artigo de Frederico Romão, petroleiro e Dr. em Ciências Sociais, sobre a tragédia ocorrida após o temporal na Região Serrana do Rio de Janeiro…





Artigo de Frederico Romão, originalmente publicado no site da Universidade Federal de Sergipe

 

Os sempre crescentes anúncios de mortes na região serrana do Rio de Janeiro, vêm quase sempre acompanhados da adjetivação de “desastre natural”. A mídia, dirigentes governamentais e analistas buscam explicar as inadmissíveis perdas humanas se apropriando dos eventos naturais.

O excesso de atributos cognitivos ou a ausência dos mesmos conduz, desde sempre, diversos atores, com mais ou menos responsabilidade, a interpretar como imanentes da natureza das coisas eventos que são inteiramente sociais.

Veja-se: dividir a sociedade entre pobres e ricos; no caso brasileiro, muitíssimos pobres e poucos riquíssimos. Mulher ganhando menos do que homem, mesmo exercendo igual função; negros e pobres como exceção nas universidades públicas e nos cargos executivos, porém superlotando os cárceres. Para algumas pessoas “de bem” esses fatos são esculpidos pela ação onipresente do intemperismo! E as tantas mortes e as imponderáveis dores, do povo fluminense, também o seriam!.

Convidamos os que impigem desastrosas responsabilidades à natureza um tênue exercício de auto-transcendência (recuar no tempo dois séculos e ouvir José Bonifácio de Andrade e Silva). Certamente os que assim procederem perceberão o erro crasso que cometem em suas eunucas avaliações, em seus retratos fatalistas:

Destruir matas virgens, como até agora se tem praticado no Brasil, é crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. […] Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente… (Jose Bonifacio de Andrade e Silva).

Nos oitocentos, o patriarca da independência, já alertava dos riscos que, “pela indolência, egoísmo e luxo desenfreado de precisões fictícias, que destruíam em um dia a obra de muitos séculos…”.

Deve-se perguntar o que foi feito desde então? Uma observação rápida do Sul da Bahia, através do Google Earth, nas cercanias do descobridor Monte Pascoal, é suficiente para se anotar que, no local da exuberante Mata Atlântica, hoje cresce o deserto verde dos eucaliptos, a fornecer celulose para fábricas de papel, e dólares sem fim para gringos de fora e gringos de dentro.

O avanço desordenado das cidades impermeabiliza os solos, empurrando de forma veloz e desastrosa toda sorte de dejetos para os rios. Estes, por sua vez, continuaram a ser sufocados com a destruição das suas matas ciliares; e dita destruição, coisa pública e notória, os priva de água e erode seus leitos irremediavelmente.

Famílias se amontoam nas favelas, palafitas e encostas, pois a insuficiência do orçamento só permite reajuste “decente” para os parlamentares; mesmo quando demonstrada a relevância de um salário mínimo de verdade no combate à miséria.

As mortes não resultam simplesmente de fatos naturais – pensar que sim é meio ufanismo com a história passada e presente do país. É, por conseguinte, conforme prenunciado mais um vez Bonifacio, resultado da ação desenfreada do homem: Virá então este dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos..

É ineficaz solitariamente aumentar a precisão instrumental das previsões climáticas. A maioria dos que habitam as áreas de riscos lá estão pela inexistência de alternativa. Os seus iguais também moram em áreas semelhantes. Logo, mesmo que avisados, mudar para aonde?

Urge construir-se uma nova relação social das pessoas com as pessoas e destas com seu meio ambiente. A natureza dá sinais claros e contundentes de esgotamento em vários setores. Salários dignos associados à educação, por certo, poderão nutrir ambiente social em que viceje a cidadania em sua inteireza.

Apenas cidadãos sujeitos dos seus direitos civis, políticos e sociais terão condição de agir soberanamente. Seja criticando a sua própria relação ambiental, seja fiscalizando na polis os órgãos públicos nas suas mais diversas e, às vezes, nefastas relações com o interesse privado.

Urgente deveras faz-se o respeito à pessoa e à vida. Do contrário, como professado por José Bonifacio, Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?